Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A primeira vítima é a verdade. Outra vez

A imprensa brasileira reescreveu, nos últimos dias, o sucesso literário de Philip Knightley, no qual o autor australiano, que fez carreira brilhante no Sunday Times da Inglaterra, demonstra que as informações sobre guerras na modernidade sempre foram manipuladas.

Desde a guerra da Criméia – entre 1854 e 1856, quando se deu pela primeira vez o uso intensivo do telégrafo elétrico – até a Guerra do Vietnã, constatou Knightley, os relatos dos repórteres eram distorcidos pelos editores de jornais para auxiliar a propaganda de guerra dos governos envolvidos. No tempo da internet, declarou o jornalista há dois anos durante encontro de repórteres em Londres, a manipulação dos fatos de guerra continua predominando, determinada por interesses políticos e econômicos dos controladores da mídia. Ele assegura que, ainda hoje, a primeira vítima de uma guerra é a verdade.

O primeiro golpe

A imprensa brasileira, em sua representação hegemônica, tentou plantar, durante os primeiros dias da cobertura da tragédia ocorrida em 17/7 em Congonhas, a tese segundo a qual o Airbus que fazia o vôo JJ 3054 havia derrapado na pista principal do aeroporto, que teria sido irresponsavelmente liberada mesmo sem as ranhuras que deveriam facilitar o escoamento da água das chuvas. A verdade recebeu aí o primeiro golpe.

Na cauda dessa primeira versão, a imprensa amarrou a interpretação segundo a qual o acidente era a culminância de uma sucessão de problemas na aviação civil, à qual se havia convencionado chamar ‘apagão aéreo’. Os fatos diriam que a verdade estava novamente sendo violentada. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de fato, havia demonstrado durante os últimos doze meses inabilidade para garantir o funcionamento seguro, confortável e pontual do setor, mas a responsabilidade das duas empresas aéreas que dominam o mercado – TAM e Gol – não poderia ter sido colocada em segundo plano nas análises sobre a questão.

Os ganhos das duas empresas com a exploração desmedida dos aeroportos mais rentáveis do país, em especial o de Congonhas, foram estampados em todos os jornais nos últimos dias da semana passada. As perdas que as duas empresas tiveram após a tragédia do dia 17 são o atestado de que, no mínimo, a imprensa deveria ter investigado com mais desprendimento as causas do estresse dos controladores de vôo nos últimos meses. Resta evidente que houve, em todo esse período, uma pressão desmesurada das empresas pelas operações em situação-limite, à qual correspondeu a cumplicidade da Infraero.

Considerando-se que quase 92% do mercado é dominado pelas duas companhias, fica fácil imaginar também o temor do desemprego que marca o dia-a-dia de pilotos, atendentes de bordo e funcionários de apoio e manutenção. Esse, sabemos hoje, seria um componente importante de um quadro mais próximo da realidade, a ser apresentado no noticiário. Esteve presente em algumas páginas, mas nunca com o destaque que se deu à falta de ranhuras na pista da tragédia e a outros elementos vinculados ao desastre de Congonhas.

Escolhas editoriais

No décimo dia após o acidente, a imprensa apresenta o movimento ‘Cansei’, liderado por empresários e instituições civis, como uma reação da sociedade – nascida na emoção da tragédia e sem conotação partidária – a toda uma sucessão de descalabros e carências sociais e políticas. Embora a campanha tenha produzido palavras de ordem mais amplas, como ‘Cansei do governo paralelo dos traficantes’ e ‘Cansei de empresários corruptores’, o ‘caos aéreo’ era ainda o destaque associado ao noticiário sobre o lançamento da campanha.

