Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A guerra de Bush e o fim do jornalismo

O terceiro aniversário do ataque militar, invasão e ocupação do Iraque pelas tropas americanas – acolitadas pelo decadente Império Britânico e mais gatos pingados submissos, entre os quais alguns, como a Espanha, já se arrependeram publicamente – levou a organização Fair (sigla da Honestidade e Precisão na Reportagem) a recordar a cumplicidade dos meios de comunicação nos EUA com a ação arrogante do governo Bush.


Para as pessoas submetidas à dieta jornalística americana, como era o meu caso naqueles dias, foi um momento histórico difícil de esquecer, pela subserviência dos profissionais de mídia. A encenação da derrubada da estátua de Saddam Hussein em Bagdá funcionou como uma espécie de senha para o melancólico espetáculo a que aderiram até organizações jornalísticas cujo passado autorizava esperar delas um mínimo de dignidade e profissionalização.


Como a data do início da guerra lançada por Bush contra o Iraque a pretexto de inexistentes armas de destruição em massa (ADM) é 19 de março, repasso aos leitores alguns dos registros da Fair. E faço questão de começar com a Fox News do império de Rupert Murdoch, magnata australiano de nascimento que se naturalizou americano (talvez o mais patrioteiro deles) para ter o direito de ser dono de rede de TV nos EUA.


Os sábios que nada sabem


O diretor da sucursal da Fox News em Washington – Britt Hume, também apresentador do Special Report, principal programa jornalístico diário da rede – atacou em abril os críticos da invasão sob a alegação de que nada do que previam se confirmara. ‘Erraram completamente em todas as previsões’, pontificou Hume. Quatro semanas depois, a Fox e o resto batiam de novo na mesma tecla, ao festejar o final da guerra, declarado pomposamente por Bush.


Em 1º de maio, quando Bush vestiu a fantasia de piloto de guerra (que nunca foi, pois perdeu a oportunidade ao fugir da guerra do Vietnã) e com ela desembarcou de um jato militar no porta-aviões Abraham Lincoln, só havia umas poucas baixas nas tropas dos EUA (poucas dezenas de americanos tinham morrido). Ele declarou então, sob a faixa ‘Missão cumprida’, que estavam encerradas as grandes operações da guerra.


A Fox News de Murdoch e Hume chegou ao orgasmo. Tony Snow, comentarista menor da rede, disse então que ‘as forças da coalizão demonstraram o velho axioma de que a firmeza no campo de batalha produz vitória rápida e com derramamento de sangue relativamente pequeno. O Iraque destroçou totalmente as críticas dos céticos’. Só que nos meses seguintes ao suposto fim da guerra morreram mais 2.200 americanos e uns 20 mil ficaram aleijados, gravemente feridos ou mentalmente incapazes (sem falar nos 100 mil civis iraquianos mortos). E o número continua a crescer.


Outro favorito da Fox – o comentarista neocon Charles Krauthammer, tido como um dos ideólogos da guerra – foi ainda mais longe ao festejar o final ainda em abril, antes de Bush. ‘As únicas pessoas que pensam que ainda não ganhamos a guerra são os liberais do Upper West Side [de Nova York] e uns poucos aqui em Washington’, disse. Fred Barnes, colega dele na Fox, completou: ‘Difícil foi montar a coalizão e transportar 300 mil soldados. Instalar democracia não é difícil como ganhar uma guerra’.


‘Um herói como presidente’


Até supostos ‘liberais’ da Fox (comentaristas que assumem esse papel para a rede alegar que reflete opiniões contra e a favor), como Morton Kondracke, Jeff Birnbaum, Ceci Connolly e Alan Colmes, somaram-se abertamente à comemoração precipitada. ‘Ainda há coisas a fazer, mas os céticos e críticos foram humilhados. A palavra final sobre isso é `Avante!´’. Connoly completou: ‘Muito parecido com a queda do muro de Berlim. (…) É de perder o fôlego!’


Hoje sabemos que a célebre queda da estátua de Saddam, ainda a cena mais repetida pela mídia como definidora da guerra, foi uma ‘operação psicológica’ (a sigla oficial é PSYOPS) do Pentágono. Nenhum jornalista na época deu-se ao trabalho de apurar a farsa. Na CNN e na MSNBC (rede de cabo da NBC) buscava-se não correr atrás da verdade e questionar o zelo patriótico da Fox News, mas, ao contrário, imitá-la e até superá-la, no pressuposto de que tinha a receita mágica de audiência.


O principal apresentador da MSNBC, Chris Matthews, excedeu-se, por exemplo, ao festejar a fantasia de piloto de Bush: ‘Estamos orgulhosos de nosso presidente. Os americanos adoram um sujeito como ele na presidência, meio valentão, com preparo físico, um cara que não seja complicado como Clinton ou mesmo Dukakis, Mondale, McGovern. Querem alguém como Bush. Inclusive as mulheres. E elas adoram esta guerra. Todos nós gostamos de ter um herói como presidente’.


Um capítulo vergonhoso


Matthews disse tais pérolas em 1º de maio. Três semanas antes já tinha feito uma declaração de amor aos neocons – e bem explícita. ‘Agora nós todos somos neocons’, afirmou. Na mesma MSNBC, o comentarista Howard Fineman, também estrela da revista Newsweek, chegou perto dos excessos de Matthews e da Fox. ‘Já tivemos guerras que dividiram o país. Mas esta guerra uniu o país e trouxe de volta nossos militares.’


É bom não esquecer que a MSNBC, como a NBC, pertence ao império da General Electric (GE), que é grande fornecedora do Pentágono e fatura com guerras. Ao menos a CNN poderia ter ousado um jornalismo decente, mas não é mais a mesma. Quem se destacou mais ali no zelo patriótico foi o gordinho Lou Dobbs. Sobre o Bush fantasiado: ‘Parecia ao mesmo tempo um comandante em chefe, estrela de rock, astro de cinema. Era como qualquer um de nós’.


As redes CBS e ABC não foram diferentes. Nem mesmo as redes públicas de TV (PBS) e de rádio (NPR). Na imprensa escrita, o Washington Post continuou falcão em política externa, pedindo guerra nos editoriais. O New York Times manifestou ceticismo até a fala de Colin Powell. Contentou-se então com as provas falsas sobre as ADM do Iraque. Salvou-se apenas a mídia alternativa, no que pode ter sido o episódio mais deprimente da história do jornalismo americano.


Nada como um dia depois do outro. Tanto a guerra apoiada pela mídia como o presidente que ela proclamou herói são rejeitados hoje por 60% dos americanos.

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Jornalista