Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A televisão que não ousa dizer o nome

Televisão pública ou televisão estatal? Qual a diferença entre elas? Existe alguma distinção significativa? A emissora que o governo federal está implantando é mesmo pública ou é uma estatal dissimulada? E as emissoras já instaladas em todo o Brasil, são emissoras de interesse e uso público ou são ferramentas de marketing governamental? Enfim, do que estamos exatamente falando, quando falamos em TV pública e em TV estatal?


Faz tempo que o país precisa de uma resposta mais clara para essa diferença. A rigor, desde 1988, quando a promulgação da ‘Constituição Cidadã’ instituiu um modelo tríplice para a televisão brasileira – ao aludir, no artigo 223, ao ‘princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal’. Como o artigo nunca foi regulamentado nesse aspecto, segue o país sem saber quais seriam precisamente, definidos em termos legais, os três sistemas apontados; e sem saber, muito menos, o que se entende pela complementaridade entre eles. E é assim que inúmeros equívocos e problemas acontecem, como esses que envolvem no momento o governador do Paraná e a TV Educativa local.


É de conhecimento geral que o governador Roberto Requião mantém uma relação tempestuosa com a mídia privada do Paraná. Seja pelo estilo agressivo e personalista do mandatário, seja porque ele cortou totalmente os polpudos gastos de publicidade do estado (que teriam sido de 1,5 bilhão de reais no governo Jaime Lerner), o fato é que os dois bicudos não se beijam. Como não encontra nos jornais, rádios e TVs comerciais o espaço que desejaria para divulgar suas ações de governo e debater suas idéias políticas, Requião decidiu utilizar a TV Educativa. Criou o programa Escola de Governo, onde é a atração máxima, e interfere sem hesitar na linha editorial da emissora.


Por meio da TV Educativa, o governador paranaense revida ou faz críticas a seus adversários políticos. Quando pôs em sua linha de mira o Ministério Público e o Judiciário estaduais, denunciando neles o que considera privilégios, o caldo entornou. Foi proibido de usar a emissora educativa e sujeito a multa pesada, em caso de desobediência. Revidou mandando pôr no ar a sua imagem com o áudio cortado e o letreiro ‘censurado’. Proibido novamente, agora de repetir o estratagema, e com a TVE obrigada a inserir mensagem de desagravo a promotores e juízes, Requião foi adiante: tirou a programação do ar, inserindo apenas a mensagem obrigatória, para enfatizar a suposta censura a que o estavam submetendo.


Sociedade representada


Não é o caso de analisar aqui o problema específico de Roberto Requião com a mídia e os poderes judiciais do Paraná, tema que já foi tratado com competência por outros colegas neste Observatório. Mas há que se ressaltar, no episódio, a absoluta transparência do governador no uso político da televisão educativa paranaense. Ele não tem a menor dúvida de que a TVE é uma ferramenta de governo e não vê qualquer problema em afirmar o seu direito de utilizá-la, quando julgar conveniente. ‘É essa a finalidade da TV Educativa do Paraná?’, pergunta-lhe o repórter Fausto Macedo, do jornal O Estado de S.Paulo. ‘É uma televisão pública, é a televisão do estado do Paraná’, responde Requião. ‘Ela funciona na formação da opinião.’


Aí está, límpida e clara, expressa objetivamente num problema político grave de um estado brasileiro importante, a confusão conceitual entre televisão estatal e televisão pública. O que o governador Requião entende por televisão pública seria, mal e mal, uma televisão estatal – supondo que, numa estação dessas, é aceitável a comunicação política do governante, e não apenas a comunicação institucional de sua gestão. Mas, com toda a certeza, a forma como o governo Requião relaciona-se com a TVE-PR não faz dela uma TV pública, nem favorece que ela se organize como tal.


Em linhas grossas, a distinção entre os dois tipos de TV é clara. A TV estatal seria aquela diretamente financiada e gerida por organismos de Estado, da administração direta, enquanto a TV pública seria bem mais complexa. Teria financiamento tanto do Estado (recursos orçamentários) quanto do mercado (na forma de patrocínio e apoio institucional), ou ainda da própria sociedade (por intermédio de doações, mecanismos de captação direta de recursos junto aos telespectadores e fundos públicos não-geridos pelo governo – algo que inexiste ainda no Brasil). A diferença se estenderia também à gestão. A TV pública estaria submetida, necessariamente, a um conselho de representantes da sociedade, que teria autonomia total para orientar a linha editorial e destituir dirigentes, caso não a cumprissem.


Discussão interditada


O problema é que, na prática, essa diferenciação não funciona. A televisão pública, entre nós, ainda é apenas um rótulo, ou no máximo um projeto. É um rótulo para todos aqueles que julgam insuficiente o conceito de televisão educativa, o único que está tipificado em lei para distinguir a televisão não-comercial. Como acreditam que a simples idéia de educação pela TV aborrece o público, não poucos operadores desse campo passaram a utilizar o termo ‘televisão pública’, mais palatável e ‘vendável’. Outros, por sua vez, encaram o conceito como uma meta, um projeto político-cultural de transformar a TV educativa existente, quase toda estatal, em efetivo organismo sob controle da sociedade, livre das ingerências políticas dos governantes.


