Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A vida real como sintoma

Há uma ligação insuspeitada entre a febre dos vídeos curtos no site You Tube e o fenômeno do crescimento editorial, na Inglaterra, das revistas que lidam com “vida real” (real life). Exemplos recentes do primeiro caso são os flagrantes em que a atriz Luana Piovani agride um paparazzo (1,31 minuto) e o outro em que a apresentadora Daniella Cicarelli faz sexo com o namorado numa praia da Espanha (4,10 minutos). No segundo caso estão revistas semanais como Take a Break ( mais de 1 milhão de exemplares), Chat (554 mil), That´s Life (490 mil), Pick Me Up (445 mil), Love It (405 mil).

A Folha de S.Paulo (24/9/2006) compara estas tiragens com as de várias revistas de celebridades, até agora carros-chefes de vendas, para destacar a conclusão do editor John Dale de que, apesar de o público ainda se interessar pelos famosos, ele “quer um mix – um pouco de celebridade, um pouco de pessoas reais”.

Antes de mais nada, é muito instrutivo observar o fenômeno do “contágio” da mídia impressa pela televisão. Há muito tempo se sabe que as imagens têm o poder de afetar não apenas condutas e hábitos, mas também as formas expressivas de outras modalidades de mídia. O cinema, por exemplo, não pára de incorporar temas, atores e mesmo recursos estilísticos da TV. Na imprensa escrita, essa influência é visível desde a ascensão da mídia eletrônica, na maior valorização da diagramação, das cores, das fotografias, dos gráficos etc.

Em termos mais gerais, a imagem televisiva funciona à base da irradiação sensível do espelhamento tecnomercadológico que faz da vida social, um de cujos aspectos é a publicização da vida privada. O reality show (Big Brother, Loft Story, Casa dos Artistas e por aí vai) tem-se imposto como o principal produto televisivo dessa tendência.

O pensador pós-moderno Jean Baudrillard enxerga sintomas claros da “segunda queda do homem, a queda na banalidade” (cf. Telemorfose, Editora Mauad, 2004) nisso que vemos também como um forçoso rebaixamento cultural de padrões, em que a audiência não é vítima, mas cúmplice passivo de um ethos a que se habituou:

“O que aí se procura é identificar ‘realidade’ com um cotidiano desprovido de maior sentido, como uma espécie de grau zero do valor ético, em que só há lugar para o miúdo, o mesquinho, a emoção barata e o banal” (cf. O império de grotesco, c/Raquel Paiva, Editora Mauad).

Ambos estamos de acordo em que essa “trivialidade de síntese, fabricada em circuito fechado e com tela de controle”, não pode ser entendida como mero voyeurismo pornô:

“Sexo existe por toda parte, mas não é isto o que as pessoas querem. O que elas querem profundamente é o espetáculo da banalidade, que é hoje a verdadeira pornografia, a verdadeira obscenidade – a da nulidade, da insignificância e da platitude.” (Baudrillard)

E não se trata de mera especulação teórica. Para John Dale, o editor de Take a Break, “o que os leitores querem são as melhores histórias sobre amor, traição, casamentos, nascimentos, mortes. Nos esforçamos para fornecer isso”.

Faits divers

Seria talvez possível associar, numa escala mais ampla, esse tropismo para a banalidade com a tabula rasa dos ideais e dos valores éticos, feita por segmentos majoritários da classe política, que, embora desencadeie uma enorme onda de escândalos e processos judiciários, termina recaindo na indiferença majoritária de leitores e telespectadores..

Como bem sabem e repetem em tom alto os novelistas da televisão, “os vilões estão na moda, ninguém gosta do mocinho”. De fato, quanto mais construímos como espetáculo público uma “realidade” mesquinha, vivida por personagens que se tornam famosos exatamente por não terem nenhuma qualidade especial, mais se anestesia o pudor coletivo frente à conduta amoral, criminosa ou vulgar.

Um jornalismo cívico se sentiria obrigado a fazer a sua intervenção crítica ou reparado nesse estado de coisas. É oportuno lembrar uma entrevista de Jean-Paul Sartre ao Nouvel Observateur (19/11/1964), em que ele recomendava aos jornais de esquerda proceder a “uma análise sociológica da sociedade a partir dos faits divers” e não deixar à imprensa de direita a exploração “da nádega e do sangue”.

Sartre sabia muito bem que a anestesia coletiva dos valores induz a sociedade ao coma da cidadania.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro