Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A denúncia do denuncismo

Antes de entrarmos propriamente no cerne da questão de agora, impõe-se uma pequena precisão vernacular. Senão, vejamos: O regime político em que o poder executivo fica em mãos do presidente da república chama-se presidencialismo – presidência, ‘presidencialismo’. Se quisermos obter uma derivação semelhante para a palavra que designa uma situação continuada de denúncias, teremos ‘denuncialismo’ – denúncia, ‘denuncialismo’. Por que, então, o ‘denuncismo’, tão apostrofado pelas altas autoridades da república e, desse jeito mesmo, repercutido pela imprensa? Questiúncula, dirão alguns, ainda quando não deixem de recorrer aos alfarrábios ou aos consultores lingüísticos que se multiplicam. Se houver contestações, vamos nos sentir à vontade para falar em ‘presidencismo’.

O fato é que há pormenores de linguagem a que se associam imediatamente questões de ética, tal como se problematiza a propósito da imprensa no fenômeno designado como denuncialista. Os eruditos vivem nos lembrando que a palavra mais prestigiosa na Grécia antiga era justamente a palavra ‘palavra’ (logos), de tal maneira que Aristóteles dedica um capítulo de sua Ética (a Nicômaco) à ‘elegância no dizer’, ou seja, à virtude da boa transmissão daquilo que se deseja comunicar. O homem que consegue fazer isto, na visão do eminente pensador, ‘será como uma lei perpétua para si mesmo’.

Quem comunica enuncia algo, quer dizer, se exprime, se explica. A imprensa enuncia os fatos do mundo cotidiano em modalidades diversas: ao noticiar, anuncia; ao julgar, pronuncia; ao criticar, denuncia. Em cada uma destas operações, ela pode estar exercendo, pelo pacto implícito de uma delegação, funções atinentes a poderes necessários ao bom funcionamento de uma sociedade. Denunciando, coloca-se muitas vezes em posição análoga à do Ministério Público, naturalmente sem a competência legal para a adoção de quaisquer medidas jurídicas. Isto não diminui a importância de sua tarefa, que é a de ampliar a tribuna social, de funcionar efetivamente como a tribune aggrandie de que falava o liberal Benjamin Constant.

Isto supõe a finalidade de prestação de um serviço público, ou seja, satisfazer o direito universal que têm todas as pessoas a uma informação completa e capaz de ajudá-las e tomar decisões fundamentadas. Outra coisa não visava a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao reconhecer em 1948 pela primeira vez, em seu artigo 19, ‘o direito universal à liberdade de informação’. O manejo dessa liberdade supõe, por sua vez, o respeito a princípios que atendam ao que se vem convencionando chamar de ‘ética jornalística’, entendida na prática como responsabilidade social da profissão, isto é, a integração do jornalista com seus pares e com a sociedade na forma de um compromisso em torno do imperativo de se transmitir ao público uma informação constitutiva de socialização cívica. A denúncia jornalística responsável, apesar de todo o incômodo que possa vir a causar, é socialmente desejável.

Pio constitucional

Por que então denunciar a denúncia? Atacam-se, na verdade, suas supostas distorções, seu excesso – o ‘denuncismo’. Da proclamação do direito do cidadão à informação de interesse público, decorreria ao mesmo tempo a violação de outros direitos, a exemplo daquele assegurado pela Constituição brasileira em seu artigo 5º., inciso X: ‘São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente da sua violação’. Como noticiou toda a imprensa, violação de sigilo bancário e fiscal foi precisamente o que aconteceu ao ex-diretor do Banco Central Luiz Augusto Candiota. Por outro tipo de violação (câmara oculta sobre o assessor Waldomiro Diniz), o próprio partido presidencial conheceu o duro revés da denúncia.

Se bem entendemos, não se está contestando a veracidade dos fatos denunciados, mas o descontrole na difusão de informações obtidas por meios legais ou ilegais – dos grampeamentos à violação de sigilos constitucionalmente assegurados –, além de uma provável coligação oculta de autoridades do Ministério Público com a imprensa. Seria o caso, então, de se cogitar da formação de uma entidade de auto-regulação da ética jornalística, a exemplo do Press Council britânico, do Conselho de Imprensa alemão ou de outras instâncias preconizadas em resoluções internacionais.

O que não se pode esquecer é o princípio auto-regulatório de que a atividade jornalística e a ética são apanágios daqueles que as exercem na prática, cabendo ao público-leitor a sanção moral para os excessos ou descontroles do noticiário. Por mais que saibamos dos sornos interesses desse semanário ou desse outro diário na denúncia a serviço de uma jogada política específica, ainda assim são moral e politicamente repugnantes quaisquer propostas que impliquem mordaça.

Os bonecos de ventríloquo das elites não costumam dar um pio constitucional quando se noticia a violação a pontapés pela polícia da privacidade residencial dos cidadãos pobres das periferias do Rio ou de São Paulo. Agora, com as portas da informação arrombadas de um que outro poderoso, recitam, como se fosse mantras hindus, os incisos do artigo 5º. Que acertem ao menos o nome do malefício – denuncialismo.

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Jornalista, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro