Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A dor e a delícia do jornalismo

A dupla mais famosa do jornalismo em todos os tempos foi formada por Bob Woodward e Carl Bernstein. Mas ela podia ter sido de Robert Smith e Robert Phelps. Bem antes dos dois repórteres do Washington Post, os dois jornalistas do New York Times receberam uma indicação segura do que acabaria notabilizado como ‘o escândalo de Watergate’, que obrigou o presidente reeleito Richard Nixon a renunciar ao segundo mandato para não ser afastado por um processo de impeachment. Nixon comandou um vasto esquema de golpes sujos contra os seus adversários do Partido Democrata, vários deles caracterizados como crimes.

Em 1972, dois meses antes da culminação das fraudes, com a invasão da sede dos democratas, no prédio Watergate, na capital americana, o diretor do FBI, L. Patrick Gray, deu informações a Robert Smith, repórter do Times, com quem se conversou durante um almoço, sobre a atuação ilícita do procurador-geral John Mitchell, chefe da campanha de Nixon. Também fez indicações sobre o envolvimento da própria Casa Branca com essas ações escusas, inclusive para a arrecadação de fundos para a reeleição do presidente. Smith voltou imediatamente para a redação e transmitiu tudo que ouviu para o seu chefe.

O editor Robert Phelps anotou e gravou a conversa, mas a sequência é de causar incredulidade e espanto. No dia seguinte o repórter se desligou do jornal, o mais influente do mundo, com sede em Nova York, para fazer um curso de direito na Universidade de Yale. Dias depois da sua saída, Phelps foi para o Alaska, onde ficou por um mês, de férias.

Escolha errada

A história foi revelada por Phelps no livro de memórias que lançou dois meses atrás nos Estados Unidos. Smith, vendo-se citado, se apressou em dar seu testemunho para se isentar de culpa, devolvendo-a ao editor, que, aos 89 anos, não tinha uma memória muito exata do episódio, mas admitiu que a falha pudesse ser considerada como sua. A desatenção ou a negligência costumam ser fatais para quase todos os profissionais, mas no jornalismo costuma ser cruel. Nada, porém, se iguala ao que aconteceu com o NYT por conta da inércia dos seus dois jornalistas.

Na entrevista que deu após o lançamento do livro de Phelps, Smith lembrou que, na conversa, o nº 1 do FBI, a polícia federal americana, lhe disse que o Partido Republicano praticara ‘golpes sujos’ bem ao estilo de Nixon, por isso mesmo apelidado de Dick Trick, e que o procurador-geral estava à frente da ofensiva para acobertar as manobras. Mesmo sem afirmar que o próprio Nixon participava desses atos, sugeriu com o olhar que assim era.

Autênticos repórteres deixariam de lado ou postergariam planos pessoais para se dedicar à apuração dessas informações, as mais graves que se podiam obter naquele momento dentro do país mais poderoso do planeta. A dupla do Washington Post, jornal de muito menor expressão naquele momento, se formou a partir de uma informação surgida dois meses depois, quando cinco homens contratados pelos republicanos para invadir a sede dos democratas foram presos em pleno ato. Um deles confessou ao juiz da instrução ter ligações com a CIA, a agência de espionagem norte-americana. Bernstein, que acompanhava sonolentamente a audiência, ficou alerta para o detalhe e começou a puxar o fio do novelo.

Mas talvez eles não tivessem mantido a liderança da cobertura se não contassem com as dicas do nº 2 do FBI, Mark Felt, subordinado de Gray. Felt decidiu vazar informações para Bob Woodward, a quem conhecera circunstancialmente, quando ambos trabalhavam no governo, o futuro repórter como oficial da Marinha, por despeito ou senso de injustiça: ele fora preterido, em benefício do novo superior, quando da substituição do reinado de muitos anos de J. Edgar Hoover, a quem servira até ele morrer. Os seja: os detentores dos dois cargos mais altos do lendário FBI praticavam inconfidências simultâneas. Só que Patrick Gray escolhera o jornalista errado. Felt foi mais bem sucedido. Woodward & Bernstein conquistaram a glória que escapou de Smith & Phelps por pura incompetência.

Repórteres negligentes

Jornalismo é perigoso porque exige dedicação plena e interesse permanentemente aceso. Jornalista que abandona uma boa história pelo começo, ou pelo meio, vai experimentar do efeito reverso desse benefício, já na forma de veneno. Repórter que sai de cena no dia seguinte ao da revelação de tal importância, como a que Smith recebeu, ou fica atrás da sua mesa até entrar de férias, como fez Phelps, não é jornalista: é burocrata. E nada contraria mais radicalmente o jornalismo do que a burocracia. Os dois repórteres negligentes mereceram a infâmia, embora não se deva deixar de louvar o hábito bem americano de revelar a verdade. ainda que tardia, mesmo que amarga, como a que os dois aposentados jornalistas fizeram.

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Crise na imprensa

O sonho acabou? As aparências indicam que sim. Durante a semana passada, O Liberal passou a circular mais magro: o famigerado caderno de polícia perdeu duas páginas e foi fundido ao caderno de esportes, que perdeu a página solta (conhecida como ‘macarrão’) das edições dos dias comuns. O ‘Cartaz’, caderno de variedades, também ficou sem duas páginas. O caderno de classificados está mais magro. A perda de anúncios populares acompanhou a queda no faturamento publicitário, visível nos principais cadernos, Atualidades e Poder. Há dias de neles aparecer apenas anúncios da ‘casa’ ou de permutas. Para arrematar, o papel usado agora é de qualidade inferior. O grande estoque da empresa está sendo consumido e parece que a liquidez não permite mais os investimentos do passado.

Por todos esses motivos, o jornal dos Maiorana começa a perder os traços que o distinguiam do Diário do Pará. No ponto de nivelamento, que é inferior, sua capacidade de competir se torna menor. Diante da crise do comércio e das perdas nas exportações, a via econômica não oferece boas perspectivas para o grupo Liberal. Daí o acento cada vez mais incisivo na ação política. Só uma nova grande parceria com o poder local pode evitar a tendência que há tempos vem se delineando para os veículos da empresa: de declínio. Ele só não é mais acentuado graças à âncora da filiação à Rede Globo de Televisão. Mas por quanto tempo essa sustentação suportará o peso da estrutura adernante?

Qualquer que venha a ser o desdobramento da situação, uma coisa é certa: mudanças acontecerão na imprensa paraense em breve. O abalo na sua base é forte, exigindo reacomodação das suas camadas.

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Fim

A Folha de S.Paulo é, desde o mês passado, o único jornal impresso da grande imprensa nacional que ainda se pode ler em Belém. Mesmo assim, só os assinantes. Todos os demais jornais deixaram de incluir a capital paraense no reparte de exemplares. O Estado de S.Paulo desistiu. As bancas ficaram desfalcadas. Abriu-se um vácuo na formação cultural da cidade. É certo que se trata de um fenômeno universal, mas é mais um item na pauta da decadência daquela que já foi a metrópole da Amazônia. O artigo da edição anterior sobre o tema parecia premonição do réquiem.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)