Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A amplificação da intolerância





No cenário internacional, inúmeras manifestações
recentes mostram que o motor das piores catástrofes da humanidade – a
intolerância – continua ativo. Um pastor de uma pequena seita da Flórida, nos
Estados Unidos, ameaçou queimar exemplares do Alcorão, o livro sagrado do
islamismo, para marcar o aniversário dos atentados terroristas de 11 de setembro
de 2001, em Nova York e Washington. Após grande repercussão internacional e
pressão da Casa Branca, o pastor Terry Jones – cuja igreja conta com apenas 50
seguidores –


acabou desistindo. A polêmica ganhou as páginas dos jornais em todo
o mundo, gerou manifestação e até mortes.

Políticas públicas contra os imigrantes, que culminaram com a expulsão de
centenas de ciganos e a proibição do uso do véu islâmico e da burca em lugares
públicos na França, levantaram discussão nas últimas semanas. Historicamente
associada à tolerância, a Suécia assistiu à ascensão do Partido Democratas da
Suécia (DS), xenófobo e de ultradireita, nas eleições gerais. O Observatório
da Imprensa
exibido ao vivo na terça-feira (21/09) pela TV Brasil analisou o
papel da mídia na questão da intolerância política, racial e religiosa.


Para debater este assunto, Alberto Dines recebeu três convidados no estúdio
do Rio de Janeiro. Sergio Paulo Rouanet é cientista político e ensaísta,
pós-graduado em Filosofia e Economia. Diplomata de carreira, ocupou os postos de
cônsul-geral e embaixador. Mac Margolis é correspondente no Brasil da
Newsweek há 27 anos. Colaborou com as publicações The
Washington Post
, The Los Angeles Times e The Economist.
Paulo Gabriel Hilu, doutor em Antropologia pela Boston
University; é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia e do Núcleo de Estudos sobre o Oriente Médio da Universidade
Federal Fluminense (UFF). Em Brasília, o convidado foi o cientista político
David Fleischer, norte-americano naturalizado brasileiro. Professor emérito da
Universidade de Brasília (UnB), onde trabalha há 38 anos, é professor visitante
na Universidade George Washington.


Antes do debate no estúdio, na coluna ‘A mídia na semana’, Dines comentou que
a imprensa deveria reconhecer que o jogador santista Neymar não tinha maturidade
para integrar o time montado pelo treinador Dunga para a Copa do Mundo 2010. Em
seguida, destacou a entrevista do jornalista americano Nicholas Carr, na
Folha de S.Paulo (20/09), sobre a superficialidade das informações
publicadas na internet. Outro assunto da seção foi o fato de o diário esportivo
Lance! ter alterado o sentido do texto da coluna do jornalista Roberto
Assaf na edição de domingo (19/9) sobre o jogo Botafogo e Cruzeiro.


Cobertura isenta


Em editorial, Dines ponderou que a razão fica em segundo plano na atualidade,
onde a ciência e a tecnologia dominam o cenário. ‘O século 20 começou com a
Primeira Guerra Mundial, testemunhou a catástrofe da Segunda Guerra e no fim da
primeira década de um novo século, o 21, estamos assistindo ao vivo, em cores e
em três dimensões um compacto de reprises dos dois últimos milênios dominados
pela intolerância e o rancor contra o diferente’, disse [ver íntegra
abaixo
].


A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou Paulo Fernando de
Andrade, professor de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-Rio). O teólogo explicou que os recentes atos de intolerância, como
o do pastor Terry Jones, fazem parte de uma dinâmica de não-aceitação do
diferente. ‘Mesmo uma pessoa que tenha com um pequeno número de seguidores pode
ter uma grande repercussão de suas ações. Sendo uma ação tão marcadamente
intolerante, que promove uma violência contra símbolos religiosos de outras
culturas e povos, é claro que isso tende a ganhar uma dimensão mundial’,
avaliou. Neste contexto, um grupo tenta impor ao outro o que entende como
verdade a ‘ferro e a fogo’, extinguindo a perspectiva de diálogo.


