Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa e as metáforas da chuva

Alegoria possível do temporal político que se acumula sobre Brasília, as chuvas pesadas que desabaram em São Paulo no final da tarde de terça-feira (24/5) e durante a madrugada da quarta mais uma vez evidenciaram não só a enorme fragilidade da cidade mas a sensação de estarmos confinados a um ciclo de eterno retorno.

Na quinta-feira, quando trataram da inundação, as edições dos jornais de São Paulo foram de uma obviedade frustrante. Limitaram-se ao factual como se essa fosse a realidade última do mundo: as avenidas Marginais inundadas, filas intermináveis de veículos arrastando-se à velocidade de tartaruga, dramas de quem perdeu seus bens e cenas de mundano pugilato político entre prefeito e governador.

O Estado de S. Paulo conseguiu ser absolutamente simplório na sua primeira página. Sua foto de capa, apertada em três colunas, parecia referir-se a um acontecimento ocorrido do outro lado do mundo. Ao contrário da Folha de S. Paulo, que abriu sua metade superior da primeira página com uma imagem dramática – no centro da imagem, um contundente desmentido: a mensagem do governo do estado destacando a ausência por três anos consecutivos de inundações do rio Tietê.

Nas páginas interiores, Estadão e Folha não se distinguiram.

Um articulista desses que há algum tempo sentava-se numa mesa nos limites de uma editoria – tipos calados por ver e ouvir mais que falar – descreveria cenas capazes de estimular alguma reflexão sobre nossa sorte enquanto sociedade nacional.

Mas numa época de superficialidade absoluta, refletir, mesmo sobre o cotidiano, equivale a um sentimento de politicamente incorreto, um complexo de Atlas, pela sensação de se carregar nos ombros o peso do mundo – à época de Heródoto confundido com a esfera celeste.

Escala cósmica

Em sua manchete principal de quinta-feira (26/5), a Folha destacou que ‘São Paulo vive caos com chuva recorde’, fazendo um ‘recorte’, como diriam psicanalistas lacanianos, sobre a aventura de viver na cidade.

A verdade, ou algo mais próximo disso, é que a cidade incorporou o caos, palavra também de origem grega (Kaos) para traduzir uma confusão dos elementos antes da criação do Universo. Como personificação da vida primordial, quando a ordem ainda não havia sido imposta aos elementos para formar o Cosmos (do grego Kosmo, com significado de harmonia), o caos teria gerado Érebo (noite), Hemera (dia) e o Éter (personificação do céu superior, onde a luz é mais pura).

Como se vê, o caos traz em si o potencial tanto da criação quanto da destruição, dependendo da evolução dos acontecimentos.

Em escala cósmica houve evolução para um universo com leis onde, em determinado momento, ocorreu o que se chama de ‘quebra de simetria’. Matéria e antimatéria de alguma maneira se separaram e aqui estamos nós para testemunhar esses acontecimentos.

Mas na maior cidade brasileira, espelho da realidade nacional, a potencialidade do caos parece restrita a uma única possibilidade: a da desorganização, sentido consagrado pelo uso. O que significa dizer que acontecimentos que foram possíveis em escala cósmica, forjando um universo harmonioso (mesmo abrigando a violência de estrelas e galáxias explosivas, além de buracos negros que engolem tudo que se aproxima a certa distância crítica) parecem improváveis em escala paulistana/brasileira.

Perda irreparável

Nos debates que precederam as últimas eleições municipais, os dois principais candidatos – a derrotadas Martha Suplicy e o eleito, José Serra – se acusaram por fuga de empresas que teriam abandonado a cidade por uma, outra, ou muitas razões.

Nenhum deles teve a honestidade de reconhecer que a cidade não suporta mais o gigantismo e, da mesma forma que uma estrela, para continuarmos na analogia cósmica, curva-se sob seu próprio peso. Os jornais fizeram ouvidos moucos a essa patifaria lógica.

Além de certo limite, em torno de 100 massas solares, uma estrela simplesmente se evapora, sem chegar a se formar, por carência de gravidade para se contrapor ao que os astrofísicos chamam de pressão de radiação. Pense numa panela de pressão ao fogo com sua válvula entupida para ter uma idéia do que é uma dessas ocorrências cósmicas.

Neste país, se um dia tivemos noção de Cosmos, no sentido conferido pelos gregos, de ‘harmonia’, perdemos esse conhecimento bem cedo. E o desesperador é que parece não haver nada capaz de resgatar essa perda, tanto em escala da cidade quanto do país. Daí a possibilidade de as chuvas destruidoras da semana passada serem uma metáfora do que paira sobre os céus de Brasília.

Razão e sensação

O poder é surdo ao clamor popular, o que talvez explique a ironia de Maria Antonieta (1755-1793), a desenvolta rainha de Luis 16, ao sugerir a massa delicada do brioche para amenizar a fome de pão preto consumido pela França revolucionária.

Aqui (São Paulo) a cidade cresceu desordenadamente. As fontes d’água foram contaminadas exigindo captações cada vez mais distantes. Os rios foram transformados em esgotos, confinados eles mesmos, pela ocupação sem critério. As ruas foram todas pavimentadas, o que é razoável, mas não sobraram espaços verdes capazes de absorver chuvas mais caudalosas. Tudo camuflado sob a noção falsa e manipulada do progresso. Quando as chuvas são mais intensas, o desastre é tão previsível quanto garantir o nascimento do Sol.

Lá (Brasília) a corrupção, que chegou com as caravelas, depois de devastar o império marítimo português, parece sobreviver como cracas em pleno Planalto Central. Vivíparos (filhotes já nascem bem desenvolvidos, sem passar pelo estágio do ovo) e hermafroditas (por reunir os dois sexos), essas criaturas normalmente sobreviviam em cascos de navios e no corpo de outros animais marinhos, ameaçando-os de naufrágio e de esgotamento da vitalidade.

Os jornais, que já foram mais críticos e por isso mesmo abrigaram maior amplitude intelectual, tanto em suas direções quanto nas redações, estão reduzidos a uma pálida idéia dessa imagem do passado. Que contribuições podem trazer para o repensar da cidade (ou do país) quando eles próprios não sabem direito para onde vão?

Orientar-se (encontrar o Oriente, onde o Sol nasce e a partir daí estabelecer os pontos cardeais) é o desafio comum que não parece promissor a partir das acusações mútuas entre prefeito e governador sobre os motivos por trás da inundação na terça e quarta-feira fatídicas. Cada um deles em busca da solução tópica, da lógica fácil que, numa sociedade sem reflexão, carece de filtros para permitir o acesso ao poder.

Em Brasília, ministros procuram patética e desesperadamente inibir o inevitável: a exposição pública de negociatas escusas nos bastidores do poder. A oposição, carniceira como toda ave de rapina, agita-se nervosamente procurando a melhor posição à mesa, no banquete das entranhas em decomposição.

A vida social, política, econômica, em certos momentos parece ser um continuum de acontecimentos naturais, como se as ocorrências fossem tão inseparáveis como no espectro eletromagnético, onde a única diferença entre a luz visível e o infravermelho ou a emissão em rádio está no comprimento da onda.

Não há nenhum amparo científico numa idéia como essa. Mas quando a sensação é mais intensa que a racionalidade, isso pode nem ser o mais importante.