Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

A história de uma crise sem precedentes

Às 6h07 da manhã de 29 de maio de 2003, Andrew Gilligan atendeu o telefone em sua casa, no subúrbio londrino de Greenwich. Do outro lado da linha, como ele sabia, estava John Humphrys, um dos apresentadores do consagrado radiojornal Today, da BBC 4, transmitido de segunda a sexta, das 6h às 9h.

Gilligan, um encorpado repórter de 35 anos, cobria Defesa e Política Externa para a emissora. Experiente garimpeiro de notícias, havia antecipado em primeira mão, por exemplo, a campanha pela erradicação de minas terrestres, que ficaria famosa mundo afora graças ao envolvimento da princesa Diana, e o polêmico plano da União Européia – que acabaria dando em nada poucos meses atrás – de ter uma Constituição.

Ele também mantinha uma coluna no semanário sensacionalista Mail on Sunday, o que não era propriamente católico para os padrões da BBC. Na semana passada, um conhecido o descreveu como um ‘indivíduo individual’ – um lobo solitário, se diria nas redações brasileiras.

No Sunday Telegraph, onde trabalhara antes de se empregar na BBC, Gilligan se destacava pelo gosto de varar noites, por desaparecer sem avisar e por seu caderninho cheio de boas fontes. Vivia para a profissão e era considerado, nas palavras de um editor, ‘um repórter implacavelmente determinado’.

Desde o advento da TV a cabo e desde que, na Inglaterra, um crescente número de estações de rádio e TV particulares começou a latir nos seus octogenários calcanhares, o jornalismo da BBC tratou de ficar mais ousado nas pautas, na apurática e no modo de levar ao ar as suas mercadorias. A contratação do repórter investigativo Andrew Gilligan tinha a ver com essa mudança. (Mas, na sexta-feira passada, dia 30, quando se demitiu, um colega disse na TV: ‘Ele não era um jornalista do tipo BBC’.)

Outra inovação que rompia com as sacrossantas tradições de austeridade da Beeb, como é chamada pelos britânicos, embora fosse praxe na mídia eletrônica em geral, era dar as notícias que se prestassem a isso sob a forma de conversas desempertigadas, ao vivo, entre âncoras e repórteres – tendo estes, ou não, redigido textos para ler ou se orientar, e estando onde estiverem.

E foi para isso que o apresentador Humphrys ligou para a casa de Gilligan naquele começo de manhã de primavera.

 

Carne fresca

Naturalmente, os dois sabiam do que iriam tratar. O repórter, que tinha estado havia pouco no Iraque, onde cobrira a guerra e aquilo que os governos de Washington e Londres imaginavam que seria um relativamente incruento ‘pós-guerra’, avisara o Today que conseguira carne fresca sobre um assunto cada vez mais quente – os arsenais de destruição em massa que o presidente George W. Bush e o primeiro-ministro Tony Blair tinham praticamente jurado que o ditador Saddam Hussein armazenara e com certeza iria usar logo.

Passados mais de dois meses da invasão, os ocupantes anglo-americanos não haviam achado nem sombra das aterrorizantes armas químicas e biológicas ou das instalações onde seriam produzidas. (Pela simples razão de que elas não existiam, anunciou com todas as letras em 21 de janeiro o então chefe do chamado Grupo de Investigação do Iraque, o homem da CIA David Kay.)

Já naquele fim de maio, a opinião pública britânica que se manifestara em massa contra a guerra (ou contra a guerra sem o aval da ONU), amplos setores da mídia, a oposição liberal-democrata e conservadora, e os backbenchers (dissidentes) trabalhistas estavam quase 100% convencidos de que Blair – ou ‘Bliar’, como o acusavam os cartazes de protesto em que ele aparecia com um interminável nariz de Pinóquio – mentira quando garantiu, na Câmara dos Comuns, que a ameaça iraquiana era ‘séria e presente’.

