Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A guerra e o ‘jornalismo de gabinete’

‘Se tivessem buscado informações na ONU, as empresas jornalísticas dos EUA saberiam já naquela época (2002-2003) o que todo mundo sabe hoje: que não havia armas de destruição em massa no Iraque.’

A afirmação é da jornalista americana Barbara Crossette, que dirigiu a sucursal do New York Times em Nova Delhi (Índia) de 1988 a 1991 e o escritório do mesmo jornal na ONU, de 1994 a 2001. Segundo ela, a Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção da Organização das Nações Unidas tinha vários documentos à disposição da imprensa que indicavam a inexistência dessas armas no Iraque. ‘O porta-voz [da ONU] Ewen Buchanan não se lembra de ninguém [da imprensa] ter pedido essas informações’, disse Barbara.

Em vez de procurarem por diversas fontes, a mídia americana preferiu ficar com a versão do governo George W. Bush, segundo o qual Saddam Hussein tinha armas de destruição em massa. Por isso, os EUA invadiram o Iraque.

As declarações de Barbara foram dadas durante palestra sobre jornalismo internacional na terça-feira (9/11), em Ribeirão Preto (SP). Para detalhar suas informações sobre o assunto, a jornalista respondeu a uma entrevista por e-mail.

Na palestra e na entrevista, ela disse que o problema da cobertura da mídia na invasão ao Iraque foi o despreparo de alguns jornalistas que não tinham experiência com o noticiário internacional. Faz parte dessa lista, segundo Barbara, o ex-editor-executivo do New York Times Howell Raines, o mesmo que caiu em desgraça após as fraudes de Jayson Blair – a quem a jornalista mencionou em Ribeirão Preto como representante do ‘jornalismo ladrão’.

De modo geral, afirmou ela, os jornalistas que comandaram a cobertura fizeram carreira em Washington. Na palestra dada a uma platéia pequena de estudantes de jornalismo, Barbara explicou que os jornalistas de Washington são um grupo fechado de pessoas – que agem como ‘ovelhas que vão pastar juntas’ – e que geralmente acreditam nas versões dadas pelas fontes oficiais da Casa Branca. Muitas das informações sobre o Iraque teriam que ser checadas por outras fontes, o que não foi feito graças a esse ‘jornalismo de gabinete’.

Viagem ao ego

Segundo Barbara, o trabalho de um repórter consiste em ‘ir para a rua e ver por si mesmo [o que está acontecendo]’. Ela diz também que um jornalista precisa entender suas fontes para interpretar, quando necessário, se as informações possuem tendências políticas ou algum ponto de vista de interesse particular.

Em Ribeirão Preto, ela fez questão de explicar que não é possível abordar a mídia americana sem contextualizar o 11 de Setembro. Segundo Barbara, os atentados terroristas de 2001 tiveram um impacto muito grande no país – sobretudo em Nova York, sede do NYTimes. Com medo de novos ataques e aterrorizada com as cenas no World Trade Center, a nação se uniu e deu um voto de confiança a Bush. Inserida nesse contexto, a mídia dos EUA também reflete esse comportamento, por mais que a função social do jornalismo exija um distanciamento em relação aos fatos.

Mesmo considerando as influências do pós-11 de Setembro, Barbara disse que existe uma crise no jornalismo americano, que começou após o caso Wattergate e que vem sendo agravada pela falta de preparo dos profissionais. ‘Hoje existem muitas ‘estrelas’ no jornalismo dos EUA. Esse grupo, após o episódio do Watergate, acredita que pode tudo e acaba cometendo muitos erros’, explicou a jornalista.

Embora estivesse em Nova York no 11 de Setembro, Barbara cobriu os episódios seguintes aos atentados no Canadá. Lá, frustrou-se com a cobertura que seu jornal estava fazendo – segundo ela, superficial e sem conhecer ‘quase nada’ sobre o Afeganistão. Por isso, explicou ela, decidiu se aposentar mais cedo do Times.

Na entrevista que se segue, Barbara não deixou de fazer críticas a um estilo de jornalismo menos compromissado com a verdade. ‘Infelizmente, o NYT tinha e ainda tem repórteres mais interessados em aparecer na capa do que escrever uma matéria correta’, disse, para em seguida indicar o texto de Michael Massing, no New York Review of Books [veja remissão abaixo].

De passagem pelo Brasil, Barbara tem dado palestras sobre jornalismo internacional e técnicas de reportagem em diversas cidades do país. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida na sexta-feira (12/11).

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A mídia americana tem admitido que não realizou uma cobertura crítica o suficiente durante os preparativos para a invasão do Iraque. O New York Times, por exemplo, afirmou, em 26 de maio, que em algumas edições não questionou as versões oficiais do governo dos EUA sobre a existência ou não de armas de destruição em massa. Qual é a sua opinião sobre isso? A imprensa americana falhou no cumprimento de seus princípios básicos?

