Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A mídia não é culpada pelos conflitos na PF

Freud, Espinoza… à primeira vista parece um novo romance policial-metafísico escrito por Umberto Eco. Na verdade, os dois ex-seguranças do presidente Lula estão seriamente enroscados nas denúncias da última edição de Veja (‘Um enigma chamado Freud’, nº 1.978, págs. 45-51) que, desta vez, não parecem obra de ficção.


Se as fotos da dinheirama mostradas na grande mídia na véspera do primeiro turno foram capazes de influir nos seus resultados, a desastrada tentativa de blindar o homônimo do pai da psicanálise (Freud Godoy) para afastá-lo das proximidades do escândalo poderá produzir conseqüências que se projetarão além do calendário eleitoral.


Nas bancas desde o sábado (14/10), as revelações de Veja sobre a movimentação clandestina na sede da Polícia Federal em São Paulo para proteger Freud só foram explicadas pela Polícia Federal na tarde da segunda-feira (16). E, mesmo assim, de forma rigorosamente burocrática. Caso clássico do desmentido por obrigação.


Desta vez – ao contrário da fábula sobre os dólares de Havana – o semanário da Editora Abril apresentou indícios claros sobre a conspiração para tirar Freud do rolo do ‘dossiêgate’. As fontes não foram identificadas, mas pelas substanciosas informações publicadas evidencia-se que os três delegados da PF mencionados na matéria foram efetivamente seus informantes.


Além da movimentação irregular do preso Gedimar Passos (ex-policial federal, membro do PT, um dos principais artífices do dossiê Vedoin) e das estranhas visitas presenciadas por Severino Alexandre, diretor executivo da Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, a denúncia de Veja escancara uma gravíssima dissidência nos altos escalões da mais importante instituição policial do Estado brasileiro. Um grupo trabalha para favorecer o governo, outro grupo empenha-se em barrar este favorecimento.


Guerra de foice


Com a matéria de Veja ficou superada a denúncia da CartaCapital publicada dois dias antes, sobre a trama que levou ao segundo turno (edição 415, págs. 20-27). Aqui não se trata de uma ‘trapalhada do PT’ [sic] maliciosamente explorada pela grande imprensa como alguns críticos apresentaram o caso, mas de uma colossal manipulação orquestrada pelo Ministério da Justiça e escancarada graças a uma inédita dissidência instalada na cúpula da Polícia Federal.


Ao contrário das fotos da dinheirama distribuídas num CD pelo delegado Edmilson Bruno às vésperas do primeiro turno, desta vez flagrou-se um cisma de razoáveis dimensões e gravíssimas conseqüências no mais importante órgão policial do país.


A mídia errou quando protegeu com o anonimato a ação do delegado Bruno (ver ‘Cinco questões-chave sobre as fotos do dinheiro‘, de 1/10/2006). Sob o pretexto de proteger a fonte de uma informação ocultou-se a grave crise que coloca em risco a segurança do cidadão, da sociedade e do Estado brasileiros.


A matéria de Veja, embora restrita à ação do governo para desenredar Freud Godoy, sugere uma leitura mais sombria: no coração do órgão policial que restabeleceu a confiança dos brasileiros nas instituições republicanas grassa uma guerra de foice.


Cada grupo tem as suas lealdades, tem a sua mídia e cada mídia puxa o noticiário para um lado. E o único poder capaz de acabar com a cizânia – o governo federal – não tem credibilidade para impor uma pacificação ou, pelo menos, uma convivência porque ele é o pivô da crise.


Dinâmica acelerada


A grande imprensa só tem uma culpa: a de esquecer o papel de um órgão de imprensa na urdidura deste escândalo. Se as ações do semanário IstoÉ fossem devidamente esclarecidas, ou pelo menos ventiladas com clareza, uma parte dos mistérios do ‘dossiêgate’ já estariam esclarecidos.


A outrora renomada publicação foi escolhida como instrumento para perpetrar um crime eleitoral. É no mínimo cúmplice e/ou eventual beneficiária de uma parte do butim. Isso não deveria ficar subordinado ao cronograma investigativo da PF, deveria ser prioridade na pauta da própria imprensa.


Por lealdade corporativa ou simples descaso com a construção da imagem de uma imprensa rigorosa e independente, priva-se o cidadão brasileiro de elementos cruciais para dimensionar o vergonhoso episódio.


Quaisquer que sejam os resultados numéricos da tumultuada eleição uma coisa ressalta muito nítida: o processo de fragmentação ganhou uma dinâmica difícil de estancar. E, se a mídia não se antecipar, também ela poderá sofrer perigosas fraturas.