Por isso, o abre do âncora Humphrys, ao chamar Gilligan, dizia que o governo estava sendo duramente questionado sobre as suas alegações antes da guerra, particularmente sobre a afirmação do primeiro-ministro de que, a uma ordem de Saddam, as suas armas estariam em posição de disparo em 45 minutos. E passou a palavra para o repórter. Os ouvintes do Today então ouviram:

‘É verdade. Aquela foi a alegação central do seu dossiê, que ele publicou em setembro, o principal, hã…, argumento, se você quiser, hã…, contra o Iraque, e a principal manifestação da crença do governo britânico naquilo que pensava ser a intenção do Iraque. E o que nos foi dito por um dos funcionários graduados incumbidos de elaborar aquele dossiê foi que, verdadeiramente, o governo provavelmente, hã.., sabia que o número 45 estava errado, mesmo antes de decidir incluí-lo. O que essa pessoa diz é que, uma semana antes da data da publicação do dossiê, era verdadeiramente um produto brando. Não dizia, o esboço preparado para Mr. Blair pelas agências de inteligência verdadeiramente não dizia muito mais do que já era de conhecimento público e, hã.., Downing Street, nossa fonte diz, ordenou uma semana antes da publicação, ordenou que fosse apimentado [sexed-up], para torná-lo mais excitante e ordenou que mais fatos fossem, hã.., descobertos’.

Humphrys interrompeu para perguntar: ‘Será que qualquer dessas coisas tem importância agora, todos esses meses depois? A guerra foi feita e vencida’. ‘Bem, os 45 minutos não é (sic) apenas um detalhe’, voltou Gilligan. ‘Remetia à essência do argumento do governo de que Saddam era uma ameaça iminente, e foi repetida quatro vezes no dossiê, inclusive pelo próprio primeiro-ministro, no prefácio. Então eu acho que isso provavelmente importa.’

Pouco depois das 7h30, Humphrys chamou Gilligan de novo – ao todo, o repórter iria ao ar 19 vezes naquele dia. Mas em nenhuma das outras 18 outras entradas ele tornou a mencionar a questão dos 45 minutos.

Da segunda vez, Humphrys começou por informar que o departamento de imprensa de Downing Street já havia soltado um enérgico desmentido, alegando que o dossiê inteiro fora produzido pelos serviços de inteligência. ‘Será que você está sugerindo, sejamos muito claros sobre isso, que não foi produzido pelas agências de inteligência?’, apertou o apresentador.

‘Não’, foi a resposta. ‘A informação que me disseram que era duvidosa veio de fato das agências, mas elas estavam insatisfeitas em relação a isso, porque elas não achavam que devesse estar ali. Pensavam que – que não foi suficientemente corroborado, e elas verdadeiramente achavam que estava errada.’

 

‘Fuck Gilligan’

Não está claro se a matéria foi ao ar naquele 29 de maio por alguma razão técnica ou de propósito – para coincidir com a chegada de Tony Blair ao Golfo Pérsico, a caminho de um festivo encontro com as vitoriosas tropas britânicas, em Basra, no sul do Iraque.

O fato é que a reportagem ofuscou a incursão triunfal de Blair. Os repórteres da comitiva – e os seus chefes em Londres – só queriam saber daquilo. E a denúncia de Gilligan, como uma praga, acompanhou um enfurecido Blair às etapas seguintes da viagem, Varsóvia e São Petersburgo.

A matéria infernizou a vida de Blair até na grandiosa recepção pelos 300 anos da ex-Petrogrado e ex-Leningrado. Ele teve de ouvir do ministro do exterior da Alemanha, Joschka Fischer, que deveria reconhecer que ‘abusou dos relatórios da inteligência e ludibriou a opinião mundial.

Mais enfurecido ainda estava Alastair Campbell, o estrategista, marqueteiro e manipulador de mídia do primeiro-ministro. Desde o ano anterior, ele estava com a BBC pelas tampas devido à ‘cobertura tendenciosa’ da rede – 8 emissoras nacionais de TV e 10 de rádio no Reino Unido, o Serviço Mundial de televisão em inglês e os programas radiofônicos em 43 línguas, além dos respectivos sites na internet – sobre a adesão de Blair ao militarismo de Bush.

O domingo, 1º de junho, daria ainda a Campbell um motivo pessoal para querer ‘f….’ Andrew Gilligan, como escreveria em no seu diário.

Todos os jornais falavam do dossiê, mas o Mail, além de trazer uma pesquisa mostrando que 2 em cada 3 britânicos achavam que foram enganados por Blair, escancarava a quilométrica manchete, pinçada da coluna de Gilligan: ‘Eu perguntei à minha fonte de inteligência por que Blair nos iludiu a todos sobre as armas de Saddam. Sua resposta? Uma palavra… CAMPBELL’ (em letras garrafais, como se dizia nas redações brasileiras; sem aspas no original).

