Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A história como espelho

Inércia é um conceito de física e refere-se à resistência oferecida por um corpo em mudar sua condição de repouso ou movimento.

Aplicado à história, não justifica a crise política no Brasil, mas certamente ajuda a compreender a dimensão dessas ocorrências.

A inércia, na história do Brasil, está ligada à resistência que as oligarquias, de mentalidade escravista, oferecem a uma mudança na condição não de repouso ou movimento, mas de mentalidade.

Convenhamos que as iniciativas nada ortodoxas utilizadas pelo Partido dos Trabalhadores deu munição às oligarquias, com representação na mídia, para desqualificar quaisquer alternativas políticas que não sejam as suas.

Críticos, mesmo ligados ao PT, podem argumentar que a administração Lula não é em nada diferente da anterior, no que têm quase toda razão. Mas o fato, encarado do ponto de vista de inércia, é que qualquer acontecimento serviria de pretexto para uma reação senhorial. Era apenas uma questão de tempo. Delúbio & Cia. apenas facilitaram as operações oligárquicas.

Comunidade de sociólogos

Se houve erros na condução das contas ou dos procedimentos do PT é tão legítimo quanto necessário que sejam investigados e todos os seus autores punidos. Esse é um princípio elementar de direito, sem o que as sociedades humanas não passariam de ajuntamentos em guerra interminável.

E o fato de vivermos em estado de guerra, mesmo com as estatísticas de violência policial devidamente maquiadas, não significa que este seja o estado natural de uma sociedade. Se há violência é porque há uma razão de violência atuando no ambiente social. No Brasil ela é histórica, o que justifica a metáfora da inércia.

A mídia procura a todo custo – sustentada em considerações de ‘cientistas sociais’ que se refugiam na ciência para buscar legitimações tão pessoais quanto passionais – argumentos que justifiquem seus métodos.

Uma certa comunidade de sociólogos, ainda que nem todos os sociólogos possam ser inseridos neste grupo, encontrou na crise política das últimas semanas um palanque de mídia para discursos de referências e preferências pessoais, sem nada de científico.

O primeiro não-sinhozinho

Mas em sociologia, como disse Jules Henri Poincaré, físico-matemático francês que por um detalhe não formulou a teoria da relatividade antes de Albert Einstein, ‘em cada caso se utiliza um método, o que faz dela uma disciplina de muitos métodos e pouquíssimos resultados’.

Se fosse dito aqui que o ex-presidente da República, com seu ego astronômico, não suporta a idéia de Lula, metalúrgico pau-de-arara, ser bem visto no exterior como expressão do que a sociedade brasileira tem de melhor (a capacidade de recriação, ainda que de curta duração, o que nos leva novamente ao conceito de inércia) certamente seria desconsiderado.

Mas quem disse isso com todas as letras foi um jornal francês conservador, Le Figaro, durante a visita de Lula, quando foi ovacionado em Paris por 100 mil pessoas.

O fato de ser um líder carismático e ter origem social que faz dele o primeiro não-sinhozinho a ocupar a presidência da República num país que foi o último a abolir formalmente a escravidão, não livra o presidente brasileiro de desencontros, o que significa que não evita que ele possa falar e fazer bobagens. Nem ele nem nenhum outro homem, presidente ou não.

Tribuna do arcaico

Para isso, para evitar que atos equivocados tomem proporções desastrosas, existe um aparato legal. A ele cabe evitar que se chegue às últimas conseqüências. É o que, numa sociedade minimamente organizada, pode-se chamar de ‘império da lei’.

No Brasil, as elites estão historicamente habituadas a fazer as próprias leis, lastreadas apenas na truculência e no imediatismo de suas pretensões.

Se este princípio legado pela mentalidade escravista prevalecer sobre a racionalidade neste momento, teremos perdido, talvez para sempre, a possibilidade de definirmos um norte, um rumo, enquanto sociedade com potencial, material e humano. De desfrutarmos de sorte menos miserável que a que vimos tendo ao longo destes 505 anos, desde que Cabral e seus homens puseram seus pés por aqui numa formalidade histórica para legitimar um descobrimento que já havia sido feito antes de 1500.

O jornal O Estado de S.Paulo, incapaz de encontrar seus próprios rumos enquanto empresa e veículo de comunicação, publicou, no sábado passado (23/7) uma daquelas fotos editorializadas do presidente da República, sugerindo que estava desorientado, sem uma bússola ao alcance das mãos.

A verdade é que, especialmente a página 2 do Estadão, não é outra coisa senão uma tribuna do que se tem de pensamento mais arcaico, com presença freqüente da Opus Dei para atacar uma ordem que lhes pareceu desde o início desconfortável e improcedente.

Como pode?

O problema, para colocar a questão em termos lógicos, não é, evidentemente, o da crítica. Ela é, ao contrário, profundamente necessária e se insere entre os fundamentos da imprensa. Mas deve ter, no mínimo, qualidade.

A memória de curto prazo que nos caracteriza (não por limitações intrínsecas, mas pela abrangência e diversidade dos problemas que devemos enfrentar, o que nos leva a atacar, por uma limitação natural de energia, apenas os mais imediatos) permite que homens como o ex-presidente José Sarney venham dizer, como fez nas edições dos jornais de segunda-feira (25/7), que ‘o governo perdeu o rumo’.