Para o jornalista Luiz Garcia, articulista do diário O Globo, a
atitude do pastor é uma tentativa de um grupo social de impor a sua visão de
mundo. ‘Isto acontece desde que o mundo é mundo. Não vai deixar de acontecer
porque as pessoas, a mídia, deixam de dar tempo ou espaço para isso. Isso está
associado à história da relação entre os homens e à competição que existe dentro
de cada sociedade’, argumentou. O jornalista acredita que fatos como estes devem
ser noticiados: ‘Fingir que não existe é o pior remédio. Eu acho que se deve
noticiar criticamente – não escandalosamente – sempre deixando que as pessoas
saibam o que está acontecendo. É o melhor caminho’.


Olhar preconceituoso?


Samy Adghirni, repórter da Folha de S.Paulo, comentou que a imprensa
não poderia ter ignorado a ameaça do pastor, mas ponderou que faltou
contextualização e crítica na cobertura. As reportagens não exploraram a longa
tradição de hostilidade radicalismo de setores da ala cristã mais conservadora e
poderiam ter mostrado que o extremismo religioso não se restringe ao Islã. ‘O
discurso que diaboliza, que estigmatiza o Islã está na moda, seja nos Estados
Unidos, seja na Europa’, disse. Samy ressaltou que, no Brasil, é possível
perceber as opiniões radicais por meio de fóruns de discussão dos jornais.


Para o correspondente Caio Blinder, que enviou sua participação de Nova York
pela internet, o episódio do pastor traz à tona a questão dos limites da
liberdade de expressão. ‘Na farsa e no drama, ele ganhou quinze minutos de fama
e de infâmia e rapidamente a mídia americana se consumiu no fogo da culpa. ‘Meu
Deus, meu Alá, o que fizemos? Demos um picadeiro para um palhaço incendiar.’ No
entanto, a narrativa é mais complicada. A história ganhara antes espaço na
imprensa do Oriente Médio e de países islâmicos. Foi então que autoridades
americanas passaram a alertar que a provocação do pastor era um perigo para as
normas americanas e poderia gerar anti-americanismo.’ A partir deste momento,
explicou Caio, a cobertura da imprensa nos Estados Unidos se intensificou.


No debate no ao vivo, Sergio Paulo Rouanet avaliou que a cobertura da
imprensa, apesar de superficial, foi correta. O conteúdo da notícia em si – a
idéia ‘alucinada do pastor demente’ e a reação irada do mundo islâmico – é que
deve ser discutida a fundo. ‘Essencialmente, ela [a imprensa] fez o que
tinha que fazer. Não podia ter se omitido. A função de contenção não é a função
da imprensa. A imprensa tem que noticiar, informar’, sublinhou. O cientista
político ponderou que a mídia deveria mostrar a origem histórica do
fundamentalismo e que este está presente nas outras duas principais religiões
monoteístas – o cristianismo e o judaísmo – e não só no Islã.


Porto para os perseguidos


Dines comentou que a grandeza dos Estados Unidos teve início quando a então
colônia inglesa abrigou praticantes de diversas confissões religiosas fugidos da
Europa entre os séculos 16 e 18, e perguntou a David Fleischer se este traço
cultural ainda consegue galvanizar os norte-americanos. O cientista político
explicou que a liberdade de crença foi uma pedra fundamental para a construção
do país. ‘Isto mudou um pouco recentemente, no final do século 20 e começo do
21, com perseguição a imigrantes, principalmente latinos, mas também de outros
grupos’, disse. A recente ascensão de radicais evangélicos no Partido
Republicano, para Fleischer, contribuiu para o agravamento do quadro.