 

Exagero e cascata

Por tudo que se sabe, ‘Minha fonte de inteligência’ era um exagero. Já ‘um dos funcionários graduados incumbidos de elaborar aquele dossiê’ – como Gilligan se referiu a sua fonte, na primeira aparição no Today da antevéspera – era cascata.

Pois o cientista David Kelly, afinal identificado pelo repórter em 20 de agosto – 34 dias depois do seu suicídio, 43 dias depois de que Campbell mandou vazar engenhosamente o seu nome para a mídia e 9 dias depois que Campbell teve de se demitir – não era nem um espião profissional, nem um funcionário graduado (‘senior official’, foi o termo de Gilligan) e muito menos estava entre os encarregados de redigir o dossiê feito para incriminar Saddam.

Aos 59 anos, biólogo de formação e especialista em guerra química e bacteriológica, Kelly trabalhava para o Ministério da Defesa da Grã-Bretanha. Foi um dos membros mais competentes – e inquisitivos – das equipes de inspetores de armas das Nações Unidas no Iraque, depois da primeira Guerra do Golfo, até serem obrigados a se retirar, em 1998. Ele voltou uma vez ao Iraque ocupado, a serviço do governo, e tinha uma segunda viagem praticamente acertada, quando resolveu cortar os pulsos. (Ninguém tem uma explicação cabal para isso.)

Entre abril e junho de 2002, Kelly foi consultado para a redação do capítulo do dossiê que fazia o histórico do assunto. Não se sabe se foi consultado para algo mais; ele disse que não.

Como especialista em armas de destruição em massa, era também consultado, quando fosse o caso, por repórteres ingleses e americanos. Tinha autorização para falar em background sobre os aspectos científicos do assunto. Segundo um jornalista, ele não tomava a iniciativa de provocar vazamentos, ‘mas dava respostas francas a perguntas honestas’.

Andrew Gilligan não era um dos seus habituais entrevistadores, mas já tinha estado com ele algumas vezes e desconfiava de que o cientista tinha alguma familiaridade com o dossiê. Dias depois de voltar do Iraque, o repórter o procurou. Marcaram um encontro para a tarde de 22 de maio, no Charing Cross Hotel, em cima da estação ferroviária do mesmo nome, no coração de Londres.

 

‘Brincar de nomes’

A única coisa absolutamente certa sobre o encontro é que foi regado a suco de maçã e Coca-Cola (mas não se sabe quem bebeu o quê). Segundo Gilligan, conversaram durante hora e meia; segundo Kelly, 45 minutos – qualquer semelhança com os outros 45 minutos que constam do dossiê é mera coincidência. Kelly disse que aceitou o encontro porque estava curioso para saber o que o repórter teria a contar do Iraque.

Gilligan tomou algumas notas. Textualmente:

‘Transformado semanas antes da publicação para ficar mais sexy. O clássico foram os 45 minutos. A maioria das coisas no dossiê tinha duas fontes, mas aquela tinha uma fonte. Uma fonte disse que levava 45 minutos para reunir os mísseis. Isto foi distorcido. A maioria das pessoas na inteligência não estava feliz com isso porque não refletia a cuidadosa impressão que estavam passando adiante’.

Enquanto ouvia Kelly, Gilligan, segundo diria depois, percebeu que tinha os contornos de uma boa matéria. Ainda segundo ele, quando perguntou como o dossiê havia sido transformado, Kelly respondeu com uma palavra: ‘Campbell’. Teria se seguido o seguinte diálogo:

– O quê? Campbell inventou tudo?

– Não, era informação real. Mas era inconfiável e estava no dossiê contra as nossas vontades.

A versão de Kelly foi diferente. Ao depor perante o lorde-juiz Brian Hutton, nomeado por Blair para investigar o suicídio – no Reino Unido, o Judiciário é subordinado ao Executivo –, Olivia Bosch, uma amiga do cientista, afirmou que Kelly lhe contara que Gilligan mencionou Campbell, dizendo que queria ‘brincar de nomes’ para adivinhar quem foi o responsável por inserir informação no dossiê.

Kelly teria ficado chocado. De início, ele teria se recusado a confirmar ou negar o envolvimento de Campbell, mas, sob pressão do repórter, teria dito, afinal: ‘Talvez’.

Na parte das conclusões do inquérito que trata da conversa entre Kelly e Gilligan, o lorde escreveu não ser possível ‘chegar a uma conclusão definitiva’ sobre o que o cientista disse ao jornalista.

