Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

A eterna geléia jurídica

Nunca entendi por que cursos de Jornalismo não incluem aulas de Direito, já que a imprensa tem a pretensão de influenciar a opinião pública e passa boa parte do tempo caçando irregularidades dos Três Poderes. Na semana em que o assunto dominante foi a seqüência de erros do governo federal no caso Larry Rohter, as aulas fizeram falta e os jornalistas tupiniquins também contribuíram para o festival de bobagens.

Uma boa aula de Direito Constitucional, por exemplo, evitaria a geléia jurídica feita pelos jornais ao usar indiscriminadamente as expressões extraditar, expulsar e deportar, como se fossem sinônimos. Tudo errado. O que o governo anunciou foi apenas o cancelamento do visto do correspondente. E como o jornal americano decidiu apresentar recurso à Justiça brasileira, essa diferença faz diferença.

Não se trata de decorar leis. Mas se um senador surge com um pedido de habeas-corpus para o repórter estrangeiro, invocando o Artigo 5º da Constituição Federal, Inciso LII, o mínimo que se espera de um jornalista é ler – e compreender – o tal inciso. Pois mesmo diante de um texto com 12 míseras palavras, nenhum repórter questionou o fato de a lei ser expressamente válida apenas para casos de extradição.

Até conceitos supostamente familiares à imprensa, como a liberdade de expressão, foram desvirtuados. Quando o governo falou em processar Rohter houve quem partisse em defesa do correspondente, alegando que a medida comprometia a liberdade de expressão prevista na Constituição (Art 5º, inc. IX). Mais uma vez, professores de Direito ensinariam que a liberdade de expressão não é absoluta, sendo limitada por outras normas constitucionais, entre elas o direito à honra – não por coincidência, o inciso seguinte do mesmo artigo. As duas normas se completam, pois a liberdade de expressão não prevê o direito a difamação, calúnia ou injúria. O processo contra Rohter era, portanto, totalmente aceitável.

Mais do que plausível, era oportuno. Profissionais de imprensa freqüentemente se queixam do cerceamento do Judiciário, mas devem estar acometidos por uma boa dose de corporativismo. Entender que processos contra jornalistas irresponsáveis podem prejudicar o noticiário é tão equivocado quanto acreditar que a adoção de manuais de redação e preceitos éticos dificultam o trabalho de apuração dos repórteres. A imprensa não defende o controle externo do Judiciário? E quem fiscaliza os jornalistas?

Afinal, o presidente bebe em excesso? Escrevi na última edição do Observatório que jornalistas e jornais jamais conseguirão ser plenamente imparciais porque dispõem da prerrogativa de publicar apenas o que for conveniente ao seu interesse, mas não assumem essa prática. ‘A velha e batida questão ética…’, bocejou um crítico. O assunto é realmente velho, mas só está batido para quem se conforma com ele – nada que umas boas caipirinhas presidenciais não curem.

Com a repercussão do caso Rohter, houve quem insinuasse, nos fóruns da internet, que Lula estaria recebendo tratamento diferenciado da mídia. Colegas recordaram o silêncio dos veículos brasileiros diante dos boatos sobre o envolvimento de um ex-presidente com uma repórter de TV, com a qual ele teria inclusive um filho fora do casamento. Se a nossa brava imprensa omitiu esse fato por anos a fio por que não estaria preservando os excessos do atual presidente? Quem decide se as extravagâncias alcoólicas de Lula – se é que elas existem – devem ou não ser apuradas e virar notícia? Insisto em que este é o ponto frágil da questão. O caso Rohter ilustra bem isso: hoje, nenhum leitor de jornal sabe realmente se o presidente bebe em excesso ou não. Onde foram parar a objetividade e a imparcialidade?

Clareza de critérios

‘O que o correspondente do New York Times disse foi apenas que alguns políticos e jornalistas começam a se perguntar se o hábito de beber do presidente não estaria afetando sua capacidade de governar. Não há nada de errado em se perguntar uma coisa dessas. Errado seria não se perguntar’, argumentou o colunista Diogo Mainardi, na Veja desta semana. Estranho uma palavra: começam. A própria matéria de capa da Veja e a maior parte das reportagens dominicais sobre o assunto admitem que os boatos sobre o apetite alcoólico do presidente circulam há muito tempo entre jornalistas da capital. Pode-se concluir então que foi precisamente isso – não perguntar – o que repórteres e editores andaram fazendo em relação ao assunto. Para o leitor atento, ficou no ar a sensação de que alguma coisa lhe foi escondida pelos correspondentes de Brasília.

Na semana passada, o colunista de O Globo Arnaldo Bloch rebateu algumas críticas anteriores de Mainardi à imprensa brasileira, afirmando que, sem ela, o escândalo Waldomiro não viria à tona (exemplo infeliz, diga-se de passagem, pois o caso estourou com a divulgação de fitas clandestinas). Disse Bloch: ‘Como se coubesse à imprensa algum dever mais combativo do que informar, confrontar fatos, indignar-se, denunciar e opinar’.

Eu pediria licença ao colunista para incluir só mais um: deixar bem claro para o leitor os critérios pelos quais ela decide fazer – e deixar de fazer – tudo isso.

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Jornalista