Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A árvore de Natal e o exibicionismo ilusório

No dia 29 de novembro, a cidade do Rio de Janeiro ‘premiou’ a população carioca com a 13ª edição da ‘maior árvore de Natal flutuante do mundo’, sob o patrocínio da Bradesco Seguros e Previdência. A TV Bandeirante lá esteve para transmissão direta (não uso a insólita expressão ‘ao vivo’, mais uma infantil cópia do modelo norte-americano) da ‘iluminação’.

Como qualquer bobagem deve ser ‘vendida’ sob a rubrica de ‘grande evento’, os locutores enalteceram o fato de, neste ano, a árvore ter 85 metros de altura e o peso de 530 toneladas, além de três milhões de lâmpadas e quatro canhões de luz. Em 1995, ano no qual se deu a inauguração do ‘evento’, a árvore media tímidos 48 metros. Realmente, é ‘fantástica’ a evolução dos números (e dos gastos).

Seguindo a lógica promocional e publicitária, o patrocinador transformou o fato em ‘show’. Para tanto, artistas (Elba Ramalho, João Bosco, o violonista Turíbio Santos, entre outros) foram contratados para a ‘inesquecível’ noite da ‘iluminação’. Ocorre, porém, que, além dos citados artistas, havia, também, para a abertura, a apresentação da Orquestra Sinfônica Brasileira.

Quadro patético

Eis, contudo, o problema: os organizadores, a despeito das chuvas que, há duas semanas, têm caído na cidade (afora catástrofes pluviais registradas em diversos outros Estados), conceberam um palco cuja cobertura contra as chuvas não poderia abrigar todos os componentes da OSB. Conclusão: os músicos da OSB, que, em raras oportunidades, podem exibir seus talentos, resultado de décadas de dedicação, tiveram de amargar mais uma frustração, por conta de ‘economia bastarda’, somada a ignorância e falta de planejamento. A mídia, no seu formato de ‘diligente submissão’ ignorou qualquer pontuação crítica. Nada mais que uma ‘singela frase’ de lamento pela impossibilidade de a OSB poder apresentar-se. Criticar? Jamais.

Quanto gastou o patrocinador para entregar à paisagem carioca algo tão monumental que, a rigor, ficará por algumas semanas, enquanto funcionários bancários, há menos de 15 dias, fizeram greve por receberem parcos (ou porcos) salários? E ainda: o patrocinador gastou tanto na ‘colossal árvore’ para economizar na ‘cobertura de palco’? O que é isto? Falta de massa cinzenta? É possível.

Na outra ponta, a transmissão se ocupou em informar que, desde o início da tarde, já havia populares assegurando suas cadeiras para a ‘deslumbrante iluminação’ que apenas ocorreria após 20h20m. É claro que a mídia acrítica jamais iria comentar o absurdo dessa ‘devoção’. Enfim, o quadro é patético. O episódio, na verdade, serve como mote para a abordagem de algo mais sério e grave, o que é tema para o tópico seguinte.

Inércia analgésica

O que foi pontuado em parágrafos anteriores serve para análise de um aspecto comportamental cujo teor está na pergunta escolhida para o tópico. ‘Por que somos tão exibicionistas?’ Avaliando melhor, a pergunta deveria sofrer pequeno ajuste. A rigor, a questão seria ‘por que nos tornamos tão exibicionistas?

O primeiro passo para a resposta à indagação, sem incorrer em maiores riscos analíticos, é constatar que, na origem do ‘exibicionista’, há o ‘culto ao exibido’. Isto quer dizer que uma população, majoritariamente induzida ao consumo de codificação audiovisual ao longo de décadas, com base nos estímulos recebidos desenvolverá um comportamento ‘exibicionista’.

Assim é que o brasileiro, cada vez mais, ocupa vidros traseiros de seus carros com frases idiotas, a exemplo de: ‘Eu amo minha mulher e meus filhos’; ‘Este carro é meu, mas é guiado por Deus’. Ou, ainda, ilumina varandas dos apartamentos com mensagens multicoloridas de ‘Feliz Natal’, ‘Boas Festas’, ‘Feliz Ano Novo’. A esses sintomas, acresça-se, também, jovens e adultos que cobrem seus corpos com tatuagens em lugares nos quais o próprio não as vê. Será isto algo ditado pela lógica? Enfim, dinheiro é gasto para que o ‘outro’ (estranho) leia e veja.

Nesse modelo ‘esquizo’, por exemplo, o sentimento fraterno e solidário do Natal, que deveria ensejar uma vivência subjetiva entre seres constitutivos da família, é transformado num procedimento de efeito externo para seres desconhecidos. O mesmo se dá com as tais ridículas frases presentes nos vidros dos automóveis. Profissionais de comunicação teriam o dever de, em seu ofício jornalístico, chamar atenção para tais desvios de comportamento. Todavia, o ‘jornalismo acrítico’, progressivamente refém das tentações ‘publicitárias’, de caráter audiovisual, cede sua territorialidade específica, em favor da inércia analgésica. Se um dia pretender reconquistar o terreno que está negligenciando, nenhuma parceria mais encontrará. Nesse momento, o jornalismo terá encerrado sua razão de existir.