Mas isso não o impediu de escrever que estava seguro (satisfied) de que:

1. Kelly não disse que o governo provavelmente sabia ou suspeitava que a alegação dos 45 minutos era falsa antes de inseri-la no dossiê, e

2. Kelly não disse que o motivo pelo qual a alegação não tinha sido incluída no esboço original do dossiê era ter procedido de uma fonte e as agências de inteligência não acreditavam de fato que fosse necessariamente verdadeira.

No fim, curiosamente, Hutton admitiu que, talvez, ‘Kelly disse mais [a Gilligan] do que pretendia dizer’. O que diz muito das convicções do lorde.

Uma coisa é certa, de todo modo: nem Gilligan conversou só com Kelly sobre o dossiê, nem Kelly só conversou com Gilligan.

 

‘Continue cavando’

Nos dias seguintes ao encontro, o repórter sondou duas fontes no governo sobre a hipótese de o dossiê ter sido refeito – ou ‘substancialmente reescrito’, como se veio a saber que Campbell queria, de comum acordo com Blair – por insistência do marqueteiro.

Uma fonte se recusou a tocar no assunto. Outra teria dito: ‘Continue cavando’. Gilligan procurou ainda um especialista americano em armas de destruição em massa, Gary Samore. Mas dele ouviu apenas que também o governo Bush era alvo de acusações do gênero.

Além de não continuar cavando, o que Gilligan não fez, antes de soltar o verbo no Today, foi checar formalmente com Downing Street a versão que teria sido bancada por Kelly. Ele tampouco voltou a procurar o cientista para que confirmasse as suas palavras.

A gravidade dessas falhas é tremenda. Pois Gilligan não era nenhum foca – e não há de ter esquecido que trabalhava na BBC, a mais exigente, imparcial e confiável rede informativa do mundo.

David Kelly não ouviu o Today de 29 de maio. Nesse dia, ele estava na ONU, em Nova York, reunido com o pessoal do órgão de inspeção de armas que, sob a chefia do sueco Hans Blix e do egípcio Mohamed al-Baradei, voltara ao Iraque em fins de 2002, por decisão do Conselho de Segurança, quando ainda se acreditava possível ‘desarmar Saddam’ sem uma intervenção militar, se cooperasse com as Nações Unidas.

Lá pelas 10 da manhã, hora de Nova York, começo da tarde em Londres, o repórter Gavin Hewitt, da BBC TV, ligou do Television Center, a sede da emissora, no oeste da capital, para o celular do cientista. Hewitt queria ‘repercutir’, como se diz no Brasil, o suposto furo de Gilligan – sem ter a menor idéia de que a fonte do jornalista era o próprio Kelly.

Depois que o cientista se suicidou, Hewitt revelou detalhes do diálogo. Ele começou por dizer que seria uma conversa off the records. Tranqüilizado, quando o jornalista lhe pediu a sua opinião sobre o dossiê, em geral, Kelly fez duas afirmações da maior gravidade. Embora o material levantado pelos serviços de inteligência fosse ‘fundamentalmente razoável’, avaliou, ‘a manipulação do governo entrou em cena’ e o material foi apresentado ‘de forma muito preto-e-branco’.

No dia seguinte, de volta a Londres, Kelly recebeu um telefonema da editora de ciência do programa Newsnight da BBC TV, Susan Watts. Segundo ela, no começo de maio eles haviam falado ‘em off‘ sobre o dossiê. Quando Susan tocou no assunto dos 45 minutos, Kelly mencionou Alastair Campbell. Estranhamente, Susan achou que era maldade e deixou para lá.

 

Pantanoso quadrilátero

Depois do Today, com o fígado decerto devastado pelo arrependimento, ela começou a achar que Kelly tinha aberto o jogo para Gilligan. Tornou então a ligar para o cientista, mas sem avisá-lo de que estava usando um gravador. A fita – que lorde Hutton não se deu ao trabalho de levar em conta nas suas críticas devastadoras a Gilligan e à BBC – foi divulgada no começo da investigação do suicídio.

O que ela contém de essencial para esta narrativa que se concentra no lado jornalístico do pantanoso quadrilátero Blair-BBC-Kelly-Hutton – que mergulharia a Beeb numa crise sem precedentes nos seus 82 anos – é o fato de dar força ao sentido geral das revelações de Gilligan.

