Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A seleção de Dunga

Assisti à entrevista coletiva em que Dunga (terça,11/5), cada vez mais parecido com seu homônimo, o anão teimoso de Branca de Neve, anunciou quem foi escolhido para defender nossa ‘pátria de chuteiras’ na Copa do Mundo na África do Sul. Senti falta, nesta coletiva em particular, de ver o Dunga vestindo a camisa da seleção brasileira. E pintou uma saudade do Felipão que, em situação similar, alguns anos atrás, batia no peito dizendo ser guerreiro e tendo atrás de si nada menos que a bandeira nacional.


Agora a bandeira nacional foi trocada por poluição visual da pior espécie – a sopa de logomarcas dos patrocinadores da CBF. Os eleitos foram: goleiros: Julio Cesar, Gomes e Doni; laterais: Maicon, Daniel Alves, Gilberto e Michel Bastos; zagueiros: Juan, Lucio, Luisão e Thiago Silva; apoiadores: Gilberto Silva, Felipe Melo, Josué, Kléberson, Elano, Ramires, Kaka, Júlio Baptista; e os atacantes: Luis Fabiano, Nilmar, Robinho e Grafite.


Como toda coletiva com Dunga, tivemos direito às repetições infinitas, a dízimas periódicas do futebol (comprometimento, coerência, doação), a erros de português a cada dez minutos (ele veio com nós; vocês estão com nós) e a frustrações de não vermos os ‘Pelés’ de 2010 na seleção canarinho de 2010 – Neymar e Ganso.


Como sempre, coletiva com técnico de futebol, seja da seleção ou não, é aquela confusão aparentemente sob controle. Se a cada jornalista é dado o direito de fazer uma pergunta, teremos sempre o que anuncia logo de cara que fará duas perguntas. Assim como temos aterrissagem de avião que mais parece queda sob controle, temos também coletiva de imprensa em que se existem regras é porque são para ser descumpridas.


O ‘Kaká com nós… quer dizer, conosco… senão, amanhã vão dizer que eu não sei português’ ainda ressoa em meu ouvido, isso porque, mesmo acusando o golpe – às vezes a concordância tem sabor da velha Emulsão de Scott –, Dunga ainda cometeu o mesmo erro outras duas vezes. E não faltou seu peculiar toque irônico: ‘Vocês que estudaram muito mais do que eu vão entender o que estou dizendo’. Obviamente me lembra o presidente Lula quando diz que já sabe dizer recrudescer se há alguns anos pronunciava ‘menos laranja’.


Um aparte, por favor


Os nomes anunciados são quase todos de jogadores brasileiros que atuam no exterior. Isso me fez pensar que o Dunga nem precisava morar no Brasil: bastaria escolher um país europeu e de lá assistir aos vários campeonatos. Afinal, não é no velho continente que estão nossos representantes, os que irão cantar – e se enrolar até dizer chega – o Hino Nacional brasileiro na África do Sul?


Pensei também que o pré-requisito para ser convocado para a seleção brasileira é ter sido descoberto por algum timeco no exterior, não fazer feio por algum tempo e… pronto, virar jogador da mais importante seleção de futebol do mundo, a única que é pentacampeã. Enquanto isso, centenas de jogadores brasileiros e que jogam no Brasil estarão ralando anos a fio, enfrentando diversas competições, quase simultâneas e com apenas duas certezas na vida: a primeira de que para morrer basta estar vivo, e a segunda que é quase certo – algo como 92% – que para atuar em nossa seleção há que jogar em gramados fora do Brasil.


A lista, assim como aconteceu em 2006, apresenta apenas três jogadores que atuam no Brasil, o menor número já registrado: Kléberson (Flamengo), Gilberto (Cruzeiro) e Robinho (Santos) são os ‘brasileiros’ da lista. Em 2006, foram Ricardinho (Corinthians), Mineiro (São Paulo) e Rogério Ceni (São Paulo).


Concordo com os que entendem que ter o nome na lista de convocados é consagração máxima para qualquer jogador que nasceu no país do futebol, alguns dos quais começaram a sua jornada jogando peladas nas ruas, conquistaram seu lugar numa equipe profissional brasileira, tiraram a sorte maior de conseguir contrato com time no exterior e, finalmente, chegaram à seleção brasileira.


