Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A imprensa reage à doutrina Bush

A investigação de um promotor com o objetivo de tornar públicas informações confidenciais, em uma aparente tentativa do governo Bush de punir um oponente político, sofreu um terrível desvio. Esta investigação tornou-se uma grave ameaça à liberdade de imprensa e à proteção vital que ela garante contra delitos governamentais.

A realidade da ameaça chegou a nós na semana passada, quando um juiz federal em Washington condenou a repórter do Times Judith Miller a uma pena de até 18 meses de prisão por se recusar a testemunhar perante um grande júri. O caso em questão visa descobrir quem informou ao colunista Robert Novak a identidade da agente secreta da CIA Valerie Plame, mulher do ex-embaixador americano Joseph Wilson. Judith, que nunca escreveu matérias sobre a agente secreta, foi solicitada a comparecer ao tribunal para descrever qualquer conversa que tenha tido com funcionários do governo. A ameaça ao jornalismo foi reforçada na quarta-feira, 13/10, quando o juiz Thomas Hogan decidiu por uma sentença de prisão ao repórter da revista Time Matthew Cooper, pelo mesmo motivo.

As sentenças recebidas pelos dois jornalistas estão em suspenso, aguardando o recurso de apelação, que deve ser julgado no próximo mês. O espectro de repórteres sendo presos simplesmente por cumprirem seu trabalho é algo que deveria preocupar a todos que reconhecem a importância da Primeira Emenda e o papel essencial da imprensa livre em uma democracia.

Cooper, que escreveu um artigo onde dizia que ‘alguns funcionários do governo’ haviam identificado a agente da CIA, chegou a testemunhar sobre suas conversas com Lewis Libby, chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney. Judith negou-se a testemunhar. Depois do testemunho de Cooper, o promotor o intimou novamente, exigindo que ele identificasse outras fontes. Desta vez, Cooper se recusou a comparecer ao tribunal com base na Primeira Emenda.

Há outras questões em jogo, entre elas a decisão do promotor Patrick Fitzgerald de forçar Judith a revelar seus contatos com funcionários governamentais – mesmo sem ela ter escrito alguma matéria sobre a controversa publicação da identidade da agente da CIA. Fitzgerald já havia intimado a repórter a liberar seus registros telefônicos em uma investigação anterior. A insistência do promotor levanta no mínimo a percepção de que ele estaria molestando Judith, ou a de que ele estaria tentando pressioná-la neste segundo caso para conseguir resultados do primeiro.

O que permanece um mistério é por que Novak, o colunista que primeiro tornou público o nome de Valerie Plame, aparenta não sofrer nenhuma intimação ou ameaça. Novak permanece estranhamente em silêncio sobre as sentenças de prisão recebidas por seus colegas – que as enfrentam simplesmente por defenderem princípios que também o protegem.

O juiz Hogan determinou que o direito de um repórter em proteger a identidade de suas fontes não existe perante o grande júri. Ele afirmou também que o promotor seguiu os padrões corretos utilizados por tribunais antes de ordenar a um repórter que revele suas fontes confidenciais. Há razões para duvidar desta conclusão, e o caráter confidencial dos arquivos do promotor sobre o caso dificultam a certeza. Nem os repórteres condenados e seus advogados puderam ter acesso aos documentos de Fitzgerald.

Não importa o quanto os privilégios dos jornalistas são regulados, decisões anteriores da Suprema Corte os protegem de assédio e de caçadas jurídicas como esta. A situação aponta para a sabedoria das leis que reconhecem e protegem a relação especial entre jornalistas e suas fontes. O Congresso deveria seguir este caminho.



ASPAS
Frank Rich

‘Novo ‘Todos os Homens do Presidente’ é preciso’, copyright Folha de S.Paulo / The New York Times, 16/10/2004; íntegra, em inglês, em (http://www.nytimes.com/2004/10/17/arts/17rich.html?pagewanted=1&th&oref=login)

‘O poder do cinema é tamanho que a primeira imagem que a palavra ‘Watergate’ nos sugere, passadas três décadas, não é a de Richard Nixon, mas a da dourada dupla Redford e Hoffman saindo em resgate do país no filme ‘Todos os Homens do Presidente’. Mas, se a nossa atual Presidência mostra sinais de uma síndrome de Watergate, ainda não chegamos à conclusão imortalizada por Hollywood, na qual nossos heróis finalmente levam Nixon a renunciar, em seu segundo mandato.

