Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A era da grampolândia

O assunto ganhou uma dimensão estarrecedora nas declarações de dois ministros. Tarso Genro, da Justiça: ‘Temos que nos acostumar ao seguinte: falar ao telefone com a presunção de que alguém está escutando’. José Múcio Monteiro, das Relações Institucionais: ‘Meu celular virou uma rádio comunitária’, e acrescentou: ‘Mas é só ser responsável e não dizer coisas que gerem dupla interpretação.’ (Ricardo Noblat, O Globo, 28/7/2008, pág. 2). E Noblat: ‘O maior perigo não está no grampo – e sim, no tradutor dele’.

Muitas interpretações presidem aos atos de fala, diferenciando-a da escrita, que deve ser o mais precisa possível, sobretudo nas leis – exceto, como é óbvio, na literatura, onde a opacidade e a ambigüidade são próprias ao texto literário.

Longe da ordem social, num mundo da anomia dos morros do Rio, onde manda quem pode e obedece quem precisa, o panorama é outro. ‘Aqui é o mundo do crime, não se pode sair fotografando assim’. Um paisano, entretanto, armado de fuzil, demonstrando entender do funcionamento de sofisticadas câmeras fotográficas em poder dos três jornalistas por ele interceptados, exigiu que as fotos fossem apagadas. Foi obedecido, mas, nas redações de O Globo e O Dia, avançados programas de computadores permitiram a recuperação dos arquivos deletados. As fotos foram publicadas na edição dominical (27/7) desses jornais.

De 300 mil para 1 milhão

Como vimos, há o que é visto e não pode ser mostrado. Há também o que é ouvido e não pode ser publicado ou usado de forma alguma, de que são exemplos as conversas por telefone. E há ainda o que é lido e não pode ser divulgado, como a troca de cartas e de e-mails. O sigilo de correspondência tem garantias legais e é crime bisbilhotar a vida alheia.

Mas agora temos o Guardião, nome do computador dotado de tecnologia capaz de gravar simultaneamente milhares de conversas. Mário Simas Filho e Hugo Marques, ao explicarem na revista IstoÉ o funcionamento da bisbilhotagem eletrônica, fizeram uma revelação assustadora sobre o Guardião:

‘A Justiça autoriza a grampear o telefone 1. Quando o 2 liga para o 1, a conversa é gravada, mas não significa que todas as ligações do 2 serão grampeadas.Quando o 1 recebe a ligação do 3, ela também é gravada, sem que outras ligações do 3 passem a ser monitoradas. O que o Guardião permite – e está sendo usado para isso – é gravar, a partir daí, todas as ligações que o 2 e o 3 fizerem entre si’ [ver aqui].

O número de telefones grampeados saltou de 300 mil, em 2007, para 1 milhão em 2008. É provável que e-mails, cartas e outros meios de comunicação estejam sendo bisbilhotados.

Grampos e arapongas

Nos começos da vida em cidades, o comércio criou a palavra ‘intérprete’, do latim interprete, declinação de interpres, vinculado pela preposição inter (entre) a pretium, preço. Primeiramente, designou apenas aquele que tratava do preço das mercadorias, falando as línguas do vendedor e do comprador. O intérprete dizia ao comprador, que falava uma língua diferente da do vendedor, qual era o preço e quais eram as condições de compra e venda. Passou depois a indicar profissionais dedicados a outros tipos de interpretação, como a dos textos sagrados e, bem mais tarde, a de tradutor e mensageiro.

Já o grampo remete a um tempo em que bisbilhotar a vida do próximo requeria a instalação de um grampo que desviava ou bifurcava o fio, levando a conversa a outros destinatários.

Assim, o verbo ‘grampear’, cujo primeiro registro é de 1954, mudou de significado no período pós-1964. A revista Realidade (Janeiro de 1969, pág. 81), num texto de Plínio Marcos, apresentava o verbo grampear com o sinônimo de matar: ‘Se tivesse uma draga comigo, grampeava ele.’ ‘Draga’ era outro nome para revólver.

Em meu livro De onde vêm as palavras (A Girafa, 14ª edição), registrei:

‘Quem inaugurou e consolidou grampo e grampear na língua portuguesa para designar a espionagem por telefone foram os arapongas da ditadura militar. São ainda controversas as razões que levaram o povo a designar os espiões com o nome de uma ave que é também conhecida como ferreiro porque sua voz metálica lembra o som que fazem martelo e marreta ao baterem no ferro na bigorna.’

Que não sejam, porém, confundidos com arapongas os delegados da Polícia Federal que, com autorização judicial (esta é a grande diferença entre eles e os arapongas), bisbilhotaram os telefones, fixos ou celulares, de seus investigados, que levaram a tantas prisões na recente Operação Satiagraha.

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Doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá, onde é vice-reitor de pesquisa e pós-graduação e coordenador de Letras; seus livros mais recentes são Os Segredos do Baú (Peirópolis) é A Língua Nossa de Cada Dia (Novo Século); www.deonisio.com.br