Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A foto não é o que sugere. E o texto perdeu o foco.

O Estado de S.Paulo de quinta-feira (8/9) trouxe na primeira página uma foto que ocupa mais de 1/4 do espaço disponível. Com o crédito de Celso Júnior, da Agência Estado [ver abaixo], mostra o presidente da República e outros no palanque do Dia da Pátria.







O que se vê em primeiro plano, muito mais do que Lula e os seus convidados, é uma imensa bandeira negra com a inscrição ‘impeachment’, em diagonal, sobre fundo verde-amarelo, imitando a faixa presidencial.


A impressão que se tem é que o protesto ocorreu a um palmo do nariz do presidente. A legenda corrobora: ‘Enquanto Lula assiste ao desfile em Brasília, manifestante agita bandeira pelo impeachment’. A rigor, nenhum manifestante aparece; só o pano.


Na matéria se entende por quê: ‘A arquibancada em frente ao palanque… estava ocupada por dezenas de petistas… Os contras estavam mais afastados… Alguns levaram cartazes e bandeiras pretas…’


Do modo como saiu, porém, a foto sugere não só que a bandeira estava próxima de Lula, mas que o protesto tinha sido um fato marcante do 7 de Setembro federal.


A assessoria de imprensa do governo retrucou com um e-mail zangado, que o jornal publicou na sexta-feira (9/9) sob o título ‘Planalto contesta foto do Estado‘. Ao lado, repete a imagem da véspera sobre uma legenda que por sua vez repete o erro do texto original: ‘Lula assiste ao desfile; manifestante pede impeachment’.


O e-mail, assinado por José Ramos Filho, secretário-adjunto de imprensa, argumenta, em essência, que ‘o uso de lentes especiais e a edição da fotografia’ desinformaram o leitor, ‘induzindo-o a imaginar uma cena que não ocorreu’, porque a bandeira, que se encontrava em outra área, a 60 metros de distância do espaço das autoridades, ‘foi superdimensionada pelo recurso fotográfico utilizado’.


‘Salvo melhor juízo’


A cena ocorreu, sim. Em algum lugar nas imediações da área reservada ao desfile, havia uma bandeira negra com o termo impeachment – e o alvo não era propriamente o presidente nigeriano Olusegun Obasanjo, à direita de Lula.


Mas a resposta do jornal foi infeliz. ‘Salvo melhor juízo’, ironiza, ‘esta é a primeira vez na história da imprensa em que se tenta desmentir uma foto.’


‘Desmentir’ é palavra errada. Tão errada como a frase ‘uma cena que não ocorreu’. O que o Planalto fez foi contestar a impressão que a foto deixou. E a contestação procede.


Menos mal que o redator do Estadão teve o cuidado de se proteger com um ‘salvo melhor juízo’. Porque algumas das mais famosas fotos do século 20 foram ‘desmentidas’.


Como se ‘desmente’ algo por não ser o que parece, o que se aplica à foto do Estado.


É o caso da mais célebre imagem da guerra civil na Espanha, de 1936 a 1939. Em 1937, o legendário Robert Capa clicou um soldado republicano sob o impacto de um tiro: ele aparece de braços abertos, o tronco para trás, o fuzil solto no ar.


Capa a intitulou ‘A morte de um militante legalista’. Mas ele nunca dissipou a suspeita de que tenha sido encenada: se o militante legalista morreu, diziam os acusadores, não foi naquela ocasião. (Capa morreu em 1954, na guerra da Indochina.)


Numa ilha do Pacífico e na capital do Reich


Comprovadamente coreografadas foram duas outras imagens, divulgadas como instantâneos de momentos definidores da segunda grande guerra.


De uma se diz que é a imagem mais reproduzida na história do fotojornalismo. Feita pelo americano Joe Rosenthal em fevereiro de 1945, mostra um grupo de fuzileiros navais hasteando a bandeira americana na ilhota de Iwo Jima, no Pacífico. A composição é uma obra genial. Tudo, porém, posado – revelaram alguns dos seus atores.


A outra foto encenada foi a do soldado russo, cravando a bandeira da foice e do martelo no topo do Reichstag (o parlamento alemão), como se acabasse de chegar lá, numa Berlim em ruínas. O autor, o ucraniano Yevgeni Khaldei, tinha até trazido a bandeira da União Soviética para esse fim. Fez várias tentativas. A que que valeu é posterior à tomada da capital alemã pelo Exército Vermelho.


Portanto, pode-se fazer imagens jornalísticas fraudulentas de muitas maneiras, com esse ou aquele objetivo. Ou pode-se editorializar, na edição, imagens honestas.


No episódio do 7 de Setembro, melhor teria feito o Estado se publicasse hoje a imagem original, sem cortes, com a sua ficha técnica completa: onde foi feita exatamente, com que câmara e lente, e sob quais parâmetros técnicos (abertura, velocidade, ângulo de inclinação da máquina e por aí).


Menos para responder ao Planalto do que para o leitor julgar por si mesmo. Ética jornalística também é isso. [Postado às 5h06 de 9/9/2005]