Predadores do poeta

No mais, a população carioca, cada vez mais seduzida pela ‘lógica perversa da ilusão’, vai somando eventos de entorpecimento: ‘a maior árvore de Natal flutuante do mundo’; ‘a maior cascata de fogos’ no Ano Novo; ‘o maior estádio do mundo’; o desfile de Escolas de Samba – ‘o maior espetáculo da Terra’ e assim vai. Drogas em profusão, armamento entra por todas as veredas, vítimas do trânsito se multiplicam, vidas são ceifadas por balas perdidas, seqüestros, assaltos, estupros…

Tudo, porém, parece recompensado pelo encanto de luzes, formas de fogos artificiais que, em segundos, desaparecem sem deixarem vestígio. É isso: quem não quer ver a realidade entrega-se, por inteiro, a minutos de devaneio. Afinal, sempre, na televisão, há alguma voz para reforçar o fundamento de que ‘o importante é não perder a esperança’. O problema é que milhares ainda crêem nessa chamada. Para esses, fica o encanto de, no Rio de Janeiro, anualmente, haver a ‘maior árvore de Natal flutuante do mundo’.

Com o intuito de melhor configurarmos a gravidade de um quadro no qual fica patente a degeneração cultural, cabe lembrar que, no mesmo dia escolhido para o ‘supremo momento da iluminação da árvore’, algum bastardo, pela trigésima vez, havia danificado a escultura, em ferro, do poeta Carlos Drummond de Andrade. A escultura, para quem não sabe, está posta num dos bancos de concreto, na orla da praia de Copacabana.

‘Preservadores de plantão’

Conheço inúmeras cidades do mundo. Em nenhuma delas encontrei um importante artista que, ao lado dele, me pudesse sentar e, se fosse o caso, tirar uma foto. Pois bem, alguém, brilhantemente, no Rio de Janeiro, teve essa idéia. É isso: o turista que visita a cidade de Gdansk tira uma foto abaixo da escultura suspensa de Arthur Schopenhauer. Em Roma, quem quiser, tira uma foto em baixo da escultura de Giordano Bruno. E, assim, outras dezenas de exemplos.

Desde que lá foi posta, alguém, na madrugada, surge e a danifica: ora tiram-lhe os óculos, ora quebram os aros e outras depredações. Quem viaja pelo mundo sabe que ícones culturais, afora ato de terrorismo, são, mesmo pela rebeldia dos jovens, preservados. Ninguém atira no relógio ‘Big Ben’. Ninguém danifica o busto de Andersen, em Copenhague. No Rio de Janeiro, porém, sistematicamente, uma idéia criativa é destruída. Rebeldia jovem existe em qualquer cidade do mundo. O nosso ‘rebelde’, contudo, seja da periferia, seja da classe média, aprendeu que ‘poeta’ e, ainda mais, ‘velho’ é sinônimo de ‘pederastia’. Assim, tem de ser depredado.

Será que vivemos no pior dos mundos, embora ‘vozes interessadas’ proclamem vivermos na ‘Cidade Maravilhosa’? Por outro lado, dadas as ações reiteradas de destruição da escultura do poeta, será que a autoridade pública não pode, por revezamento, manter um guarda municipal para preservar um ponto de atração turística? O gasto com o pagamento mensal com ‘preservadores de plantão’ não é recompensado pela receita de turistas que encontram, na escultura sentada no banco, um ponto a mais de visitação?

O código verbal

Como síntese do que foi configurado, pode-se deduzir isto: a aposta das ‘fichas’ num modelo cultural de perfil audiovisual conduz o imaginário societário a percepções distorcidas do real, bem como a deformações subjetivas cuja repercussão é a sensação de vazio existencial, somado à falta de perspectiva. A considerar a tendência, o futuro é tenebroso. Por quê? Simples. Quem se educa pelo audiovisual quer respostas claras e satisfações imediatas. As imagens mostram: basta vê-las. À música, basta ouvir. Deste modo, o visual e o áudio nada cobram, como esforço, do cérebro receptivo. O único sistema de mensagem que cobra mais do que dá é o código verbal: das palavras à imaginação.

Se alguém duvida da avaliação proposta, consideremos os seguintes aspectos: eu posso ver seqüenciadas imagens sem ter de elaborar nenhuma concatenação crítico-reflexiva, caso tudo que tenha sido exibido pareça claro; também nada tenho de engendrar quanto ao que, musicalmente, eu ouça. Todavia, ao ler, sinto-me impelido a ter de imaginar aquilo que as palavras evocam. O código verbal não ativa nenhum dos sentidos fisiológicos, corpóreos. O código verbal exige ativação cerebral. Esta é a diferença crucial. Há códigos que ofertam o imaginado. Há o código que provoca a imaginação. Quem não entender essa oposição estrutural sentenciará seu modo de viver (ou de morrer). Enfim, será que estamos condenados à exibição do que, em profundidade, não somos?

******

Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha (Rio de Janeiro)