Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A santa normalidade

Acompanhei com atenção o desenrolar de um crime bárbaro nos últimos dias em Sergipe. Toda a mídia local cobriu amplamente o caso: o assassinato de uma criança de nove anos no município de Tobias Barreto, a 130 km de Aracaju. Suspeita-se que a menina tenha sido abusada sexualmente. O crime chocou, mas a indignação se tornou coletiva quando se apontou um parente da criança como o responsável pela ‘monstruosidade’.

Passado o ápice do caso, depois da polícia ter apresentado um cunhado da menina como autor do homicídio e de toda imprensa ter esgotado os lances mais sensacionalistas sobre o assassinato, não podia deixar de fazer algumas análises sobre os papéis que desempenharam a imprensa, os grupos de representação e a sociedade diante desse caso.

Primeiro que jornais, rádios, TVs, isto é, toda a mídia local, quase sem exceção, confirma sua completa subordinação à versão oficial dos fatos. A voz do Estado, no caso representado pela polícia, constitui-se como a verdade. Abandona-se deliberadamente o jornalismo, a apuração, a checagem, a investigação e comodamente se engole a versão oficial.

Imprensa julga e condena

Mas não é só isso. A cobertura midiática desse crime é uma pérola do mais puro e absurdo sensacionalismo, justicialismo sanguinário, desinformação, manipulação e, principalmente, do mais vergonhoso preconceito de cor, de raça e de religião. Estava tudo lá, estampando nos jornais, nos discursos e entrevistas nas emissoras de rádio e nas reportagens de TV. Tudo como se fosse jornalismo e conseqüência natural dessa nobre e desvalorizada atividade.

Logo depois que o corpo da menina é encontrado, a imprensa divulga o fato, revelando – sem qualquer necessidade informativa – os mínimos detalhes de como estava violado o corpo daquela criança. Pedacinho por pedacinho. É uma exposição de uma menina com nome, fotos, documentos, isto é, uma profunda violação do corpo de uma criança.

Mas tudo aquilo toma as pessoas de horror e indignação. Parte da população, acomodada com a miséria em que estão atolados e coniventes com a corrupção de agentes públicos e privados, transforma-se em segundos em ferrenha defensora de ‘justiça’ para o caso. Cobram da polícia a prisão e morte do criminoso.

Horas depois, pressionada pela ‘opinião pública’ para dar uma resposta rápida, veicula-se a informação de que a polícia estava à caça de um adolescente que seria o autor do crime. Os dados não se confirmam e, um dia depois, é preso o cunhado da criança. Para a polícia, não se tratava de um suspeito, mas do próprio assassino da menina. Sem nenhuma apuração dos fatos e diante de uma versão extremamente incipiente, parcial e sem consistência da polícia, a mídia julga, condena e pede a execução do ‘criminoso’, mesmo sem ouvi-lo.

Ritual de ‘magia negra’

A multidão cerca da delegacia para ‘comer vivo’ o rapaz. Os presos da cela vizinha querem o mesmo. A irmã da menina morta e mulher do ‘monstro’ (ele ganha logo esse adjetivo da mídia) é agredida por pessoas que também a culpam de envolvimento no crime. Como um troféu da eficiência policial, o rapaz é levado para a capital e exposto para o deleite, prazer e gozo de repórteres, policiais e muitos curiosos.

Quando é ouvido pela imprensa, garante que é inocente e mostra alguma coerência de argumentação. Mas não teve jeito. Era o culpado. Foi ali julgado e condenado. ‘É um psicopata’, disse em conclusão psiquiátrica o delegado do caso, encerrando qualquer outra possibilidade de linha de apuração.

Mídia e polícia trabalham em parceria no julgamento e condenação. Os aspectos que o condenam são muitos apresentados publicamente: estavam diante de um rapaz desempregado, extremamente pobre, negro, que já tinha passagem pela polícia por roubo de bicicleta, que morava vizinho da vítima e, principalmente, que professava outra religião: era pai-de-santo.

Estava nas manchetes, nos textos, nas imagens, e principalmente nos discursos em emissoras de rádio e TV, que a criança tinha sido alvo de um ritual de ‘magia negra’. No casebre do acusado, imagens de santos numa mesa de canto, como os católicos têm oratórios. Nada absolutamente demais. Foram encontradas roupas de crianças que não se confirmaram que eram da menina morta e mesmo que fossem dela, ora, a vítima era vizinha e na casa morava sua irmã e o cunhado.

Preconceitos, discriminação e omissões

E assim, como uma onda, em que não há reflexão, análise, apuração cuidadosa, toda a sociedade é levada a encerrar o caso condenando sumariamente o ‘monstro’, isso sem a devida denúncia do Ministério Público nem julgamento no Tribunal de Justiça. Será que a cobertura midiática seria a mesma se o suspeito fosse branco, rico e católico fervoroso? Convenhamos, dificilmente, não é?

Chama a atenção o silêncio conivente de entidades da chamada sociedade civil que teriam por função a defesa dos direitos humanos, de pugnar pelo respeito e diversidade de raça e religião, de garantir a presunção da inocência para todas as pessoas, assegurar as garantias para crianças e adolescentes etc., etc., etc. Ao que parece, boa parte dessas entidades só existe para cuidar dos interesses financeiros de seus umbigos.

E assim foi encerrado mais um caso em Sergipe. A mídia local, com a participação e conivência do Estado e dos grupos de representação social, sedimenta preconceitos, discriminação e omissões. Tudo dentro da santa normalidade.

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Jornalista