Talvez os governantes brasileiros nunca tenham encontrado o rumo certo. Ao menos o rumo capaz de permitir que possamos tirar partido de nossa própria potencialidade para amenizarmos a sorte desta curta passagem pelo mundo. E tudo indica que se algum deles vier a se orientar nesta direção o princípio de inércia mais uma vez irá manifestar-se e as diatribes de sempre estarão de volta, com ares de absoluta atualidade.

As edições dos jornais desta segunda-feira sugerem que o presidente foi ‘buscar refúgio’ entre os trabalhadores.

O que queriam eles? Que Lula vá buscar amparo nas dependências da Daslu?

As oligarquias se controlam no uso do termo ‘impedimento’ ou ‘impeachment’, a grafia consagrada pela defenestração de Collor de Mello, porque, apesar de todo o desgaste, o prestígio pessoal de Lula ainda resiste.

– Como pode? É a pergunta indignada dos bastidores.

Sarney e a migração

O desejo das oligarquias é que o presidente e o processo minimamente civilizado que o levou ao Planalto Central (após a transposição de inúmeras armadilhas, entre elas o seqüestro do empresário Abílio Diniz) desmoronassem como um edifício implodido. Então, eles chegariam precedidos de bandas de música, como acontece com freqüência nos ermos miseráveis deste país, proclamando-se os regeneradores da boa ordem.

Para quem tem acompanhado os depoimentos em Brasília, com o irritante rococó de ‘Vossa Excelência’ para qualquer questionamento banal, deve ter ficado alguma impressão do vazio de conteúdo dessas falas.

Certamente não apenas de vazio, mas também de inconsistência e descompromisso com a busca da verdade dos fatos e responsabilização dos trangressores de princípios elementares do comportamento-cidadão.

Pois é este mesmo discurso que nos remete à fase colonial, ao beletrismo bacharelesco das elites inconseqüentes quanto a uma perspectiva mais promissora. É este mesmo discurso recheado de floreios e truques grosseiros de lógica que inviabiliza o debate claro, consistente e necessário para a edificação mínima da cidadania.

Sarney diz que o governo perdeu o rumo. Mas foi exatamente no governo dele que se iniciou a migração brasileira. Até então, estávamos habituados a receber, não exportar, populações em busca das promessas do futuro.

Cal e sangue

O brasileiro abatido como um animal perigoso pela polícia inglesa foi um dos que deixaram temporariamente o Brasil na esperança de alternativa mais promissora que a legada pela história que Sarney gosta de romancear com seus modos provincianos.

Talvez valha a pena lembrar que houve um outro assassinato perpetrado por ingleses, a mando das oligarquias, bem ao lado do Maranhão do clã Sarney, fato pouco conhecido da história nacional. Trata-se da Cabanagem, que campeou pelo Pará entre 1835 e 1840, configurando a mais popular de todas as rebeliões que ocorreram no Brasil, especialmente durante a minoridade de D. Pedro II, no período da Regência, entre 1831-1831.

A Cabanagem foi precedida de uma matança inominável a bordo de um brigue fundeado ao largo da cidade de Belém, o Palhaço.

Nos porões desta galé improvisada estavam empilhados 256 praças e milicianos, do segundo regimento de Belém, rebelados contra a junta de governo, na noite de 21 de outubro de 1823. Sufocados pelo calor úmido dos trópicos, num certo momento, os homens começaram a gritar por ‘ar e água’. Os guardas improvisados do Palhaço, sob comando de um oficial inglês, John Pascoe Greenfell, optaram por uma alternativa que lhes pareceu mais eficiente.

Primeiro, atiraram a esmo contra os porões do navio-prisão. Em seguida, atiraram sobre os rebelados, sacos e sacos de cal e então fecharam as escotilhas. Os poucos relatos registrados pela história falam de um rumor de agonia percorrendo o casco do navio, até que as escotilhas fossem abertas, às 7 da manhã do dia seguinte. A cena foi literalmente digna de Dante: 252 corpos lívidos pela cal, rubros pelo sangue, dilacerados pela brutalidade sem responsáveis.

Claro como a luz do Sol

Greenfell foi um dos mercenários ingleses contratados pelo imperador Pedro I para manutenção da integridade territorial, fato ainda decantado por certa versão da história. O território pode ter sido mantido. Mas os homens, instância que dá sentido a este conceito, não respiravam mais. Greenfell poderia ter sido condenado à corte marcial como responsável pelo genocídio. Mas não foi o que aconteceu. Desembaraçado do crime por manobras legais é cultuado como um dos nomes da história naval no Brasil.

Se a brutalidade tivesse cessado por aí, ao menos haveria a chance remota de interpretá-la como um acidente de percurso. Mas não foi o que aconteceu. Quando a Cabanagem (os rebelados viviam em cabanas de palha de palmeira, daí o nome do movimento) saiu às ruas e tomou com violência o poder em Belém, reunindo negros, índios e mestiços, momentaneamente ao lado de uma direção de fazendeiros, a destruição foi completa.

O governo revidou, inclusive com os mercenários, e o que se viu, apenas entre 1837 e 1840, foi a morte de 30 mil pessoas, a maioria, homens. A oligarquia não deixava dúvidas sobre seus projetos políticos.

Evidentemente, nem tudo é satisfatório nas salas do poder, neste momento. Ao menos parte das denúncias contra abusos parece tão clara como a luz do Sol. Mas isso não justifica movimentos de sabotagem da confiança pública, exatamente a força que pode e deve garantir uma investigação independente, de tudo aquilo tudo que não deveria ter sido feito. E não venham dizer que a teoria conspiratória é pura paranóia. A idéia de inércia mostra que as coisas não são tão imaginárias assim.

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Jornalista