Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A sabotagem da verdade

Os três principais diários brasileiros de circulação nacional registram a versão oficial do governo de São Paulo para os incidentes ocorridos em duas linhas do Metrô no fim da tarde de terça-feira (4/2). Para o governador Geraldo Alckmin, tudo teria se resolvido em dez minutos no comboio que parou por um defeito nas portas, se não fosse a ação simultânea de alguns usuários, que forçaram a abertura de outras sete composições e saíram caminhando pelas passarelas de emergência. O governador sugere que houve uma conspiração para sabotar o sistema.

Como no dia anterior, também na quinta-feira (6/2) há diferenças notáveis na cobertura de cada um dos jornais (ver “Pane no metrô e na imprensa”). A Folha de S. Paulo, que no calor dos acontecimentos responsabilizou os passageiros pelo tumulto, segue dando prioridade à versão da Companhia do Metrô, agora oficializada pelo governador. O carioca O Globo, com menos interesse no problema dos paulistas, apenas reproduz em uma coluna a versão oficial. O Estado de S. Paulo, que na véspera havia produzido um noticiário mais crítico, também oferece amplo espaço para a manifestação do governo, mas não exime de responsabilidade a empresa de transporte metropolitano.

Embora se possa dizer que, como sempre, a verdade pode estar presente em qualquer lado, na diversidade de argumentos, basta dar uma olhada na fotografia estampada na primeira página da Folha para se ter uma ideia do que se trata: ali se pode constatar as condições que os milhões de usuários do sistema de transporte sobre trilhos são obrigados a enfrentar diariamente para voltar para suas casas.

Se, em seus textos, a Folha foge da evidência produzida pela imagem na sua primeira página, o Estado de S. Paulo marca uma posição mais independente e assertiva, ao assumir em editorial que a responsabilidade é integralmente da Companhia do Metrô.

A Folha se esforça por dar credibilidade à teoria conspiratória do governo paulista; o Estado observa que, mesmo na circunstância de vir a ser confirmado um ato de sabotagem – hipótese que o jornal considera improvável – “isso não justificaria o descontrole da segurança, que tratou com violência os passageiros”.

Habeas corpus preventivo

As diferenças entre os dois grandes jornais paulistas não se dão apenas no maior detalhamento das reportagens do Estado, mas principalmente naquilo que podemos chamar de predisposição ao contraditório.

A Folha agasalha, desde o primeiro momento, a versão que culpa os usuários por seus próprios sofrimentos; portanto, o jornal se posicionou num trilho do qual terá dificuldade para escapar, e por isso tende a dar credibilidade à tese da sabotagem.

O Estado expõe, desde o calor dos fatos, um conjunto de falhas do sistema, que podem ter contribuído para um desfecho quase trágico, e, portanto, fica mais livre para duvidar da versão oficial.

O governador tem poucas alternativas: com a campanha eleitoral em pleno andamento, sua opinião pessoal se dissolve e ele precisa se valer de conselheiros não comprometidos com aspectos técnicos do incidente – esses assessores tendem a transformar tudo em instrumento da disputa nas urnas.

Cabe à imprensa reproduzir as declarações oficiais em um contexto objetivo, que permita ao público formar suas opiniões na direção da verossimilhança. Nesse incidente, o Estado faz claramente uma escolha de mais qualidade, demonstrando respeito pela inteligência de seus leitores.

O episódio parece revelar a quebra de certo consenso que tem marcado os principais jornais brasileiros de circulação nacional na última década, e que se caracteriza por escolhas editoriais discriminatórias, nas quais um dos lados em que se dividiu a política nacional é tratado como inimigo público e o outro recebe os benefícios que se concedem aos amigos.

O correto é esperar que a imprensa trate com igual rigor crítico todos os detentores do poder público, assim como empresas e clubes de futebol, sem demonstrações de partidarismo.

Falta esmiuçar a polêmica entre o sindicato dos metroviários e os dirigentes da Companhia do Metrô, para esclarecer quem tem razão e quais são os riscos que a população está correndo diariamente, em trens lotados cujos sistemas de controle podem falhar a qualquer momento. Essa questão se relaciona diretamente ao escândalo das licitações fraudulentas.

O incidente de terça-feira pode estar anunciando uma tragédia – alguns protagonistas parecem estar preparando seus habeas corpus preventivos.