Mac Margolis disse que o espaço dado pela mídia ao ‘pastorzinho que virou
pastorzão’ pode ser discutido, mas tanto na Europa quanto nos Estados Unidos há
um terreno fértil para atitudes radicais e para a expulsão ‘do outro’. ‘A mídia
não estava inventando algo. Tocou em nervos à flor da pele, tem alguns
sentimentos latentes de raiva e medo. E vamos lembrar também qual é o contexto
econômico dos Estados Unidos, que estão custando a sair da recessão. A Europa
sofre de uma crise demográfica muito forte de envelhecimento e precisa
vitalmente dos imigrantes’, disse. Margolis ponderou que mesmo dependendo da mão
de obra dos imigrantes, há um choque cultural latente.


Um telespectador perguntou a Paulo Gabriel Hilu como foi a cobertura da
imprensa dos países árabes no caso do pastor. O antropólogo avaliou que o
comportamento foi semelhante ao da mídia no Ocidente. ‘Geralmente, também a
imprensa ocidental pega um pregador no interior do Paquistão que fala ou faz
umas barbaridades e dá uma arena midiática que amplia o fenômeno. E foi isso o
que aconteceu. Pegou-se um pastorzinho do interior da Flórida, focalizou-se nele
e isso ampliou para uma crise de proporções globais’, disse.


***


A negação do outro


Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na
TV nº 564, exibido em 21/9/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


A ciência favorece a razão – certo ou errado? A resposta estaria na coluna do
meio. No condicional pode-se dizer que a ciência deveria favorecer à razão, mas
não é o que acontece.


Neste mundo dominado pela ciência e pela tecnologia, a razão fica geralmente
em segundo plano. A irracionalidade e a insensatez produzem mais manchetes do
que a sabedoria. A barbárie conseguiu apossar-se daquilo que é um dos acervos
mais preciosos da humanidade: a capacidade de comunicar-se.


O século 20 começou com a Primeira Guerra Mundial, testemunhou a catástrofe
da Segunda Guerra e no fim da primeira década de um novo século, o 21, estamos
assistindo ao vivo, em cores e em três dimensões um compacto de reprises dos
dois últimos milênios dominados pela intolerância e o rancor contra o diferente
e amplificado pelo formidável poder dos meios de comunicação.


O pior é que a maré montante do ressentimento tem como matéria prima a
religião. A fé que deveria inspirar sentimentos superiores mesclou-se à política
e à ideologia e está produzindo um fanatismo de última geração, globalizado,
integral, onde não há o menor traço de amor ao próximo.


Penso, logo existo – o mote de René Descartes que nos preparou para a
modernidade tem nova versão: não penso, o outro não existe.


***


A mídia na semana


** A mídia não poupou Dunga quando, em maio, excluiu Neymar da seleção que
representou o Brasil na África do Sul. Foi o primeiro grande atrito entre a
mídia e o técnico. Agora, quando a imaturidade do atacante santista ficou
comprovada, a mídia deveria ter reconhecido que, ao menos neste episódio, Dunga,
o teimoso, acertou.


** Todos os dias e há muito tempo publicam-se diagnósticos definitivos sobre
o futuro da internet, das redes sociais, dos jornais impressos. Cada maquineta
de leitura lançada no mercado provoca uma enxurrada de vaticínios sobre o futuro
do livro, cada previsão vai numa direção. O número de profetas e visionários
aumenta exponencialmente. O mais recente membro do clube dos futuristas é o
jornalista americano Nicholas Carr que, na Folha de S. Paulo, fez uma
série de graves advertências: ‘A internet nos faz pensar de forma mais
superficial’, disse. E aparentemente está certo.


** Pode um jornal modificar o texto de um colunista e alterar a sua opinião?
A questão é antiga e já provocou muitas crises nas redações em todo o mundo. O
diário esportivo Lance! firmou jurisprudência nesta segunda-feira
[20/9] quando pediu desculpas aos leitores e ao colunista Roberto Assaf
por ter alterado a crônica onde afirmava que o Botafogo não foi ajudado pelo
árbitro. Um gol anulado serviu para confirmar a doutrina que matéria assinada é
inviolável, intocável. Jornalismo é coisa séria.

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Jornalista