Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Nem tudo o que reluz é jornalismo

O jornal londrino The Guardian quase sempre sai na frente. Primeiro grande jornal do mundo a abrir – e manter – 100% de seu conteúdo gratuitamente na internet, foi lá que o ex-funcionário da Agência Nacional de Informações (NSA) dos Estados Unidos Edward Snowden revelou a espionagem americana sobre governos e empresas estrangeiras.

Por isso o Guardian virou a biruta do mercado da informação. O vídeo de dois minutos produzido em 2012 sobre a cobertura em tempo real da fábula dos três porquinhos (Three Little Pigs Advert, disponível na rede) é a melhor síntese das pretensões do jornalismo na era da internet.

Foi assim que o jornal surpreendeu no ano passado ao anunciar o primeiro contrato para produzir conteúdo sob encomenda de empresas. Com o mesmo estilo e tipografia das notícias, esse material é etiquetado na “zona de parcerias” do jornal.

A experiência se expandiu para o New York Times, a grife de mais prestígio no jornalismo mundial, e, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, abriu uma nova e polêmica fronteira ética. Num mercado financeiramente fragilizado, a experiência que começa a ganhar corpo reacendeu um velho debate: quem paga pela informação livre e mediadora do interesse público?

Talvez não seja coincidência que a primeira empresa a fechar contrato com o Guardian (R$ 4,6 milhões) tenha sido a Unilever, numa série de artigos sobre sustentabilidade. Segunda maior anunciante do mundo e primeira do Brasil, a empresa pôs no ar em 2013 o comercial de uma de suas marcas de cosméticos que se tornaria o mais visto da história da publicidade.

Nesse anúncio, um ex-retratista do FBI está num apartamento vazio em Manhattan onde recebe mulheres e as desenha, separado por um biombo, a partir de sua autodescrição. Em seguida, o desenhista recebe pessoas que lhe descrevem as mesmas mulheres. O comercial acaba com a exposição dos dois desenhos – a partir dos relatos das retratadas e de terceiros – em que as mulheres se emocionam ao se perceberem mais bonitas pela lente alheia.

Nesse curta-metragem sobre autoestima o produto só aparece no fim. É um comercial, embora não pareça. Com o conteúdo patrocinado, no The Guardian se passa o mesmo. Tem cara de notícia e focinho de reportagem. Parece jornalismo, mas não é. Diluída nesse universo virtual, a Unilever nem parece uma marca, mas é.

Caminho sem volta

Esse conteúdo patrocinado, ou native advertising na terra em que foi criado, é a última fronteira da comunicação corporativa – mercado que ganha independência do jornalismo com a presença direta das empresas em mídias sociais. É a paulatina ocupação, sem intermediários, daquilo que um dia se chamou de quarto poder.

“Qual era a chance de ganhar uma boa cobertura senão agradar a jornalistas, atrair a atenção de colunistas com truques e estabelecer uma linha de recompensas em função da ausência de cobertura ou de sua hostilidade?”, regozija-se um relações-públicas europeu entrevistado por John Llyod e Laura Toogood em Journalismo and PR – News Media and Public Relations in the Digital Age (Jornalismo e RP – noticiário e relações públicas na era digital), lançado pelo Instituto Reuters de Estudos de Jornalismo da Universidade de Oxford e ainda sem edição brasileira.

Nessa relação nem sempre tão conflituosa, a comunicação corporativa e o jornalismo, tidos como as duas faces da mesma moeda, agora estão num poliedro. A moeda continua lá dentro e, embora possa ser vista de muitos ângulos, não ficou mais fácil de ser enxergada.

O livro diz que o native advertising contribuiu para a saída de Jill Abramson, editora-chefe do New York Times. Suas notas remetem a aspas da jornalista: “Preocupo-me em confundir a cabeça do leitor com a origem do nosso conteúdo se a propaganda ficar muito parecida com nossas histórias.”

