Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A catástrofe anunciada e o Ibope

A devastação provocada pelas chuvas neste verão brasileiro é uma tragédia anunciada pela ausência de planos diretores para o ordenamento do uso e ocupação do solo. O Plano Diretor está previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, porém menos da metade dos municípios brasileiros o adotam. A omissão é geral, inclusive da imprensa, que parece recusar o debate sem imagens ao vivo da tragédia.

As cenas, aliás, são impressionantes. Vi o resgate espetacular de uma mulher mostrado por uma equipe da Intertv (afiliada da Globo) e fiquei impressionado. Não consigo imaginar como esta mulher conseguiu forças para aguentar o seu peso, no primeiro momento, segurando a corda com apenas uma mão, já que a outra protegia um animal. Algo realmente fantástico, mas prefiro escrever sobre as causas da tragédia, e não sobre o que dá ibope.

Temporais existem desde que mundo é mundo. O problema está na impermeabilização do solo, desvio do curso de água e a urbanização ilegal de encostas. A classe média (e do pobre, por falta de opção) tem o péssimo hábito de morar em áreas preservadas e mirantes, levada pelo marketing de venda do mercado imobiliário. Em pouco tempo a cidade vira uma pirâmide invertida, pela invasão das encostas. Quando chove muito a água desce com força, destruindo tudo porque esse é o seu destino, descer até a parte mais baixa. Como os rios não comportam o volume de água, principalmente em decorrência do lixo, a água volta e inunda tudo. Esse é um fenômeno natural e não é de hoje que os ambientalistas vêm alertando a imprensa e o poder público sobre os riscos dessa invasão criminosa.

Livre do pesadelo

Escrevo sobre isso há décadas e todo ano sou contemplado pelas cenas catastróficas da televisão mostrando a devastação das águas no verão brasileiro. Muda-se apenas a geografia das tragédias. Lembro-me das duas últimas edições – a de Santa Catarina e a de Angra dos Reis, ano passado. Não me pergunte se me lembro das providências ou de alguma matéria jornalística esmiuçando gabinetes de prefeitos e governadores para mostrar o que foi feito por eles após a tragédia.

Certo é que as regiões montanhosas são pródigas em proporcionar tragédias dessa natureza. Além da necessidade de um plano diretor bem feito, é preciso construir barragens de contenção para controlar a vazão dos córregos que descem da parte alta. Temos exemplos clássicos de medidas dessa natureza que deram excelente resultado. Em Nova Lima, município da região metropolitana de Belo Horizonte, a pouco mais de 20 quilômetros da capital, as enchentes que todo ano inundavam a cidade foram evitadas com a construção de uma barragem de contenção com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento-PAC. Situada em um vale, a sede do município – que é maior do que o de Belo Horizonte – ficou livre desse pesadelo. Mas a invasão de suas colinas e matas atlânticas por condomínios de luxo está desviando o curso da água e impermeabilizando o solo. A cidade está crescendo desordenadamente pelos lados e já se pode prever o pior para daqui a alguns anos.

A demonstração cinematográfica

O fenômeno que se verifica nas grandes metrópoles, como São Paulo, é também resultado da impermeabilização do solo. O rio Tietê não comporta o volume de água e sai da caixa. A solução está na abertura de sua cava, como ocorreu com o Arrudas, em Belo Horizonte, que nas enchentes de 1979 (a maior do Estado, com cerca de 500 mortos) vomitou lixo e água suja das encostas, cobrindo a parte baixa do centro. O alargamento de seu leito e obras de contenção dos córregos melhoraram a vazão do Arrudas na região central de BH.

O ideal, dirão os críticos de plantão, seria educar o povo a não entulhar a cidade e construir obras de esgotamento sanitário e pluvial. Mas essa é uma questão de cultura. Não se consegue isso do dia para a noite. É hábito dos brasileiros jogar lixo no chão e ninguém consegue convencer os políticos a realizarem obras de infra-estrutura urbana para drenar água pluvial porque, para a maioria deles, obra debaixo da terra não dá voto.

Para comprovar isso, basta verificar o orçamento dos municípios, estados e União. As obras de infra-estrutura urbana não são as prioritárias. Aliás, nem quando o perigo mora ao lado. Vamos dar aqui o exemplo do Rio de Janeiro. Ano passado, a tragédia foi em Angra dos Reis. Agora, pelo mesmo motivo, os mortos são empilhados em Teresópolis, Nova Friburgo e Petrópolis. A parte baixa de Maricá, no Portal da Região dos Lagos, foi inundada ano passado porque a Prefeitura obstruiu um canal de vazão da água de um lago para o mar. O objetivo era construir uma ponte que até hoje não saiu do papel.

É compreensível que as tragédias provocadas pelas chuvas sejam sazonais, mas o debate sobre os estragos não pode ficar no limite de sua demonstração cinematográfica. A mídia tem a obrigação e o dever de avançar nas pesquisas em busca de uma solução para estes problemas.

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Jornalista