Considerando que Kelly não era propriamente um pacifista, nem tinha a menor ilusão sobre o regime de Bagdá, a gravação deixa claro que, se Gilligan errou feio (no caso dos 45 minutos e em falsear o status da sua fonte anônima), acertou em cheio no principal (a ilegítima interferência de Downing Street a fim de que o relatório da espionagem sobre as armas de Saddam servisse de prova do ‘perigo iraquiano’, justificando assim a guerra então em preparo).

Graças a Gilligan, cresce hoje o clamor na Inglaterra por uma investigação efetivamente independente sobre a veracidade do dossiê que Blair ofereceu ao Parlamento em setembro de 2002. Ainda mais que lorde Hutton resolveu, para espanto geral, que esse tema não devia fazer parte do inquérito sobre a morte de Kelly.

O cientista disse a Susan que o principal problema do dossiê, como foi apresentado por Blair, é que deu como verdade comprovada, no presente, o que os espiões achavam que poderia se tornar verdade no futuro – Saddam dispor de um ‘vasto arsenal’ de armas proibidas. Mas se o documento saísse como queriam os profissionais, o argumento de que era preciso invadir o Iraque antes cedo do que tarde perderia quase todo o gás.

E o que mais interessa: no fim da conversa, Susan saca do nome de Alastair Campbell. ‘Tudo que posso dizer’, reage Kelly, medindo as palavras, ‘é o departamento de imprensa de número 10 [alusão ao número do endereço da sede do governo – 10 Downing Street]. Eu nunca encontrei Alastair Campbell’. Só que então ele não se contém: ‘Mas eu acho que é sinônimo de departamento de imprensa, porque ele é responsável por ele’.

Se não fosse um juiz escandalosamente faccioso, inocentando o governo de tudo e culpando a BBC rombudamente por tudo – ‘o próprio Campbell não teria escrito um relatório mais duro’ contra a rede’, observou um comentarista –, lorde Hutton teria balanceado o seu parecer sobre a matéria e a integridade profissional de Gilligan (e a duvidosa integridade de Downing Street), valendo-se da insuspeita fita de Susan Watts.

E ele seria forçado a admitir que Tony Blair, na pessoa de seu pezzonovante Alastair Campbell, não se limitou a cobrar dos chefes da espionagem um dossiê com palavras mais fortes (para dizer a verdade da maneira mais convincente possível). O que ele quis – e conseguiu – foi temperar o documento com alegações no mínimo não comprovadas sobre as intenções de Saddam.

Ou com omissões eloqüentes: às folhas tantas, nas primeiras versões, o dossiê especulava que o ditador não hesitaria em usar as armas mortíferas ‘se o Iraque fosse atacado’. Essa crucial ressalva foi eliminada do texto final.

 

‘Fadiga de Campbell’

Nas suas conclusões, lorde Hutton atacou, de uma tacada, a credibilidade, os procedimentos editoriais e o sistema de accountability da rede – como ela dá satisfações de seus atos ao público que a sustenta. (Na Grã-Bretanha quem tem um televisor paga uma taxa anual de 116 libras, pouco menos de 600 reais, por ano, que vai para a BBC. Não há publicidade comercial na rede.)

Mas não se discute que, tomadas em sentido estrito, as críticas são procedentes.

De fato, por seu teor manifestamente explosivo, capaz de derrubar um governo, a denúncia de Gilligan deveria estar numa matéria escrita – e esta deveria passar pelo pente-fino do editor do Today, como em qualquer redação séria.

De fato, quando Downing Street pôs a boca no mundo, exigindo que a BBC se retratasse, a emissora saiu em cerrada defesa do seu repórter, deixando de investigar se os protestos do governo tinham base, afinal.

E, de fato, a emissora levou quase um mês para examinar as anotações de Gilligan e mesmo então falhou em reconhecer que elas não davam o necessário suporte à mais bombástica de suas acusações (a de que o governo provavelmente sabia ser falsa a referência aos 45 minutos).

Por tudo isso, o presidente da BBC, Gavyn Davies, se demitiu logo depois que lorde Hutton leu o seu relatório, na quarta-feira passada, dia 28. (A propósito, quando Blair nomeou Davies, em 2001, houve quem previsse que ele seria pouco mais do que um pau-mandado do governo. Banqueiro de investimentos – era sócio da corretora Goldman Sachs –, tinha contra si a constrangedora circunstância de que a sua mulher trabalhava para o ministro das Finanças Gordon Brown. Mas os receios, afinal, não se confirmaram.)

