Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A difícil arte de ser neutro na guerra

Faisal Husseini, líder palestino que morreu em 2001, costumava contar uma história sobre sua primeira visita a Israel. A guerra de 1967 tinha terminado havia pouco tempo, as fronteiras foram subitamente abertas e ele decidiu dirigir até Tel-Aviv, sendo em algum momento detido por um policial israelense.


Seguiram-se perguntas e respostas. Em determinado momento, o policial disse: ‘Devo informá-lo, como sionista orgulhoso, de que…’ Neste ponto, Husseini caiu na gargalhada. ‘O que há de tão engraçado?’, perguntou o policial. ‘Nunca ouvi alguém referir-se ao sionismo sem demonstrar desprezo. Não fazia ideia de que poderia haver algo como um sionista orgulhoso’, respondeu Husseini.


Tenho escrito sobre o conflito árabe-israelense por 25 anos, acompanhando suas idas e vindas, e passei as últimas semanas cobrindo a guerra em Gaza. Para mim, a história de Husseini é um resumo de como os dois lados falam idiomas distintos e as palavras usadas por palestinos e israelenses têm significados opostos. A guerra da linguagem pode confundir um repórter na sua tentativa de narrar o fato tanto quanto pode atrapalhar um novo presidente que tenta mediar o conflito.


Entre os israelenses, ‘sionismo’ está envolto numa espécie de brilho celestial, sugerindo sacrifício e nobreza. Mas no restante do Oriente Médio, ‘sionismo’ representa roubo, opressão, racismo. O muro que cruza a Cisjordânia é uma ‘muralha’ para os palestinos e uma ‘cerca’ para Israel. O conflito de 1948, que criou Israel, é a ‘Guerra da Independência’ para uns, a ‘Catástrofe’ para outros.


Fracasso


Depois das três semanas de ofensiva israelense, é importante fazer uma pausa para mostrar como tem sido difícil narrar a guerra de maneira neutra, e imaginar o que isso significa para o governo americano, que quer encerrar o conflito.


Os opositores de Israel acreditam que os combates em Gaza evidenciaram tudo aquilo em que sempre acreditaram: que Israel desumaniza os palestinos e fará de tudo para impedir sua autodeterminação.


A violência dos ataques israelenses é o que aprendemos a esperar deles, dizem os palestinos. Os foguetes do Hamas não representavam ameaça. Afinal, quem pode culpar a resistência por disparar foguetes como forma de protesto contra o embargo e a ocupação?


Aqueles que enxergam Israel como vítima viram também na guerra a confirmação da crença de que o Hamas, um grupo terrorista, oculta seus combatentes atrás de mulheres e crianças, que o Exército israelense foi exemplar no respeito à população, interrompendo seus disparos quando havia civis no caminho e permitindo o envio de ajuda humanitária.


Cada vez que eu fracasso ao contar a história que cada um dos lados conta a si mesmo, fracasso, aos olhos deles, no cumprimento do meu trabalho. Além disso, as duas narrativas de guerra fazem parte de uma história mais ampla. Um lado diz que, após milhares de anos de opressão, a nação judaica retornou a seu território de direito. Ela veio em paz e ofereceu aos vizinhos um aperto de mão, tendo como resposta a espada. Cada vez que escrevo um artigo sobre o conflito sem espelhar essa história – quando, por exemplo, me concentro no sofrimento dos palestinos ou nos abusos israelenses –, dizem que sou um cúmplice secreto concordando com a visão do inimigo.


O outro lado conta uma história diferente: não existe nação judaica, apenas um conjunto de seguidores de uma religião. Um grupo de colonialistas europeus chegou aqui, roubou e pilhou, expulsando centenas de milhares de suas casas e destruindo suas vilas e lares. Sempre que deixo de fazer alusão a essa história – quando, por exemplo, não chamo os ataques de Israel de massacres –, afirmam que estou comprometido e não posso mais ser digno de confiança enquanto repórter.


Desde que a guerra começou, recebi centenas de mensagens sobre minha cobertura. Em geral, elas não me parabenizam por um trabalho bem feito. ‘Graças a você e ao seu tipo de escória,’ dizia uma delas, ‘Israel pode agora assassinar centenas de palestinos e você relata a coisa toda como se fosse um acidente ferroviário qualquer.’


‘Bronner,’ dizia outra, ‘você voltou a escrever as asneiras habituais que enfocam apenas os imundos árabes que votaram no Hamas, grupo que os meteu nesta situação por meio de seus disparos de foguetes contra israelenses inocentes.’


Israel impediu a entrada de jornalistas em Gaza, por isso o New York Times confiou na minha colega palestina, a residente local Taghreed el-Khodary, para cobrir o que se passava durante os combates. Conversávamos várias vezes ao dia sobre suas cuidadosas saídas a campo. Sua primeira parada costumava ser o Hospital Shifa, onde ela se inteirava da situação das vítimas civis. No início da guerra, no hospital, ela testemunhou o assassinato de um colaborador de Israel nas mãos de pistoleiros do Hamas. Um dos pistoleiros alertou que ela jamais mencionasse o que havia visto. Ela disse que não havia a menor chance, e então fez alguns telefonemas para descobrir mais a respeito de ocorrências parecidas e me enviar a notícia, que foi publicada no dia seguinte.


Críticas


Alguns blogueiros árabes atacaram Taghreed com o pior insulto que puderam imaginar. Ela era uma traidora servindo a um jornal cúmplice das atrocidades de Israel. Os israelenses disseram que ter mantido os repórteres fora de Gaza foi a coisa certa, pois não há jornalismo independente numa área controlada pelo Hamas.


Será que alguma dessas pessoas já ouviu falar do trabalho de Taghreed? Ou sequer viu o trabalho que enviamos daqui? Conforme a opinião de outro leitor, ‘vocês ajudam os terroristas e provocam o aumento do derramamento de sangue quando contam histórias parciais, ignorando o contexto mais amplo dos fatos.’ Ele disse, afinal, uma coisa com a qual concordo: ‘Você não deve ser repórter se não estiver contando a história na sua totalidade, em vez de apenas os trechos que ajudam a vender exemplares.’ Eu aconselharia um mediador a estar atento a essas palavras.


 


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Chefe do escritório do New York Times em Jerusalém