Barbara Crossette – Acredito que seu comentário sobre não cumprir com as funções básicas do jornalismo vai além do que o NYTimes diz em relação a ter sido mais crítico. Em outras palavras – não sei exatamente as palavras do Times, que devem ser checadas –, a questão não é se o Times foi crítico ou não, mas se estava ou não fazendo seu trabalho. Aqui dois elementos são importantes.

Mencionei que quando os EUA estavam se preparando para a guerra do Iraque, a administração do Bush rotineiramente desconsiderava os especialistas da ONU e de seus inspetores de armas (o que Hans Blix ressalta em seu livro) [Desarmando o Iraque, editora A Girafa]. Na verdade, os EUA perseguiram a ONU até [os inspetores das Nações Unidas] saírem do Iraque. Isso pode ter contribuído para a atenção que os repórteres americanos não deram à ONU e às informações sobre as armas no Iraque. Como eu disse, em resposta a questões ao longo da palestra, um porta-voz da ONU, da Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção (da qual Blix era presidente executivo), me disse que quase não havia interesse das corporações de imprensa de Washington, inclusive o NYTimes, nas informações que a ONU tinha [sobre o Iraque]. O porta-voz Ewen Buchanan não se lembra de ninguém ter pedido essas informações. Quando falei com ele, eu já havia deixado a ONU e o NYTimes e estava escrevendo um estudo sobre a mídia e a política externa para a Foreign Policy Association, de Nova York. Ainda havia a questão da chefia do Times naquelas semanas. O editor executivo Howell Raines, que depois se demitiu por causa do episódio Jayson Blair, e seu diretor não tinham experiência na cobertura do noticiário internacional. Por isso focaram [as fontes de informações sobre o Iraque] em Washington. Assim, repórteres tenderam a brigar por informações exclusivas sobre a administração Bush e a cultivar fontes por lá.

Realmente havia poucos especialistas em armas trabalhando em tempo integral para organizações americanas de mídia. Jornais tinham militares correspondentes – muitos deles estiveram perto do Pentágono. Infelizmente, o NYTimes tinha e ainda tem repórteres mais interessados em aparecer na capa do que escrever uma matéria correta. O New York Review of Books fez uma excelente matéria sobre isso, focando especialmente em Judith Miller. Ela ainda é funcionária [do NYTimes].

Você também mencionou que decidiu se aposentar mais cedo do NYTimes por causa da cobertura do jornal à invasão dos EUA ao Afeganistão. Explique.

B.C. – Foram nas questões que acredito ter mencionado a guerra do Afeganistão. Eu era chefe do escritório do NYTimes na ONU entre setembro de 1994 até julho de 2001, quando fui mandada para o Canadá. Mal tinha começado a trabalhar lá quando aconteceu o 11 de Setembro. Na verdade eu estava em Nova York naquele dia porque tinha um compromisso de aula na faculdade Bard, no campus de Manhattan.

Voltei para o Canadá assim que pude. Não havia vôos e tive que dirigir até lá. Imediatamente fiquei sob a pressão de perseguir potenciais terroristas. Tinha um mito persistente (Hillary Clinton até repetiu isso, o que causou muito incômodo no governo canadense) que alguns seqüestradores do 11/9 entraram nos EUA pelo Canadá. Isso não era verdade. De qualquer forma, senti tamanha pressão para provar o improvável que acabei ficando com a idéia de que estava falhando. O editor de internacional também era novo nesse emprego (como Howell Raines, foi editor executivo). Então, os EUA declararam guerra ao Taleban. De forma geral, a mídia americana não sabia quase nada sobre o Afeganistão. Felizmente, o NYTimes tinha um excelente correspondente lá, Barry Bearak, que estava baseado em Déli. Mas a grande coisa da reportagem vinha de Washington (um aviso do que aconteceria mais tarde no Iraque). Pensei que muito do que foi reportado era superficial e falhou em entender o que os EUA estavam prestes a fazer. John Kerry acertou quando disse que Bush-Rumsfeld ‘entregaram’ a guerra para os criminosos da Aliança Norte do Afeganistão, que foi muito mais destrutiva do que o Taleban. Mas isso tudo é uma outra história.

Então, entre as minhas frustrações na tentativa de escrever do Canadá e assistir das beiradas enquanto a guerra no Afeganistão acontecia, decidi sair, e me aposentei antes.

O NYTimes, nesse meio tempo, quando saí, cobria a ONU apenas esporadicamente. Escrevi por contrato depois disso, mas isso terminou quando tentei convencer um repórter para ele parar de minar a reputação de um funcionário da ONU porque a mulher do repórter tinha perdido o emprego em sua agência [do funcionário]. Meu pecado foi dar um aviso a um ‘estranho’. Pensei que estava privando o jornal de ser usado para interesse pessoal. Mas isso também é outra história. Suficiente para dizer depois que deixei o jornal de vez e não escreverei para ele de novo. Acreditava que naquela época a cultura da redação estava totalmente corrompida. (Um ano depois veio a grande reviravolta, mas a essa altura eu já estava fazendo outras coisas).

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