Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa no banco dos réus

 

A imprensa esteve no banco dos réus durante o julgamento do motoboy Lindemberg Alves, que matou com dois tiros a ex-namorada, a estudante Eloá Pimentel, de 15 anos, em outubro de 2008, após um sequestro de mais de 100 horas. Para a equipe de defesa de Lindemberg, parte da culpa do assassinato deveria ser dividida com a imprensa, que teria espetacularizado e prolongado o sequestro, e com a polícia, que teria tomado decisões equivocadas durante a ação.

Inconformado com o fim do relacionamento, Lindemberg invadiu o apartamento onde Eloá estava com três amigos, em Santo André, na Grande São Paulo. Os dois meninos logo foram liberados. Nayara Rodrigues, a melhor amiga de Eloá, foi solta no segundo dia do sequestro, mas voltou ao local para ajudar a negociação. Tornou-se refém novamente e acabou atingida no rosto por Lindemberg quando o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate) da Polícia Militar de São Paulo invadiu o apartamento. Após um julgamento marcado por bate-bocas, Lindemberg foi condenado a 98 anos e 10 meses de prisão.

O Observatório da Imprensa exibido ao vivo pela TV Brasil na terça-feira (28/2) discutiu a interferência da mídia neste dramático episódio. Desde as primeiras horas do sequestro até seu trágico desfecho, os meios de comunicação promoveram uma intensa cobertura. Canais de televisão e emissoras de rádio transmitiam em tempo real todos os passos da polícia, as exigências do sequestrador e a agonia das famílias envolvidas.

O medo invade a casa do telespectador

Programas como A Tarde é Sua, comandado pela apresentadora Sônia Abrão, chegaram a entrevistar Lindemberg ao vivo e tentaram negociar sua rendição. Durante o julgamento, a defesa de Lindemberg apresentou uma hora e meia de gravações de reportagens de TV daquela época em que a atuação do Gate e da imprensa é questionada.

Para discutir este tema, o programa contou com a participação no estúdio do Rio de Janeiro da jornalista Sylvia Moretzsohn, que é professora de Jornalismo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde também atua no programa de pós-graduação em Justiça Administrativa. Sylvia foi colaboradora da revista Discursos Sediciosos, do Instituto Carioca de Criminologia. No estúdio de São Paulo o convidado foi o jornalista Renato Lombardi, comentarista de assuntos ligados a Segurança e Justiça da TV Record e do Jornal da Cultura. Lombardi foi repórter especial dos jornais O Estado de S.Paulo e O Globo e da TV Bandeirantes.

Em editorial, Alberto Dines sublinhou que a imprensa deve ter acesso a qualquer evento público, mas a cobertura jornalística não pode interferir no desenrolar de um acontecimento. “A liberdade de informar tem condicionamentos de ordem moral e social que não devem ser violados para que não se justifiquem as limitações ao acesso de informações. Não se trata de uma questão teórica, é concreta, faz parte do dia-a-dia de qualquer Redação”. Para Dines, a superexposição do criminoso pode ter exacerbado a sua paranoia e ajudado a criar um “clima” que levou ao trágico desfecho.

Jornalista no papel da polícia

A reportagem exibida antes do debate ao vivo mostrou a opinião de jornalistas e especialistas em segurança pública. Rodrigo Pimentel, capitão reformado da Polícia Militar do Rio de Janeiro e comentarista de TV, disse que um dos pontos mais controversos da atuação da mídia no caso Eloá foi o fato da apresentadora Sônia Abrão ter se colocado como um agente apaziguador ao conversar – sem preparo técnico e ao vivo – com Lindemberg. “Com certeza ela não queria apaziguar nada. Ela queria um furo de notícia. Ela queria conversar com o bandido da vez, que chamava a atenção de todo o país”.

Pimentel ponderou que se a apresentadora tivesse avaliado as consequências negativas que o gesto poderia ter para a negociação da polícia, não teria feito contato com o sequestrador. O capitão criticou a transmissão ao vivo da invasão tática do apartamento. Para Pimentel, caso o sequestrador tivesse acompanhado em tempo real as imagens da polícia posicionando uma escada na janela, o desfecho do caso poderia ser ainda pior. “É quase criminoso o que essa emissora fez. No entanto, essa emissora seguiu as orientações e tentou achar brechas nas limitações da Polícia Militar de São Paulo, que deveria ter planejado um cerco muito maior”, disse o comentarista. Pimentel acredita que a autorregulação da mídia e a conscientização dos jornalistas sobre o impacto dos seus atos podem promover uma mudança concreta na cobertura de assuntos de segurança pública.