E por tudo isso, o diretor-geral da rede, Greg Dyke, extremamente popular na corporação, gravou naquele mesmo dia um pedido de desculpas, levado imediatamente ao ar. O que não impediu que ele também se demitisse, no dia seguinte, em meio a protestos de parar o trânsito em volta de White City, como os londrinos chamam a sede da BBC.

A rigor, ele foi forçado a se demitir porque o Board of Governors da BBC – uma espécie de conselho curador, integrado por 12 membros, que regula e respalda as atividades da organização – não teve estômago, para não falar de outras partes da anatomia humana, que lhe permitisse resistir às intensas pressões políticas do governo. Elas se iniciaram assim que o lorde acabou de ler o seu conveniente (para Blair) relatório. ‘Fadiga de Campbell’, diagnosticou, em resumo, um colunista.

 

‘Baghdad Broadcasting Corporation’

Mas não foram apenas falhas estruturais de gestão, provavelmente derivadas de uma cultura interna de auto-suficiência e senso de infalibilidade, que levaram a BBC a fazer o que fez (e a não fazer o que deveria).

Para começar, o governo já a tratava como inimiga. Na campanha eleitoral de 2001, que deu a Blair o atual segundo mandato, os trabalhistas diziam que a BBC foi mais dura nas críticas ao governo do que a oposição conservadora. Na campanha do Afeganistão, Blair se queixava de que a cobertura da rede exagerava as baixas civis.

Derrubado Saddam, Alastair Campbell subiu pelas paredes ao ouvir o enviado especial da Rádio BBC 4, o mesmo Andrew Gilligan, dizer que ‘o povo, aqui, pode estar livre, mas nestes primeiros dias de liberdade os iraquianos sentem mais medo do que em qualquer outra época. Medo de que as suas propriedades sejam invadidas, as suas filhas estupradas e eles, assassinados’.

Depois, quando a explodiu a crise do dossiê, Campbell aproveitou a sua ida ao comitê de Relações Exteriores da Câmara dos Comuns, em 25 de junho, a fim de depor sobre o caso, para investir como nunca antes contra a rede.

‘Eu digo simplesmente em relação à matéria da BBC: é uma mentira, foi uma mentira’, disparou. ‘É uma mentira que é continuamente repetida, e até que recebamos uma desculpa pública por ela, eu continuarei tratando de fazer com que o Parlamento, pessoas como vocês, e o público saibam que foi uma mentira.’

Nesse mesmo dia, Campbell escreveu no seu diário que se sentia bem melhor, porque ele tinha ‘aberto um flanco na BBC’.

Mas o efeito da fuzilaria foi robustecer a convicção dos conselheiros de que tinham mais era que proteger a independência da BBC em face de uma ofensiva que lhes parecia, com razão, politicamente motivada.

Afinal, no seu depoimento, Campbell disse taxativamente que a BBC tinha uma agenda antiguerra. E não havia quem desconhecesse na rede que a turma de Campbell se referia a ela como ‘Baghdad Broadcasting Corporation’ – o apelido que lhe dera a direita americana.

Em conseqüência, quando Gavyn Davies se reuniu com o conselho, concentrou-se em demonstrar que a emissora tinha feito a coisa certa, em vez de entrar no mérito da matéria de Gilligan.

Disso resultou um comunicado que atestava a imparcialidade da cobertura da guerra feita pela BBC e afirmava que o programa Today prestou um serviço público levando ao ar a matéria sobre o dossiê.

E serviço público teria sido, sem a menor dúvida, não fosse a maneira descuidada como Gilligan a transmitiu da primeira vez e se ele não tivesse tratado do mesmo assunto, logo em seguida, num jornal sensacionalista.

 

Credibilidade 92

Na realidade, como se ficou sabendo, a cúpula da BBC tinha uma atitude para fora e outra para dentro. A posição oficial, para os ingleses verem, era a de segurar as pontas de Gilligan e de cumprir o seu ‘legítimo dever público’, nas palavras do então presidente Davies, de responder ao ‘ataque sem precedentes’ desfechado por Campbell.

Mas as avaliações internas do trabalho do repórter não eram propriamente aclamações em cena aberta. Em 27 de junho, Kevin Marsh, editor do Today, já havia criticado num e-mail ‘a sua linguagem solta e a falta de critério em partes do seu fraseado’. Criticou também a ‘relação algo distante que lhe permitiram ter’ com o programa.