O Brasil não foge à regra mundial em que jornais custam a atrair o anunciante para suas operações digitais. As redações ficam mais enxutas enquanto as assessorias de imprensa se livram de jornalistas. Entre as 280 empresas da Associação Brasileira das Agências de Comunicação (Abracom), os jornalistas eram 82% de seus funcionários em 2002. Hoje são 52%.

Nas previsões da entidade, o setor, que há 15 anos cresce a taxas superiores a 10%, com exceção do soluço de 2008 e 2009, deve reduzir a marcha neste ano para 8%. É o “gerenciamento de crise”, ofertado a empresários e governos envolvidos na Lava Jato, que manterá o setor aquecido neste ano de retranca.

Com a internet, o jornalismo que busca se legitimar na busca do contraditório com a ausculta de todos os lados enfrentou a concorrência dos próprios lados que ganharam voz na internet e nas mídias sociais.

Com mais velocidade e menos filtros, a informação cresceu como ameaça à imagem de empresas e governos, mas a credibilidade não cresceu na mesma velocidade do jornalismo-cidadão.

A mais recente pesquisa de mídia da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) mostrou que metade dos brasileiros usa internet e passa em média cinco horas por dia conectado. A credibilidade, no entanto, ainda claudica: apenas 5% confiam sempre em blogs e mídias sociais (18% em jornais e 17% nas TVs).

Nesse déficit de credibilidade da rede, abrem-se oportunidades para a informação com cara e focinho de jornalismo. Carlos Carvalho, diretor-presidente da Abracom, ainda vê com ceticismo o conteúdo patrocinado. “As pessoas desconfiam da matéria paga”, mas, como o mercado atrai estrangeiras da comunicação corporativa, a moda não custará a chegar.

Com sede em Miami, o Jeffrey Group tem 40% de sua operação no Brasil. Cristina Iglecio, que comanda a empresa no país, diz que o native advertising dependerá da demanda das empresas jornalísticas, mas acha que a produção de conteúdo é um caminho sem volta.

Cita o site Bayer Jovens, que traz artigos sobre hábitos no consumo de água, mitos da sexualidade e o crescimento da população de tigres-de-bengala. Não há merchandising direto de nenhum produto da empresa.

Anos dourados

A produção de conteúdo pela comunicação corporativa ganhou corpo com uma nova lei, em 2010, que proibiu agências de publicidade de subcontratarem assessorias de imprensa. Era assim, por exemplo, que governos faziam licitação para a publicidade e nelas incluíam assessores para seu primeiro escalão, muitos deles egressos de suas campanhas eleitorais.

No Estado, publicidade e assessoria continuam imiscuídos no comando da Secom, que ainda rege vasta rede de produção de conteúdo sob o chapéu da Empresa Brasil de Comunicação. Esse conflito de interesses ganhou um relato em primeira pessoa do jornalista Eugênio Bucci, que acaba de lançar O Estado de Narciso, sobre sua experiência na comunicação estatal.

Os contratos governamentais, segundo a Abracom, correspondem a 15% do mercado. As maiores, nesse ramo, são também as gigantes do setor: FSB e CDN. Ambas têm mais colaboradores que as maiores redações do país.

Em 2013 a CDN foi comprada pelo publicitário Nizan Guanaes. Com a compra, o faturamento do seu grupo, ABC, ultrapassou a casa do bilhão. “A propaganda vive sua era dourada”, escreveu Guanaes em sua coluna na Folha de S.Paulo (17/2). “As novas ferramentas digitais não são a nova trincheira, mas a nova fronteira.”

Aliada à assessoria de imprensa, a publicidade atinge seus anos dourados num país onde, a reboque do resto do mundo, já há mais celulares e tablets do que consumidores. Se no denominador forem colocados cidadãos, as maquininhas ganham de goleada. Talvez por isso, nem tudo que reluz é jornalismo.

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Maria Cristina Fernandes, do Valor Econômico