A imprensa, na opinião da colunista da Folha de S.Paulo Keyla Gimenez, teve uma grande influência no desfecho do caso a partir do momento em que saiu do papel de transmissora das informações e se transformou em negociadora. Keyla avalia que, quando a equipe de defesa de Lindemberg, comandada pela advogada Ana Lúcia Assad, anunciou que levaria ao tribunal a tese de que a imprensa também tinha uma parcela de culpa no assassinato, a mídia passou a desqualificar a atuação da advogada. “Essa moça automaticamente virou uma inimiga da imprensa porque a imprensa não gosta de ser questionada. Ela acha que está o tempo todo certa, que ela está ali acima de tudo, do bem e do mal. Então, a partir do momento que ela colocou a imprensa como um fator, um agente que poderia ter contribuído para este desfecho trágico, ela perdeu não um aliado, mas ganhou um inimigo.”

O poder das câmeras

Muniz Sodré, professor de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sublinhou que um caso de violência transmitido ao vivo ganha grandes proporções. “Quando você fala para a televisão, você fala para que todo o mundo lhe veja. É completamente diferente. Você fala com um controle e você fala também para agradar, para satisfazer. Porque a iluminação, a reprodução, de uma forma lhe controla. A pessoa é outra. É como um objeto, uma coisa a ser fotografada. Ele está agindo para a câmera, para a televisão, para um público. Quando essa arma disparou, não é a sanidade – ele não é só um psicótico, neurótico, maluco. Ele é alguém fotografado, televisionado, filmado”.

Na avaliação do crítico de TV e jornalista José Armando Vanucci, não é possível culpar a imprensa pela atitude do motoboy, mas o caso pode levar a uma reflexão sobre a ação da mídia e evitar novos erros. “Nesses momentos, o executivo de televisão tem que ser muito mais jornalista do que executivo de televisão”, disse.

O Observatório também debateu um polêmico ponto do projeto de reforma do Código Penal que criará atenuantes para crimes onde a participação da mídia tenha sido abusiva. Em casos de condenação, a pena poderia ser reduzida em um sexto se o juiz entender que o acusado tenha sofrido violação dos direitos do nome e da imagem pelo abuso degradante dos meios de comunicação. A proposta ainda será votada pela comissão. Se aprovada, passará pela avaliação do Senado e da Câmara e seguirá para a sanção da presidente Dilma Rousseff.

Mais uma celeuma

O programa entrevistou o desembargador José Muiños Piñeiro Filho, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, integrante do subgrupo que trata da parte geral do Código Penal. O desembargador explicou que a proposta cria atenuantes e agravantes para outras situações e frisou que a imprensa deu destaque apenas a uma das agravantes. “A proposta mais polêmica é a que diz que se o juiz, na hora da condenação, verificar que o acusado sofreu abuso na divulgação dos fatos a ponto de colocá-lo – ou a seus familiares – em uma situação degradante, poderá fazer uma compensação moral. Nenhuma censura, ninguém está dizendo que a imprensa não pode trabalhar, divulgar os fatos. Isso seria inconstitucional”.

Para o deputado federal Alessandro Molon (PT-RJ), relator da subcomissão de Crimes e Penas da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a proposta é “fora do lugar e despropositada”. “Uma coisa é o crime praticado, a conduta do criminoso, a sua motivação e, portanto, a pena que ele deve receber. E outra coisa é de que maneira isso foi retratado ou trabalhado pela imprensa. São duas coisas completamente separadas. Não pode o Estado, por conta dessa exposição da imagem do criminoso pela imprensa, que é livre e deve continuar livre, reduzir uma pena que deve ser aplicada a alguém”, criticou o deputado.