Também Richard Sambrook, o diretor de jornalismo da rede, que publicamente punha a mão no fogo por Gilligan, criticava-o entre quatro paredes. Ele escreveu que embora o repórter fosse ‘extremamente bom para levantar informações, questões de nuance e sutileza no modo como as apresenta não são o que deveriam ser’.

Morto Kelly e iniciada a investigação, Gilligan foi um dos primeiros a depor. Reconheceu que a sua linguagem, na primeira entrada no ar, ‘não foi perfeita’ e que ele e não Kelley foi quem usou inicialmente a expressão ‘sexed up’ – o que não muda o fato de que o dossiê foi, sim, ‘sexed up’, mesmo se se acreditar, caridosamente, como lorde Hutton, que isso só afetou as palavras, mantendo virgem a substância do documento.

O relatório do lorde se desmoralizou pelos extremos de leniência com que tratou o governo, em contraste com as suas chicotadas no lombo da BBC.

Não bastasse que o índice de credibilidade da BBC seja de 92 pontos numa escala de 1 a 100 – maior do que a de qualquer outro órgão de mídia na Grã-Bretanha –, diversas pesquisas, realizadas imediatamente depois da divulgação do relatório, concluíram que a maioria dos entrevistados acha que o lorde foi injusto com a emissora; que a confiabilidade da BBC é de 3 a 5 vezes maior (conforme a pesquisa) que a do governo; e que, para a maioria, em vez do diretor-geral Greg Dyke, o primeiro-ministro Blair é quem deveria ter renunciado.

O apoio da opinião pública e de parte da grande imprensa é o capital mais precioso de que dispõe a BBC. Todos quantos defendem a liberdade de imprensa – e não apenas no sentido jurídico do termo – esperam que a rede cuide desse patrimônio com a obsessão de um avarento. Porque dias piores estão para vir.

 

Arrear a emissora

A questão é a própria sobrevivência de uma BBC pública, independente e competitiva. Não é de agora que uma poderosa aliança de interesses econômicos, políticos e ideológicos, que vai da Grã-Bretanha aos Estados Unidos, quer lançá-la às feras.

Nos anos 1980, quando a Grã-Bretanha era governada pelos neoliberais de Margaret Thatcher, não faltaram propostas para segmentá-la e privatizar as estações de maior audiência. O esquema não foi para a frente – e se imaginava que, com a volta dos trabalhistas ao poder, não se falaria mais no assunto.

Mas o trabalhismo agora se chama New Labour, é business-friendly e não lhe causa desconforto ideológico algum a idéia de enfraquecer, depois emascular a BBC, para eventualmente presentear o mercado com o que ela tiver de mais atraente como negócio.

Mesmo que não vá tão longe, os britânicos não têm mais motivo algum para achar que o governo exercerá em relação à BBC o seu tradicional ‘duty of care’ (o dever de cuidar).

Por partes — e por ordem crescente de importância.

** Blair poderá manter na presidência da rede o interino Richard Ryder, que já foi líder da bancada conservadora nos Comuns e nunca se distinguiu exatamente por defender o jornalismo combativo e autônomo. Para ele, a função da BBC é dar as notícias e não criá-las – o avesso do jornalismo que vai atrás dos podres dos poderosos. Ou Blair poderá nomear um novo presidente ainda mais à direita.

** Blair poderá querer esvaziar os poderes regulatórios do Board of Governors, transferindo-os para o Office of Communications (Ofcom), o equivalente britânico do Ministério das Comunicações brasileiro. Com isso, o governo assumiria o ‘controle externo’ da BBC.

** E, em 2006, quando expira o ‘mandato’ da BBC – o seu sistema de financiamento periodicamente renovado –, Blair poderá tirar o chão debaixo dos seus pés.

Enquanto isso, tramita no Parlamento um projeto que poderá abrir à propriedade estrangeira o controle de emissoras comerciais de TV na Grã-Bretanha.

Não é segredo para ninguém que o magnata da mídia Rupert Murdoch, que nos Estados Unidos controla a intragavelmente apelativa e patrioteira Fox News e, na Grã-Bretanha, a Sky News (além do tablóide Sun e do outrora venerando Times de Londres), está de olho em tudo o que valer a pena abocanhar na mídia eletrônica britânica.

Dinheiro e bons amigos nos lugares certos não lhe faltam. Os seus jornais e emissoras em Londres apoiaram fervorosamente a guerra de Blair e, na mesma medida, não cessam de desancar a BBC.