Estamos de volta, em lugar disso, aos primeiros passos do filme, ao primeiro mandato, antes dos crimes cometidos na invasão do edifício Watergate, quando ninguém havia ouvido falar de Woodward e Bernstein. Naquela época, uma Casa Branca arrogante e furiosa com a cobertura desfavorável que vinha recebendo da imprensa por conta de uma guerra mal conduzida e impopular, continuava a voar alto, enquanto reprimia com impunidade qualquer repórter ou organização noticiosa que contestasse a mensagem, difundida de maneira concentrada e controlada, de que a vitória estava a um passo.

Foi então que o vice-presidente Spiro Agnew, em discurso redigido por seu assessor Patrick Buchanan, tentou desacreditar a imprensa como uma elite. Foi então, igualmente, que o secretário da Justiça John Mitchell, sob o pretexto de proteger a segurança nacional, solicitou que fossem instaladas escutas nos telefones de Hedrick Smith, do ‘New York Times’, e de Marvin Kalb, da rede de TV CBS, bem como ordenou investigação completa pelo Serviço Federal de Investigação (FBI) sobre Daniel Schorr, também da CBS. Hoje, é o Departamento da Justiça dirigido por John Ashcroft, também invocando a ‘segurança nacional’, que espera obter os registros telefônicos de Judith Miller e Philip Shenon, do ‘New York Times’, alegando que essa medida, virtualmente sinônima de uma escuta, é justificada por artigos de autoria deles sobre as organizações de caridade islâmicas e sobre o terrorismo, publicados há quase três anos.

Alarme

‘O direito fundamental dos norte-americanos de penetrar e criticar o funcionamento do governo, por meio de nossa imprensa livre, está sob ataque como nunca antes’, escreveu William Safire. Quando um egresso da Casa Branca de Nixon diz que nossa imprensa está sob um ataque ‘jamais visto’, é melhor escutar. O que o alarma agora são os esforços de Patrick Fitzgerald, o promotor especial apontado para o caso Valerie Plame-Robert Novak, para ameaçar repórteres do ‘New York Times’ e da revista ‘Time’ com sentenças de prisão caso não revelem suas fontes. Dado o fato de que a repórter em questão do ‘New York Times’ (Judith Miller, uma vez mais) não tenha sequer escrito um artigo sobre o tema da investigação, a atitude de Fitzgerald é absurda a ponto de levá-lo a delinear um complô de ficção científica.

Assim que Woodward e Bernstein começaram a investigar Watergate, Nixon armou uma trama de vingança econômica ordenando investigações da Comissão Federal de Comunicações (FCC) sobre as estações de TV controladas pela matriz do ‘Washington Post’. A Casa Branca atual vem praticando intimidação preventiva da mídia, de maneira semelhante à sua doutrina de guerra preventiva. O presidente da FCC, usando o seio de Janet Jackson e a boca de Howard Stern como pretextos, abalou a Viacom, que transmitiu as infrações desses dois comunicadores contra a ‘decência’, a ponto de levar o presidente do conselho da empresa, Sumner Redstone, que se descreve como ‘democrata liberal’, a anunciar abruptamente seu apoio à reeleição de George W. Bush. ‘Voto no que é bom para a Viacom’, explicou.

A Viacom está longe de ser a única gigante da mídia atemorizada diante da perspectiva de que a atual Casa Branca ameace seus interesses corporativos, caso saia da linha. A recusa da Disney de distribuir o politicamente carregado ‘Fahrenheit 11 de Setembro’, de Michael Moore, em um ano eleitoral cheiraria menos mal se a empresa aplicasse princípios iguais às estações de rádio controladas por sua subsidiária ABC, onde as declarações polêmicas e igualmente parciais de Rush Limbaugh e Sean Hannity são ouvidas a cada dia. Mesmo um projeto cinematográfico discreto que conflita com os dogmas da era Bush causou medo à maior empresa de mídia do mundo, a Time Warner, que controla a rede de notícias CNN. A divisão Warner Brothers do grupo, que estava pronta para lançar uma versão especial em DVD de ‘Três Reis’, filme crítico à primeira guerra do Golfo Pérsico, dirigido por David O. Russell em 1999, subitamente cancelou um item adicional que a versão 2004 conteria, um novo documentário de Russell criticando a atual guerra.