No debate ao vivo, Renato Lombardi ponderou que os jornalistas não são os vilões no caso Eloá. Lombardi ressaltou que a intenção da apresentadora Sônia Abrão ao telefonar para Lindemberg era demovê-lo da ideia de atirar em Eloá e nos outros reféns. O jornalista explicou que, em casos de sequestro, há um pacto informal entre a polícia e a imprensa sobre o que pode ser divulgado sem que se atrapalhe as negociações. “Mas a partir do momento em que você consegue falar com o sequestrador e coloca ele no ar, você pede: ‘olha, acaba com isso, com essa história’. O jornalista está fazendo o papel dele. O jornalista não quer acelerar o sensacionalismo”, disse Lombardi.

Para o repórter, Lindemberg não é um “coitadinho”. Durante o sequestro, o criminoso assistia à cobertura das mídias eletrônicas e falava ao telefone. Com a experiência de décadas atuando em coberturas de violência, Lombardi avaliou: “Não tem como você ter a oportunidade de conversar com alguém mantendo uma pessoa refém por tantas horas e deixar de conversar com essa pessoa. Não tem como. Agora, não é o jornalista que tem que dizer para o sequestrador ‘você tem que fazer isso ou aquilo’. Nada disso. Eu converso, entrevisto para depois poder retratar”.

A busca pelos limites

Sylvia Moretzsohn discordou de que seja lícito um apresentador de televisão ou jornalista interferir em um processo de negociação comandado pela polícia. “Eu acho completamente abusivo, não tem o menor sentido”, criticou a professora da UFF. Os meios de comunicação devem estabelecer limites claros para a sua atuação. Para Moretzsohn, a mídia não costuma divulgar outros casos de sequestro em andamento, em parte, porque não conhece o local do cativeiro. Moretzsohn pontuou que não é possível assegurar que o desfecho do sequestro seria diferente se a imprensa não tivesse feito uma cobertura intensa em tempo real porque este é um crime passional, mas é certo que a mídia ajudou a prolongar o caso.

A autorregulação da mídia foi discutida no estúdio. Dines comentou que apenas o bom senso dos jornalistas não é suficiente nestes casos. É preciso uma autorregulação rigorosa que determine procedimentos de conduta e limites para evitar desfechos como o do caso Eloá. Para Lombardi, o caminho seria um diálogo com a mídia. “As polícias hoje têm gente capacitada para discutir com a mídia. E a mídia não está aqui para querer mandar matar ninguém”, disse.

Sylvia Moretzsohn não vê na autorregulação a melhor saída para a questão. Uma regulação efetiva – mas que passe longe da censura prévia – teria efeitos mais concretos. “A gente não tem tradição em discussão sobre Ética, que significa impor limites. É curioso que a imprensa, de uma forma geral, fala ‘nós defendemos a Ética, somos muito éticos’, mas Ética exige limites, responsabilidades. O que é responsabilidade? É saber até onde pode ir”. A solução seria um acordo firmado entre entidades de classe e a sociedade civil que determinasse limites e sanções para a atuação da imprensa. No entanto, a professora acredita que a proposta não seria bem aceita pela mídia.

***

Questão concreta

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 628, exibido em 28/2/2012

Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.

A imprensa deve ter acesso a qualquer evento público, esta é uma cláusula pétrea em qualquer democracia. Mas há uma contrapartida com a sociedade que a imprensa geralmente esquece de atender: a cobertura jornalística não pode interferir no desenrolar de um acontecimento, sobretudo quando se trata de uma cobertura ao vivo, em tempo real, de um acontecimento onde a vida de inocentes está ameaçada.

Em outras palavras: a liberdade de informar tem condicionamentos de ordem moral e social que não devem ser violados para que não se justifiquem as limitações ao acesso de informações.

Não se trata de uma questão teórica; é concreta, faz parte do dia-a-dia de qualquer redação. No recentíssimo julgamento do assassino de Eloá Pimentel, a questão foi intensamente discutida porque o acusado, Lindemberg Alves, depois de sequestrar a ex-namorada, foi entrevistado ao vivo por diversas emissoras de TV. Ao invés de arrefecer o impulso assassino, a exposição do criminoso aparentemente exacerbou sua paranoia e criou o clima para que cometesse os desatinos.

O mesmo pode acontecer numa manifestação de rua quando, sentindo-se observados, os manifestantes são inconscientemente estimulados a ultrapassar os limites.

Em qualquer caso, este é um vale-tudo do qual a imprensa responsável deve manter-se afastada.

Leia também

Revisitando os dias de cão — Sylvia Debossan Moretzsohn