Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A responsabilidade e a repetição de erros

Primeiro, coloque uma panela com água para ferver, e não esqueça de um pouco de sal e um fio de azeite. Quando as primeiras bolhas começarem a aparecer, despeje o macarrão na água para cozinhá-lo. Com a massa no ponto, junte o molho e sirva quente. A fórmula é conhecida, simples de fazer, popular entre os brasileiros. Mas e quando algo dá errado?

Foi assim com a diarista Marta Vailois, de São José (SC), que se surpreendeu ao abrir uma embalagem de extrato de tomate e encontrar nela “um corpo estranho”. A consumidora foi até a Vigilância Sanitária para tomar providências, e o produto – dentro do prazo de validade – foi encaminhado para exames. A RBS TV, em seus telejornais, relatou o acontecido, entrevistando a autoridade de saúde pública e a consumidora que se sentiu lesada.

 

 

A reportagem mostrou a embalagem suspeita, revelando a marca e mencionando o fabricante. Ao final da matéria, o público foi informado de que o fabricante não respondeu às tentativas de contato dos repórteres. Aqui também a fórmula é conhecida, simples de fazer, popular.

Ouvir as partes

É claro que jornalismo e macarronada são coisas bem distintas, mas para “dar certo” cada um deles precisa não apenas seguir certos procedimentos como também manter alguns cuidados. Não vou me ater aos detalhes culinários para preservar a saúde e a paciência do leitor. Quanto ao jornalismo, preciso dizer que o caso do “corpo estranho” me lembrou muito um outro episódio lamentável, ocorrido há mais de uma década.

Em fevereiro de 1998, em São Paulo, a Indústria de Conservas Gini teve sua fábrica interditada pela Vigilância Sanitária que suspeitava de contaminação da bactéria que causa o botulismo. A denúncia também partira de uma consumidora, causara estardalhaço e alarma social na mídia, o que provocou reação imediata das autoridades locais. Todo o estoque dos vidros de palmito em conserva do fabricante foi confiscado para análise, ao mesmo tempo em que, nos supermercados, os consumidores fugiram do produto. Após análise química, constatou-se que os temidos palmitos Gini estavam em condições normais de conservação e não ofereciam qualquer risco à saúde de quem os consumisse.

O que restou da denúncia na mídia? Um prejuízo inicial de mais de R$ 1,5 milhão para os fabricantes, a interrupção de cinco meses na linha de produção, a devolução de lotes inteiros pelos supermercados e danos incalculáveis à marca. Danos indeléveis, a ponto de hoje, na cabeça do consumidor, a expressão “Palmitos Gini” esteja mais diretamente ligada ao escândalo do que aos atributos do produto.

Os meios de comunicação erraram em 1998? Sim, porque tornaram uma denúncia isolada num linchamento público da empresa responsável pelo produto. Sim, porque a mídia ajudou a ampliar a sensação de insegurança e de desconfiança dos consumidores ao invés de ouvir as partes, agir com cautela e acompanhar o caso até o seu desfecho. O prejulgamento norteou as ações dos jornalistas e não a dúvida e o rigor na apuração, que devem sustentar as práticas das redações.

Rota e procedimentos

É claro que denúncias do tipo são relevantes do ponto de vista jornalístico. É de interesse público saber detalhes da qualidade dos produtos, sobretudo alimentícios e de higiene pessoal; é de alcance universal ter informações do tipo, bem como é uma prestação de serviços alertar para riscos pessoais e coletivos. A denúncia tem elementos surpreendentes, o que garante a singularidade da notícia, mas é necessário lembrar que se trata de um caso registrado. Pode ter havido contaminação isolada do produto, comprometimento de um lote inteiro, má conservação no armazenamento do supermercado, danos no transporte da mercadoria e até mesmo manipulação indevida da consumidora. Isto é, não existe apenas uma resposta possível para o caso.

No caso dos Palmitos Gini e no do “corpo estranho”, a mídia não pode se furtar a noticiar as denúncias, mas com zelo, com cautela, tendo em vista a sua responsabilidade social. É necessário que se investiguem más práticas, abusos e desmandos. Não só de governos, mas de empresas também. Mas pressa, acomodação e imprudência podem provocar a repetição de erros e prejuízos irreversíveis.

Em qualquer atividade humana, as falhas são esperadas e, em alguma medida, toleradas, mas os equívocos ensinam e ajudam a corrigir a rota e os procedimentos. Por isso, tanto na cozinha quanto nas redações, é preciso estar atento quanto aos ingredientes, suas medidas e o modo de preparo. Errar na dose, na sequência das etapas ou no tempo dedicado a cada uma delas pode sim comprometer o resultado final e causar mais do que indigestão.

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[Rogério Christofoletti é jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do objETHOS]