Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A caretice do noticiário

A acusação de que acertos corruptos para a construção do metrô paulistano remontam pelo menos ao governo de Mario Covas (1995-2001), revelada no noticiário da primeira semana de agosto sobre a suposta formação de cartel por fornecedores de bens e serviços, poderia ter criado oportunidade para retraçar as origens do finado Banco Rural, cuja extinção ocupou dois míseros dias (3 e 5/8) da imprensa, com míseros relatos tecnocráticos.

Antes de fazer uma breve recapitulação a respeito, cabe esclarecer dois pontos.

Primeiro, suspeições relativas a obras públicas não são manchas privativas dos governos da redemocratização. Sob a ditadura militar, poucos foram os escândalos desvelados, porque havia censura e intimidação. Mas a corrupção não era menor.

Metrô começou em 1968

No caso específico, cumpre lembrar que a construção do metrô começou em dezembro de 1968, mês em que foi editado o Ato Institucional número 5. O governador do estado (responsável pela obra) era Abreu Sodré, sucedido por Laudo Natel, Paulo Egydio Martins, Paulo Maluf, José Maria Marin, Franco Montoro, Orestes Quércia, Luiz Antônio Fleury Filho, Covas, Geraldo Alckmin, Claudio Lembo, José Serra, Alberto Goldman e Alckmin, atual ocupante do Palácio dos Bandeirantes.

Isso, na cúpula. No planalto e na planície da máquina estatal paulista houve continuidade, assim como nas empresas privadas, que não promovem rodízio geral de “cargos em comissão” a cada mudança de diretor-presidente. Os governos não podem se desfazer dos técnicos qualificados como se desfazem de mobiliário inservível. As pessoas, dos dois lados do balcão, governo e empresas, se conhecem e se entendem (e se desentendem).

Segundo ponto, tem havido reclamação a respeito do uso do termo “cartel” pelos jornais. A designação é técnica e não tem a mesma popularidade adquirida pelo mensalão.

Valerioduto serviu PSDB e PT

Parêntese: mensalão, com o sufixo aumentativo característico da linguagem brasileira (o diminutivo veio da Terrinha, de tal modo que, como escreveu Chico de Oliveira, temos jeito, jeitinho e jeitão), passou a designar até algo diferente, caixa dois da campanha eleitoral de 1998 em Minas Gerais (Eduardo Azeredo, candidato à reeleição, derrotado por Itamar Franco), por sinal sua origem.

Não houve um “mensalão” mineiro, nem tucano, porque os políticos do PSDB, saído de uma costela do PMDB, nunca hesitaram em fazer alianças políticas, colocar a mão na massa (eu ia escrevendo outra coisa) e praticar suas decorrências supostamente inevitáveis, para garantir a famigerada “governabilidade”, ao passo que os petistas tiveram a ilusão de que poderiam governar fazendo alianças “sociais” com o topo da pirâmide, bancos, grandes empreiteiras etc., e com a base, nas periferias e “grotões”.

Na hora do tranco, ou seja, de aprovar no Congresso propostas importantes e polêmicas, o Planalto não soube administrar o pepino e inaugurou algo inédito, mesada em dinheiro, propiciada pelo cordial entendimento entre Delúbio Soares, tesoureiro do PT, e Marcos Valério, apresentado a Delúbio pelo então deputado federal petista de Minas Gerais Virgílio Guimarães, sob o olhar despreocupado de José Genoíno, presidente do partido, e muito atento de José Dirceu, capitão do time, e de Lula, o líder maior.

Outro intermediário do espúrio contubérnio foi Walfrido dos Mares Guia, vice-governador de Eduardo Azeredo, filiado ao PSB, depois ministro de Lula (Turismo e Relações Institucionais). Mares Guia caiu quando estourou o mensalão.

Mas a sintaxe dos novos tempos vividos desde junho-julho no Brasil poderá transformar a palavra cartel em palavrão (esperemos que não na forma de um horrendo “cartelão”), como aconteceu na Colômbia e no México tendo como objeto as quadrilhas de traficantes de drogas.

Aliás, existe uma faixa da vida econômica em que os diferentes cartéis (da economia formal e da economia bandida) se encontram: o mercado bancário e financeiro.

Rabello, Sabino, Tratex, Rural

Parêntese fechado, vamos ao Banco Rural. A história está um pouco mais esmiuçada em “Da Novacap ao Valerioduto I”, “Da Novacap ao Valerioduto II” e “Da Novacap ao Valerioduto III” (os textos estão datados de 2011, devido a problemas técnicos de migração de servidor; são do final de 2005 e do início de 2006; no primeiro texto, escrevi que o avô de Katia Rabello era “Sabino Corrêa Rabello”; era Jacques Corrêa Rabello, sócio de Antônio Sabino na construtora Rabello & Sabino, como aparece na entrevista de Katia, logo adiante).

Para benefício do leitor preguiçoso, eis o resumo da opereta:

1. Desde a construção de Belo Horizonte, na última década do século 19, houve acertos entre autoridades e empreiteiros de obras públicas. O vice-governador do estado, um tio-avô de Juscelino Kubitschek, o senador João Nepomuceno Kubitschek, teve papel importante na obra. Ressalte-se que os métodos pouco republicanos eram correntes, absolutamente naturalizados. O Brasil tinha virado República em 1889, mas o então presidente da Venezuela, Rojas Paul, entendeu algo diferente. “Se ha acabado la única Republica que existia en America: el Imperio del Brasil”, comentou, conta-nos Oliveira Lima na epígrafe de O Império Brasileiro (1821-1889). Sem ilusões quanto à lisura dos dirigentes imperiais: os intendentes do Exército na Guerra do Paraguai não eram meninas do Colégio Sion. Nem dos dirigentes coloniais, bem entendido.

2. O processo foi revigorado na reforma da capital mineira, em meados da década de 1940, quando Juscelino Kubitschek era prefeito nomeado (1940-45; todos os prefeitos e interventores nos estados eram nomeados). A empresa que realizou as obras da Pampulha foi a construtora de Jacques Corrêa Rabello, avô de Katia Rabello, última representante da família no mercado bancário, condenada a longa pena de prisão no processo do mensalão.

3. JK e as empreiteiras se cruzaram de novo durante seu mandato como governador eleito de Minas Gerais (1951-1955), cujo slogan foi o binômio “energia e transportes”.

4. O Banco Rural foi criado depois da construção de Brasília (comandada pela estatal Novacap, dirigida por Israel Pinheiro, filho de João Pinheiro, outro governador de Minas Gerais no início da República). O banco foi o caminho encontrado para fazer transitar o dinheiro haurido nas obras da nova capital pela empreiteira Tratex-Rural/Servix, depois apenas Tratex, herdeira da associação entre Jacques Rabello e Antônio Sabino na Rabello & Sabino. A Tratex comprou no Rio de Janeiro uma antiga carta bancária. Assim nasceu o Rural.

Os jornalões bem que poderiam dar uma sacudidela em seus departamentos de pesquisa. Os leitores seríamos servidos com histórias mais movimentadas, quebrando a caretice do noticiário hard, e também mais complexas, menos rasas, talvez um pouco assustadoras, na medida em que mostram como será longo e acidentado o caminho do combate (eterno) à corrupção. Está na hora de inverter criticamente o famoso e bovino “Rouba, mas faz”, de Ademar de Barros. “Fazem (quando fazem), mas…”