Desde que Blair se elegeu pela primeira vez, em 1997, controlar a mídia (noticiário e opinião) foi uma prioridade em Downing Street. Antes de Alastair Campbell, quem cuidava disso, com menos truculência talvez, foi Peter Mandelson (caído em desgraça por corrupção).

A isenção com que a BBC cobriu a guerra apenas reforçou na ala mais direitista do New Labour a obsessão em arrear a emissora. Na realidade, ela é um estorvo para todas as direitas devido à influência da BBC World e do site http://news.bbc.co.uk/.

 

Fábrica de bombas

Nos Estados Unidos, os neoconservadores e o bushismo em geral abominam a BBC pelo Iraque que ela vem mostrando e explicando ao mundo, desde o início da invasão – o que fez aumentar a audiência da emissora também entre os americanos que não suportavam o patriotismo troglodita da cobertura de seus canais de TV.

Em Israel, o governo Sharon – que, à maneira de Blair no caso do Iraque, volta e meia já acusava a BBC de ‘pró-palestinos’, descredenciou os seus correspondentes depois que, em 16 de março do ano passado, a emissora levou ao ar um documentário sobre o tabu dos tabus em Israel – a sua fábrica de bombas nucleares, em Dimona, no deserto do Neguev.

De quebra, a BBC contou a tragédia pouco conhecida do técnico israelense Mordechai Vanunu que, em 1986, tirou, e mostrou no estrangeiro, fotos do que se passa nessas instalações. Capturado em Roma pelo Mossad e recambiado a Israel, passou em confinamento solitário 12 anos dos 17 anos a que foi condenado. (A pena expira em 2004.)

Outro documentário, mais recente, mostrou como os padres, na África e na América Central, impedem a distribuição de camisinhas nos postos de saúde e espalham que os preservativos ajudam a transmitir Aids, porque não impedem a passagem do vírus HIV.

 

‘Liberal bias’

Sintomático da aversão dos conservadores de todas as cores à BBC é o editorial desta semana da revista inglesa The Economist, sobre o confltio BBC vs. Blair.

O texto, que considera justificada a ‘verdadeira sova’ que lhe aplicou lorde Hutton, contém uma palavra chave: ‘biased’ (viesado), ao criticar o tipo de jornalismo, de que seria exemplo o da BBC, ‘que torce ou falsifica as supostas notícias para ajustá-las à opinião do jornalista sobre onde está realmente a verdade’.

Bias é a senha que a direita americana usa há pelo menos 10 anos para atacar os supostos desvios liberais (leia-se esquerdistas) do noticiário das três grandes redes de TV, em especial a CBS, e de jornais como o New York Times e Los Angeles Times. ‘Liberal bias’ é tudo que aparece na mídia diferente do que queria que aparecesse o que há de mais reacionário na América.

Em 2002 Bush se fez fotografar empunhando – e tornando famoso da noite para o dia – o até então obscuro livro Bias – a CBS insider exposes how the media distort the news, de Bernard Goldberg. Trata-se de uma catilinária macartista que tenta provar que a grande imprensa deturpa os fatos porque tem uma agenda, como diria o inglês Campbell, que, além de facciosa, bate de frente com os valores compartilhados pela esmagadora maioria dos americanos.

Na realidade, como demonstrou o jornalista Eric Alterman, no livro What liberal media? The truth about bias and the news, amparado em notável trabalho de pesquisa, não só o noticiário que chega ao americano típico é dominado pelo conservadorismo, como também a mídia ‘liberal’ é hoje muito mais conservadora do que os conservadores dizem – de tanto que ela tratou de se defender da acusação de viés.

Isso não é uma digressão. Em face da maré montante de chauvinismo político e tabloidização do noticiário em língua inglesa dos dois lados do Atlântico Norte, a BBC representa, por ser um paradigma de honestidade e coragem, uma barreira que precisa ser removida.

A sua liquidação, tenha a forma que tiver, é necessária para a direita afirmar de vez a sua hegemonia na formação das opiniões, aumentando, ao mesmo tempo, a oligarquização da mídia – o que é letal para o jornalismo que tira o sono dos que têm culpa em cartório.

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(*) As informações deste texto foram extraídas principalmente do noticiário da imprensa britânica desde a denúncia que deu origem à crise, telejornais da BBC nos últimos dias e da esplêndida reportagem The David Kelly Affair, de John Cassidy, publicada na edição de 8 de dezembro de 2003 da revista New Yorker. A interpretação é do autor.