Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A tragédia, a internet e a filosofia do martelo

O Ultimo Segundo do IG fez uma matéria comparando as fotos do atirador norte-americano de origem asiática e o filme Old Boy. As semelhanças apontadas são interessantes. Mas a pobreza da matéria é evidente. Não dá para culpar só o filme Old Boy pelo que ocorreu.


Num episódio de Anjos da lei, o então queridinho da América do Norte (Johnny Depp) também empunha ameaçadoramente um martelo. Centenas de filmes americanos trazem cenas semelhantes à do coreano de Old Boy, com a pistola na cabeça (em Eu, robô, por exemplo, Will Smith faz isto logo no começo do filme ao se levantar). Nenhuma das produções americanas foi citada na matéria.


A propósito, o martelo usado no filme Old Boy e pelo atirador pode ser uma referência clara à Filosofia do martelo de Nietzsche, que pretende ser um antídoto iconoclasta à moralidade cristã. Mas parece que os jornalistas do IG não perceberam a simbologia do martelo que existe no filme e na foto do serial killer.


Nem só de violência é feito o roteiro de Old Boy. O cinéfilo atento é capaz de perceber que o filme procura desmantelar dois ícones: a proibição do amor entre irmãos e o tabu do sexo entre pai e filha. O vilão ama sua irmã e o amor proibido de ambos se torna público por causa da língua comprida do herói. Confrontado com a possibilidade de rejeição pública, o vilão deixa a irmã morrer sabendo que ela não sente culpa. Em razão disto, o vilão aprisiona o herói e cria condições para que ele se apaixone pela filha sem o saber. O vilão planeja contar a ambos que são pai e filha destruindo a relação de ambos, mas desiste porque o herói corta a língua. A mutilação que o herói realiza em si mesmo tem três finalidades: penitencia pelo erro que cometeu divulgando o amor do vilão pela irmã; preserva o amor de sua filha, evitando que o vilão divulgue a verdade dos fatos; e impede que ele mesmo divulgue a terceiros a verdadeira natureza de sua relação com a amada.


Influência nietzscheniana


O serial killer fotografou-se com um martelo. Também gravou declarações em que critica seus colegas de faculdade, a quem chama de impostores e garotos ricos. Apesar de rudimentar, o caráter iconoclasta das declarações do atirador é evidente. Em sua concepção, a ‘riqueza fácil’ e o ‘falso conhecimento’ são ícones que merecem ser destruídos. Não satisfeito em meditar sobre a destruição dos mesmos do ponto de vista intelectual, o serial killer resolveu que os próprios estudantes deveriam ser eliminados. Realizou no corpo das vítimas o que Nietzsche se esforçou para fazer à moralidade cristã? Apesar de sua mentalidade deturpada, a influência nietzscheniana de suas ações me parece evidente, pois Nietzsche tinha um desprezo evidente pelo humanismo:




‘No capítulo ‘Passatempos intelectuais’, usando uma linguagem vigorosa e rude, Nietzsche procura ridicularizar todos os que o antecederam, de Sêneca a Zola. O único filósofo que elogia é Schopenhauer, de quem certamente emprestou a linguagem que usa para denegrir seus desafetos. O elogio que faz da ‘diferença’ em oposição à ‘igualdade de direito’, da morte em face da medicina que prolonga o sofrimento, da guerra como essência da liberdade e da rígida estrutura social russa no século 19, demonstra todo o desprezo que Nietzsche devotava ao humanismo. Seu ódio desmedido aos socialistas, anarquistas e trabalhadores sugere que a despeito da crítica destrutiva e ferina que faz de Platão, o filósofo alemão recriou o platonismo. Já se disse que na República de Platão somente havia lugar para seu criador. Na sociedade aristocrática nietzschiana, somente Nietzsche suportaria viver. Afinal, a intolerância política e filosófica do pensador alemão é tamanha, que, se ele pudesse, certamente queimaria todos os livros que produziram a degeneração que o circundava. É impossível deixar de perguntar como toda aquela decadência cultural não foi capaz de contaminá-lo’ (http://portugal.indymedia.org/ler.php?numero=111895&cidade=1).


O jornalismo visa a divulgar os fatos. Mas nem sempre todos os fatos de uma notícia estão contidos numa matéria. A filosofia e a iconografia podem ajudar o jornalista a pesquisar fatos por traz dos fatos, proporcionando ao leitor ângulos mais abertos que os proporcionados pelos relatos rápidos e despretensiosos. Se não fizer isto, um internauta atento certamente puxará a orelha do jornal. O jornalismo à moda antiga, unidirecional, deixou de existir, felizmente.

******

Advogado, Osasco, SP