O movimento, iniciado pela seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, tem grandes possibilidades de produzir como efeito uma maior qualidade do Estado, em todas as suas instâncias, se ao discurso de seus integrantes corresponder uma maior coerência com certas ações, como, por exemplo, uma melhor seletividade dos beneficiários de doações para campanhas eleitorais e a redução da prática de oferecer propinas a funcionários governamentais. Eles precisam, primeiro, dizer ‘não’ ao caixa 2 em suas próprias organizações, e reduzir a proteção corporativista aos representantes de suas instituições envolvidos em escândalos, e a imprensa deve estar vigilante quanto a isso.

As repetidas declarações dos líderes do movimento, que imputam a uma ampla variedade de motivos sua decisão de fazer valer os desejos da chamada sociedade civil organizada, podem desencadear mudanças significativas nas instituições, mas para isso a imprensa precisa jogar um jogo limpo, fiel ao que se anuncia como motivação dos criadores da campanha ‘Cansei’.

Diferentemente do que repetem alguns notáveis fazedores e observadores da imprensa, a afirmação de que os lordes da mídia persistem num viés de agressiva hostilidade ao presidente da República não equivale a conspiracionismo. A imprensa é de oposição, em grau que só se compara, historicamente, ao que se passou durante o curto governo de João Goulart – talvez por isso mesmo de tão curta duração, amputado que foi por um golpe militar fortemente apoiado na mídia.

Aparentemente, o Brasil de hoje não se pauta mais pelo que dizem os editoriais dos três jornais mais poderosos. Também há que se registrar que os lordes da imprensa têm direito a amar ou odiar, respeitar ou desprezar este ou aquele governante, este ou aquele personagem da cena política. Da manifestação dessas predileções, com mais ou menos talento, são feitas as páginas de opiniões. O problema começa quando o noticiário é contaminado por esse opiniário.

E isso ocorre principalmente porque, na atual estrutura dos jornais, revistas e demais meios de jornalismo, já não há espaço para as divergências em relação ao veio principal de opinião, o do proprietário. Assim como os pilotos e engenheiros da aviação civil ficam entre obedecer a ordens controversas em relação às melhores práticas e encarar o desemprego, para a imensa maioria dos jornalistas a escolha fica restrita entre amarrar as escolhas editoriais ao opiniário predominante ou partir para o desligamento – como se diz, ir cuidar de ‘projetos pessoais’.

Veredicto apressado

Alguns jornalistas se alinham por convicção, outros por conveniência, e grande número porque são profissionais com grande talento para a prospecção de oportunidades na carreira, sejam elas aceitáveis ou não de um ponto de vista ético. Não que devessem usar o posto para fazer proselitismo, como ocorreu em muitas redações durante os anos 1980, em favor do partido que atualmente está no governo. Apenas se observa que, hoje, praticamente inexistem filtros eficientes entre a opinião dos donos e as escolhas editoriais dos profissionais que decidem a linha do noticiário.

Deste lado da sociedade, o risco visível é de que a imprensa perca valor em sua função social de fiscalizar os poderes, por uma insistência viciosa em imputar ao Executivo todos os males do país e creditar ao mercado ou ao imponderável todos os bons números da economia e as análises sobre a estabilidade institucional.

Se perder credibilidade e influência sobre a sociedade de modo mais amplo, como parece ter acontecido nas últimas eleições, e concentrar seu poder de convencimento em determinadas faixas da classe média, a imprensa estará produzindo um tumor de radicalismo e preconceito cujas conseqüências não se pode prever.

A complexidade atual das relações sociais não favorece exercícios de futurologia confiáveis, nem está habilitado este observador para tanto. Porém, é seguro afirmar, pela leitura cuidadosa do noticiário das duas últimas semanas, que a imprensa, de modo geral e quase unânime, procurou jogar no colo do presidente da República os cadáveres do Airbus que fazia o vôo JJ 3054. Apressou-se em dar um veredicto que em dois dias se revelou sem fundamento.

Não há como não dizer que, havendo uma guerra deflagrada entre a imprensa e o atual governo, a primeira vítima tenha sido, outra vez, a verdade.

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Jornalista