É assim que o termo TV pública serve a todos – especialistas, políticos, mídia, universidade e, cada vez mais, ao próprio cidadão comum – sem significar nada preciso para ninguém. O governo federal propõe a unificação de sua estrutura de televisão e transformação dela em TV pública, mas sob a égide de uma nova empresa estatal, a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). A oposição e a mídia, juntas e fechadas nessa questão, atacam o projeto por ver nele a formação de um braço governamental de propaganda e preferem nomear a recém-criada TV Brasil de ‘TV Lula’.


Especialistas e a universidade gastam tinta e saliva para tentar aclarar os termos do debate, mas não logram o mínimo sucesso. E o cidadão segue absolutamente perdido em meio ao tiroteio, sem saber o que, de fato, está acontecendo e que bendita televisão estão lhe propondo.


Grave nessa história é que a medida provisória que institui a EBC e a TV Brasil será examinada pelo Congresso nas próximas semanas, sem que a balbúrdia conceitual esteja aclarada. As contingências da luta política impedem que o debate se faça, até porque, preciso ou impreciso, o discurso das duas partes em torno do assunto já está montado, a opinião pública já vem sendo submetida a ele, as posições (pró ou contra) vão se consolidando e não interessa mudar nada agora. Da mesma forma, a elevada temperatura política do Paraná neste momento impede que os contendores se dediquem a discutir qual o verdadeiro caráter, atual e futuro, da TVE – se é emissora pública de interesse coletivo ou se é estatal de interesse governamental.


Nada, nada, nada


A superação desse dilema – estatal ou pública – para o estabelecimento do que a Constituição propugna – estatal e pública, e também privada – é imperiosa para o desenvolvimento harmônico da televisão brasileira – e para a complementaridade de suas partes constitutivas.


Enquanto o país não enfrentar esse debate, apenas a televisão comercial seguirá crescendo, porque não carece de definição e não depende do Estado (até porque tem poder político suficiente para mandar mais nele do que obedecê-lo). A televisão estatal e, sobretudo, a pública não terão meios de encontrar seus espaços de atuação, suas formas de viabilização e a segurança jurídico-institucional que necessitam.


Sim, mas dirão alguns do que lêem este artigo: precisamos mesmo de televisão pública e de televisão estatal? A televisão comercial que temos, explorada em regime de concessão pela iniciativa privada, já não dá conta das necessidades do país? Não seria melhor gastar os recursos da TV pública e TV estatal em outras necessidades? Aqui se opõem as visões de quem julga que o mercado é a força-motriz de todo o progresso e de quem acredita num estado forte, regulando e fiscalizando o mercado.


Se a TV comercial desse conta de tudo que se espera dela – educação, informação e cidadania, além de diversão e comércio – não haveria o que discutir. Mas não é exatamente o que ocorre. Por outro lado, o campo público da televisão é hoje composto por cerca de 180 estações geradoras de conteúdo (educativas, comunitárias, universitárias, legislativas, institucionais), com quase 3.000 repetidoras em todo o Brasil. Não é a melhor televisão do mundo, mas faz o que pode para oferecer ao público o que a TV comercial sonega.


Alguém propõe que a TV pública seja privatizada? Os insatisfeitos com a TV comercial defendem que seja estatizada, ou convertida em TV pública? Não se ouve nada a respeito, de nenhum lado. Se é assim, tratemos de respeitar a Constituição do país, regulamentando o artigo 223 e começando a discutir as questões da televisão não-comercial com mais seriedade, precisão e objetividade do que vem ocorrendo até agora.


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Sobre o ministro das Comunicações, Hélio Costa


Agradeço a atenção que o sr. ministro Hélio Costa dedicou a comentários meus publicados neste Observatório [ver ‘Concessões de TV. Receita para superar a pizza‘], contestando-os democraticamente no artigo ‘Ministério das Comunicações responde. A renovação das concessões das emissoras de TV‘. Mas lamento que tenha visto neles leviandade, maldade e desrespeito, quando procurei apenas exercer o direito de crítica, analisando assunto de interesse social com civilidade e estrito espírito público.


Nada tenho a acrescentar ao já colocado. As complexas relações entre a radiodifusão e o Estado, no Brasil, são de conhecimento geral, em particular dos informados leitores do OI. Todos sabem que este é um campo em que presidem as circunstâncias políticas, com a normatização jurídica sempre subordinada a estas. Se o sr. ministro assegura que ‘vem adotando medidas duras e severas’ no enquadramento das emissoras de rádio e televisão aos imperativos legais, cabe conhecê-las, acompanhá-las e desejar que tenham a máxima efetividade.


Apenas esclareço que, embora pertencente – há menos de um mês – ao quadro diretivo da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura de São Paulo, escrevi o artigo em caráter estritamente pessoal, sem externar nele qualquer conceito que possa ser entendido como o pensamento oficial da emissora pública paulista. Estou certo de que, no momento de renovação de sua outorga, a TV Cultura demonstrará sem a menor dificuldade a sua estrita obediência às determinações constitucionais e legais da radiodifusão.

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Jornalista