‘Brincadeira’

Para compreender a espécie de jornalismo que o governo Bush espera dessas empresas, basta estudar aquelas que já se tornaram suas colaboradoras. A Fox News é barulhenta o suficiente quanto às suas preferências políticas, chegando ao extremo de colocar em seu website um artigo com citações fictícias de John Kerry. (Depois de muitos protestos, a empresa se retratou dizendo que o artigo ‘era uma brincadeira’.) Mas a Fox é apenas a ponta do império de Rupert Murdoch. Quando o ‘New York Post’ cobriu a divulgação do relatório do principal inspetor de armas da Agência Central de Inteligência (CIA), Charles Duelfer, publicou o artigo na página 8 e não mencionou a conclusão de que ‘nenhum estoque de armas de destruição em massa foi encontrado no Iraque’ antes do 16º parágrafo.

É difícil imaginar uma operação mais insidiosa que a de Murdoch, mas o Sinclair Broadcast Group talvez atenda a essa descrição. Proprietário ou operador de 62 estações de TV em todo o país, incluindo afiliadas das quatro grandes redes nacionais de televisão, a empresa atrai pouco interesse da mídia porque é invisível em Nova York, Washington e Los Angeles, onde não controla estações. Mas a Sinclair, cujos principais executivos são todos doadores no limite máximo de dinheiro para a campanha de Bush, foi detectada pela primeira vez no segundo trimestre, quando o senador John McCain a acusou de ‘falta de patriotismo’ ao ordenar que suas oito estações da rede ABC suspendessem a transmissão do programa ‘Nightline’ no dia em que Ted Koppel leu no ar o nome das 721 baixas norte-americanas no Iraque. Isso aconteceu um dia depois que Paul Wolfowitz, secretário assistente da Defesa, subestimou as baixas norte-americanas ao depor, diante do Congresso, que o número não passava de 500.

Como o governo Nixon no passado, o governo Bush chegou à Casa Branca já obcecado com a administração das notícias. Nixon concedeu menor número de entrevistas coletivas do que qualquer presidente desde Herbert Hoover (1929-33); já Bush concedeu o menor número de coletivas na história norte-americana. Nos primeiros anos de governo de Nixon, um estudo especial do National Press Club concluiu que o presidente instituíra ‘um esforço sem precedentes, abarcando todo o governo, para controlar, restringir e ocultar informações’. Parece familiar? O atual presidente fez revogar discretamente a Lei dos Documentos Presidenciais, de 1978, que o Congresso instituiu após Watergate como antídoto ao sigilo patológico imposto por Nixon.

Ainda que o 11 de setembro tenha provocado o primeiro esforço do então porta-voz da presidência Ari Fleischer para solicitar que a imprensa ‘prestasse atenção ao que diz’, foi o fracasso no Iraque que fez com que o governo Bush cruzasse os limites da intervenção aberta.’



Tomás Eloy Martinez

‘Realidade? A realidade não existe, Mr. President’, copyright O Estado de S.Paulo, 17/10/2004

‘Quando se observa o presidente George W. Bush nos debates presidenciais, tem-se a impressão de que a adversidade não o desconcerta. Ele sai de seu eixo, se excita e, às vezes, traz à luz o pior de si. Em 30 de setembro, durante o primeiro debate com o senador John Kerry, era possível vê-lo lânguido e ausente, como se voltasse de um lugar aonde nunca fora. Ele cometeu então uma omissão maiúscula: esqueceu o atentado às Torres Gêmeas e se concentrou como um galo de briga na guerra contra o Iraque.

Em 8 de outubro, em St. Louis, estava com outro humor: impulsivo e entusiasmado. Entrou muito bem barbeado, com uma cara de menino, ansioso para afastar de si o fantasma sombrio de Richard Nixon, que descuidou da barba em 1960 e se saiu mal diante do arrasador John F. Kennedy.