Copa do Mundo de Futebol e seleção brasileira de futebol são dois assuntos que mexem com os brasileiros, talvez mais que o samba, mais que o carnaval, mais que a corrupção na vida pública. Na terça-feira (11) sintonizei na TV Senado e escutei apartes dos senadores Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Aloizio Mercadante (PT-SP) ao discurso do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), reclamando do técnico Dunga por… não ter escalado Neymar e o Ganso para a África do Sul. Detalhe: o senador paranaense estava apresentando requerimento (nº 422) para que ‘o Tribunal de Contas da União realize auditoria na Caixa Econômica Federal nos contratos…’.


Correr riscos


De qualquer forma o técnico estava bem-humorado e, nesse estado de espírito, repetiu suas palavras-chave, aquelas que de tão usadas mais parecem bordões do Dunga: a palavra ‘coerência’ foi repetida seis vezes, a palavra ‘comprometimento’ cinco e a expressão ‘jogador tem que se doar’ foi dita quatro vezes. De minha parte, acho que Dunga foi incoerente em não levar os meninos do Santos e também acho que o técnico não se doou. Preferiu um futebol burocrático e preteriu o futebol-arte, aquele do improviso calculado para trazer cara de felicidade aos 192 milhões de brasileiros. E por que não aos restantes 6 bilhões e 800 milhões de cidadãos dos outros países?


Se existe um jornalismo opinativo em seu auge, em seu esplendor meridiano, este é o que se faz na editoria de Esportes. É a editoria em que todo mundo parece ser ou tudo ou nada, em que não há papas na língua nem temor de ferir suscetibilidades. Por exemplo, o jornalista Juca Kfoury não estenderia tapete verde para o convocado Júlio Baptista… então, fazer o quê? Mostrar rabujice em seu site, oras! E está lá:




‘Júlio Baptista pode até nem participar de nenhum jogo da Copa do Mundo. Mas será sempre o símbolo de um time cujo técnico optou por ele em detrimento do talento de Ronaldinho Gaúcho.’


E tem mais:




‘Júlio Baptista será o estigmatizado da Copa de 2010. Porque cada vez que aparecer, seja num jogo esporádico, seja nos treinos, seja no saguão do hotel, lá estará a fera que usurpou o lugar da bela menina dos olhos de todos que, entre a abnegação eficaz e a beleza eficaz, preferem a arte.’


Já o comentarista Antonio Maria foi direto ao ponto, sem ranço nem azedume:




‘Nesta relação de convocados para o meio-campo, Ronaldinho Gaúcho não poderia estar de fora ainda mais porque Kaká, um jogador com características ofensivas, não anda muito bem. Acho que tem volantes demais e dois deles poderiam dar lugar não só a Ronaldinho Gaúcho, como ao Ganso. O ataque seria mais forte com Neymar, que é um jogador de lances imprevisíveis e atravessa um momento muito bom.’


À parte essa coletiva para anunciar a escalação de nossa seleção, estamos em meio a um festival de comerciais de TV envolvendo as seleções que vão à África do Sul e, com a eficiência própria do YouTube, podemos ir comparando os anúncios feitos por outros países. Comerciais muito bem feitos, desses que ficam mesmo em nossa tela mental são os produzidos para celebrar as seleções da Argentina, da Austrália – em que os jogadores da seleção jogam contra um time de animais selvagens – e o do Uruguai, exaltando a força da torcida celeste. Não faltaram nem mesmo os habituais micos neste quesito: a seleção da Holanda, além de morno, paga o gorila de incluir o jogador Ruud van Nistelrooy, que nem ao menos foi convocado.


A Nike colocou no YouTube os depoimentos de alguns dos brasileiros convocados. Apenas passável, aliás, passa qualquer coisa nesse vídeo, menos garra e, menos ainda, emoção. Mas bom mesmo é o vídeo da Argentina, com música composta por Clint Mansell e trilha do filme Réquiem para um sonho.


Com essa seleção passei a ter algumas certezas: Dunga não é o melhor dos técnicos; mas, como sou brasileiro – e Deus também – não esmoreço e vamos pra cima e pra ganhar a Copa 2010. Existe uma só maneira de se ganhar qualquer competição, e muitas maneiras de se perder, e uma delas é não ter coragem de correr riscos. E já tem gente pensando em ir às Casas Bahia devolver a televisão.

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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter