Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A saúde (combalida) da imprensa

Desde que o Rum Creosotado deixou de ser vendido em armazéns de secos & molhados, a imprensa está doente de um mal que ela abomina, mas não percebe. A parcialidade. Pelo menos no que se refere à cobertura da saúde.


Não há enfermidade pior para um jornalista do que ser parcial. E a pior doença é aquela em que o ser enfermo não sente dor, os sintomas ficam escondidos, e quando eclodem já é tarde.


Depois dessa intoxicação de metáforas, logo no lead, vamos desatar o nó górdio do título.


Quando a saúde é a pauta de um jornal, ser parcial é um erro devastador. É comum os repórteres entrevistarem médicos da medicina oficial, lesional, estrutural, hegemônica, e não contextualizarem com fontes de ‘outras medicinas’. É comum repórteres abordarem as questões dos remédios sintéticos, da indústria farmacêutica, da indústria química, e não contrapô-las às várias outras formas de terapêuticas ‘naturais’. Sem esgotar a lista de parcialidades, é comum repórteres abordarem o sistema de saúde pública e privada do ângulo dos hospitais, do Conselho de Medicina e do Ministério da Saúde, cegos aos riscos dessas liturgias sociais. Mas acredito que o fazem por pura ignorância.


Capital e astúcia


Hermético? É o seguinte: o jornalismo não passa de uma crônica superficial de um mundo que se tornou complexo ao extremo. Só um idiota não percebe quanto ‘mal’ esconde este pano ‘um mundo complexo ao extremo’. Que esconde ‘bem’ também. Ou alguém discorda que o mundo de hoje é tão simples quanto o mundo do tempo do feuilleton?


As próximas linhas tentarão envelopar um assunto que demandaria laudas, pois ninguém mais lê artigo que ultrapasse 700 palavras, segundo os entendidos em textos finger food.


As simples expressões ‘outras medicinas’ e ‘naturais’, utilizadas acima, certamente levam a mente do jornalista apressado para um canto que ele julga ser de atores menores do cotidiano. Também não vale defender que há fartura de matérias sobre a homeopatia, por exemplo, os fitoterápicos, a medicina ortomolecular etc. Por isso mesmo, porque essas matérias destacam essas terapêuticas como alternativas, no sentido menor do termo.


Teria o jornalista que cobre a saúde se transformado num Janus tolo, aprisionado onde a empresa, a coisa, a instituição são mais importantes do que o indivíduo? E por isso ele faz a sua pauta oficial somente daquilo que é oficial, como se o oficial fosse o mais saudável? Ele mesmo estaria se vendo como jornalista, não como um ser independente que pensa, ou melhor, que computa ergo sum, que processa informação? Enxerga que o empreendimento erguido em prol da saúde estatística adoece o indivíduo? Enxerga que a indústria de drogas (propriedade de conglomerados financeiros) é um dos mercados mais promissores da bolsa de valores, e isso tem efeitos colaterais? Que a ciência vem florescendo em prol do capital e da sua astúcia, em efeito viral? Enxerga que o Estado adota esse enredo sórdido porque também não enxerga o indivíduo, só vê o contribuinte na coluna receita?


O bonde errado


Um ex-diretor financeiro de um laboratório farmacêutico americano declarou para o Herald Tribune (1/3/2003): ‘O primeiro desastre é se você mata pessoas. O segundo desastre é se as cura. As boas drogas de verdade são aquelas que você pode usar por longo e longo tempo’.


E é comum uma matéria de jornal atacar a notícia de que os remédios estão cada vez mais caros, mais proibitivos, como se isso fosse um mal. Consegue o jornalista enxergar outro ângulo? Que sinaliza para o mal que as drogas causam ao organismo humano; que sinaliza para os equívocos da terapêutica hegemônica. Por esse ângulo, seria bom que os remédios fossem mesmo proibitivos – proibidos, na verdade.


Só a aspirina mata anualmente 10 mil pessoas por sangramento digestivo nos Estados Unidos. Recentemente a revista Época recomendou a adoção de aspirina para prevenção da velhice. A terapêutica da medicina oficial se baseia apenas nos efeitos esperados das drogas sintéticas. Ignora os demais efeitos, não esperados e gerados pelo próprio organismo humano que tende a eliminar substâncias estranhas a ele, sobrecarregando suas funções, estressando-se além da conta.


A medicina oficial condena à infelicidade do paciente qualquer complicação adicional, ou piora do seu quadro clínico. Lava as mãos. Não é por acaso que os remédios nos Estados Unidos têm um mark up que chega a 1000% – para atender às eventuais demandas judiciais – e seus ciclos de vida são gerenciados pelo método da obsolescência em cinco anos.


Por fim, porque acabou o espaço aqui, a medicina é uma disciplina, não é ciência. E a medicina baseada somente na ciência e tecnologia mata mais do que as doenças e as guerras podem arcar sozinhas. Há várias medicinas modernas e tradicionais que tratam da saúde do ser humano fiéis à primeira lei de Hipócrates: ‘Primeiro não lesar’. O jornalista não está consultando essas fontes.


Assim, a própria imprensa adoece o mundo com o seu modo parcial de fazer a crônica diária da saúde. Veja, ilustre jornalista, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E no entanto acredite: ele adoce, morre, porque o senhor pegou o bonde errado.

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Jornalista, www.clinicaliteraria.
com.br/clinicaliteraria.htm