Bush chegou a St. Louis ao fim de uma semana de fracassos. Na quarta-feira, 6 de outubro, um informe oficial determinou que o governo de Saddam Hussein já havia destruído todas as suas armas ilícitas pouco depois da Guerra do Golfo, em 1991, e não havia evidências de nenhuma arma de destruição em massa em 2003, quando o Iraque foi invadido sob esse pretexto. A guerra que custou mais de 1.000 mortos aos EUA se revelava, portanto, uma guerra sem razão. Além disso, o índice de desemprego subiu durante os últimos quatro anos aos níveis mais altos em sete décadas e a economia entrou numa recessão que continua sem saída. Seria possível dizer que só um país com vocação suicida reelegeria um presidente que infligiu tanto dano em tão pouco tempo.

Uma semana antes, em Miami, Bush havia respondido mal a esses choques da realidade. Três de meus vizinhos, que vão votar nele, dizem que o farão porque o consideram um membro da família. ‘É desses tipos que você pode encontrar num bar para tomar cerveja enquanto lhe conta os problemas que tem com seu seguro-saúde’, disse-me Murray, o vizinho do lado, que está para se aposentar. ‘Você está enganado, Murray’, respondi. ‘Bush não pode tomar cerveja. Era alcoólatra e teve de virar abstêmio. Além disso, é ele mesmo que está criando problemas com o seguro das pessoas de sua idade.’ ‘Não importa’, insistiu Murray. ‘Ele e eu falamos o mesmo inglês.’

Kerry, por sua vez, usa uma linguagem sofisticada demais para a maioria. Mistura os números do orçamento e as leis que foram ou não foram votadas no Senado com precisão excessiva. ‘Este homem foi à Guerra do Vietnã de gravata’, diz Murray.

Como José María Aznar, o ex-primeiro-ministro da Espanha, e como Silvio Berlusconi, o primeiro-ministro da Itália – seus aliados quando lançou a guerra do Iraque –, Bush é o exemplo perfeito do conservadorismo moderno: afável nos modos, intolerante nos atos. Um exemplo nítido dessa intransigência foi sua resposta à última pergunta do debate em St. Louis. Ela foi feita por Linda Grabel, uma mulher de voz tímida, que a enunciou com extrema delicadeza: ‘O sr. tomou milhares de decisões que afetaram milhões de vidas. Poderia mencionar três ocasiões nas quais se deu conta de ter cometido um erro e o que fez para corrigir esse erro?’

Bush não admitiu falha nenhuma. Disse que talvez, no curso da guerra, tenha recomendado táticas que com o tempo poderiam estar equivocadas.

Também não admitiu erros no terceiro debate, na quarta-feira. Esquivar-se da realidade ou negá-la, expor as derrotas como se fossem vitórias são alguns dos hábitos freqüentes dos governantes messiânicos. A política, assim, está se transformando quase num ramo da teologia. A autoridade suprema é infalível. Por alguma razão, Kerry invocou George Orwell e seu romance 1984 quando o presidente falou de seu legado de ar puro (ou céus claros, como disse Bush). Mas quantos, entre os 60 milhões que assistiram ao debate, entenderam a alusão?

Já fui testemunha de seis eleições presidenciais nos EUA e creio que nenhuma foi tão rancorosa quanto esta. Há pouco mais de um mês, um colega de estudos de minha filha percorreu os subúrbios ricos de New Jersey, em busca de contribuições para a campanha de Kerry. Visitou umas 150 casas e, em pelo menos um terço delas, fecharam-lhe a porta na cara aos gritos: ‘Vá pedir dinheiro a Bin Laden, vadio infeliz!’ foi a frase mais suave que lhe disseram. Perguntei-lhe se acontecia algo parecido com os garotos republicanos. ‘Sim, creio que sim’, admitiu, depois de uma ligeira hesitação. ‘Mas eles não são chamados de vadios. São chamados de imbecis.’ [Tomás Eloy Martínez é escritor]’




Nota do OI: No domingo (17/10), o New York Times manifestou em editorial seu apoio à candidatura de John Kerry. Outros 26 jornais americanos fizeram o mesmo.