Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A anti-memória da opinião pública brasileira

De quem e onde sempre convieram os caprichos e o conforto da casa-grande, inadvertidamente jamais haverá reprovação diante de toda e quaisquer manifestações de cunho excludente ou seletivo na grande mídia do Brasil. Aliás, só veremos o contrário, seja da sacada de um apartamento em Higienópolis, em São Paulo, seja do pequeno quintal de um dos novos conjuntos habitacionais patrocinados pelo rombo do antigo banco do Sicoob de Poconé, interior de MT.

Pincelando as capas recentes de determinados semanários brasileiros de viés neoliberal (Veja – edição 2446 – “Ela passou a faixa”; Época – edição 904: “Uma aventura na África”; IstoÉ – edição 2392: “Do Fome Zero ao escrúpulo zero”), sendo a maioria subsidiadas pelo capital de gente de fetiches escravocráticos, noto que a defesa cega da linha ideológica-partidária de umas publicações, maquiladas sob uma pseudocredibilidade jornalística de defensora da moral da família brasileira, já ultrapassou o limite tolerável entre a liberdade de expressão e o forjamento de um simulacro de agenda política e democracia “entreguista” bastante perigoso, senão irresponsável, ante o cenário mundial hoje vigente.

Aprofundando a análise, fica cada vez mais evidente o vale-tudo empresarial-partidário já visando às eleições presidenciais de 2018, acompanhado por uma multidão de seguidores cada vez mais colérica. Para esclarecimentos gerais, quero também frisar que sou um crítico da atual gestão da presidente Dilma, apontando com argúcia falhas graves em áreas importantes, como a educação, os movimentos sociais e os direitos indígenas; mas nem por isso e tudo mais acredito que a solução seja o impeachment. Aliás, enxergo como um grande retrocesso, se compararmos com as transições de poderes dos antigos regimes teocráticos da Idade Média na Europa.

A crítica inicial aqui dirige-se ao tratamento seletivo dado por estas publicações diante de casos vexatórios de corrupção – contas na Suíça do deputado Eduardo Cunha, o uso indevido por alguns parlamentares de aeronaves oficiais para fins pessoais, o superfaturamento do metrô de São Paulo –, na medida em que fecha os olhos editoriais para umas pautas em detrimento da superexposição de outras. Isso não é jornalismo sério e ponto! É algo próximo da comunicação empresarial em intersecção com práticas de marketing de guerrilha, dos quais, enquanto formato, usufruem capciosamente da credibilidade do jornalismo na opinião pública.

Colunistas ou porta-vozes do obscurantismo?

Lembro também que não é de se estranhar tamanha hipocrisia editorial. Mas talvez o que mais me incomoda enquanto professor de jornalismo seja a desonestidade intelectual e passionalidade irresponsável de seus colunistas e jornalistas, entre eles, um tal Reinaldo Azevedo e um tal Diogo Mainardi (residente em Veneza), que, ao se autodeterminarem arautos do combate à corrupção e de um projeto de país próximo da Miami das mansões, fazem de suas colunas frentes de ódio, atribuindo a culpa secular por toda a má-sorte de uma nação de extensão continental a somente um partido, um grupo ou autoridade.

Amigos, não nos iludamos por esta fábula dantesca. Basta recorrermos à história recente, mais especificamente da origem do fascismo na Europa do século 20, para percebermos que a atuação de determinados colunistas da grande mídia remonta a algumas práticas consagradas da Gestapo em sua consolidação no poder alemão. Na época, o objetivo era “culpabilizar” o povo judeu pela crise econômica da Alemanha, o que acabou gerando adesão popular aos mandos e desmandos de Adolf Hitler.

Trata-se, afinal, de um vale-tudo das aparências, de um jogo cênico entre o que é eticamente condenável – por representar risco ao estabelecido – e o eticamente suportável – por contribuir direta ou indiretamente pela manutenção das forças estabelecidas, que sempre existiu na narrativa de Brasil desde o seu período colonial. Nele, geralmente a promoção do imperativo do mercado estrangeiro (o colonizador) tende prevalecer ante a narrativa de país menos desigual, isto é, da ascensão do colonizado, na medida em que diariamente seus valores, hábitos e preferências são apresentados de forma predominante e esteticamente atraentes à boa parte da população, cujas condições de acesso à cultura e outras formas de informação sempre foram historicamente incipientes.

Para estas publicações, a ordem do dia é, para mais ou para menos: santificar os mocinhos/bandidos da ala conservadora (e de viés colonizadora) e macular-criminalizar qualquer suspeita de quem diverge desta posição infelizmente dominante. Além delas, nesta “blitz de poder a todo custo” integram-se setores influentes do legislativo e judiciário, supostamente indignados pela crise econômica e política.

Quase todos apostam no atual estágio de antimemória da opinião pública brasileira, enquanto resultante da hedonização das massas pensantes da população, explicado, a grosso modo, ora pela queda acentuada de leitores críticos de livros, ora pelo culto exacerbado ao mercado de entretenimento como fonte única de conhecimento. E quase todos, de modo “inconsciente”, promovem novos tempos de obscurantismo.

Uma perspectiva apocalíptica…

Preocupa-me o modo como as gerações atuais participam do debate político, embora deva ponderar positivamente o fato de antes isso não acontecer tão intensamente. Distante de um saudosismo periclitante, julgo no direito de lembrar que antigamente, isto é, na década de 1990, eram necessárias algumas etapas para o que se denomina de politização no âmbito acadêmico, e até social, que abrangiam desde a ciência sumária de como funcionavam alguns órgãos locais à consulta assídua da Constituição Nacional, para não citar a leitura de clássicos como A República, de Platão, Hegemonia, de Gramsci e O capital, de Marx, entre tantos outros.

Ainda que hoje haja uma oferta abundante destas informações de alto valor cidadão, observo uma leniência de um contingente considerado de jovens em converter esta abundância informacional em uma sinergia de ações mais consistente, senão protagonista-transformadora da realidade. Indo mais além, diria que a crise não é econômica e política, mas de criatividade, criticidade e memória cultural.

Nesta crise atual do século 21, o problema principal é cognitivo e reside, em especial, nos processos semânticos de atualização do real e cotidiano, na medida em que, entre tantos exemplos elucidativos, o entabulamento de palavras-chave de codificação digital sobrepuja as linhas tipográficas inscritas na textura aderente do papel, ainda que apergaminhado. O que, para concluir, só permite a manutenção das antigas oligarquias do poder e da gestão do conhecimento. Assim, a casa-grande sempre prevalecerá enquanto estrutura doméstica, social e simbólica, não somente a partir dos seus simpatizantes, mas, parafraseando o grande antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, de quem antes era delegado por ela o açoite.

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Lawrenberg Advíncula da Silva é professor de Jornalismo e editor-geral da revista científica Comunicação, Cultura e Sociedade