Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A síndrome do tapete vermelho

O mineiro só é solidário no câncer. A frase, atribuída ao escritor Otto Lara Resende, parece demasiadamente cruel para definir o nosso povo, mas certamente expressa indignação pelo jeito de ser e agir de muita gente, sobretudo nos meios culturais. No entanto, prefiro a ironia de Bartolomeu Campos de Queirós – nosso novo acadêmico e sempre sábio Bartolomeu, autor premiado em vários países. Mineiramente, ele costuma dizer que temos vocação para estender o tapete vermelho.


A predisposição provinciana para se render ao que vem de fora contrasta com a fama de desconfiado que sempre acompanhou o mineiro típico. Do ponto de vista antropológico, incorporamos traços comportamentais de garimpeiros, que nunca revelam onde está a jazida; e boiadeiros, que menosprezam o gado alheio para comprá-lo na bacia das almas. Mas há também a herança tupiniquim de acolher o visitante com generosidade, mesmo quando se trata de um ‘falso profeta’. Basta ver os projetos culturais que trazem autores e artistas de fora, nem sempre expressivos, enquanto os autores da terra não têm espaço para falar de seus projetos. Em outros casos, convidam todos, remuneram os de fora e sequer dão uma gorjeta aos de casa.


Embora muitos de nossos artistas sejam reconhecidos e aclamados em outras praças, não conseguimos ainda consolidar um mercado local, com espaço lucrativo para nossa música, nossa literatura, nossas artes cênicas e plásticas. A cada nova geração de talentos, as dificuldades e reclamações se perpetuam na mesma proporção da rivalidade. Alguém já disse que em Belo Horizonte, quando dois artistas se encontram, geralmente falam mal de um terceiro. Talvez seja um exagero, mas de fato existem aqueles que preferem fiscalizar a produção alheia em vez arregaçar as mangas e realizar seus próprios projetos.


Arte e entretenimento


Quando ainda não existiam leis de incentivo, viver de arte e cultura em Minas Gerais era praticamente impossível. No entanto, muita gente vivia dignamente do seu ofício. Hoje, os recursos desses mecanismos custeiam as instituições oficiais e apóiam iniciativas de artistas e produtores. Mesmo com esse apoio, o fazer cultural raramente dá lucro. Criou-se, dessa forma, uma relação contraditória entre a arte, de natureza crítica, e o poder, de vocação conservadora – independentemente da ideologia dos partidos. Como diria Nietzsche, ‘o Estado é inimigo da cultura’. No entanto, hoje somos forçados a acreditar no contrário, uma vez que as leis de incentivo substituíram as políticas culturais.


Curiosamente, por mais cruel que tenha sido, a ditadura militar serviu para unir artistas e intelectuais contra o poder, na defesa das artes e das liberdades democráticas. Naquele período obscuro de nossa história, organizaram-se grupos, associações e sindicatos empenhados na defesa de interesses comuns, exigindo recursos oficiais, respeito e apoio aos fazedores de arte. Essa mobilização garantiu-nos posição de vanguarda na luta pela redemocratização do país. No entanto, com a reabertura política, a classe se dispersou e exacerbou-se o individualismo. Com isso, perdemos espaço nos gabinetes e na grande mídia. Em outras palavras, vivemos um período de refluxo, inclusive no sentido estético.


Basta dar uma olhada nos cadernos de cultura dos jornais mineiros para ver quanto regredimos nos últimos tempos. Entre arte e entretenimento, os jornais preferem noticiar o segundo. Em outros tempos, a geração Encontro Marcado migrou para o Rio de Janeiro justamente por não encontrar apoio entre as montanhas de Minas. O mesmo ocorreu com jornalistas que foram fazer escola em São Paulo. Sem contar que o poeta Carlos Drummond de Andrade teve bons motivos para não voltar à sua terra. Artistas e intelectuais que permaneceram em Minas enfrentaram sérias dificuldades para sobreviver.


O circo da mídia eletrônica


A miopia do noticiário no que se refere aos valores artísticos da aldeia se agravou consideravelmente nos últimos anos. Carecemos de uma imprensa comprometida com os valores regionais, e não apenas com os interesses desse ou daquele político. Numa sociedade globalizada, o regionalismo é o que faz a diferença, e não a mesmice pasteurizada ditada pela mídia eletrônica. A influência global e a cultura das celebridades nunca se fizeram tão intensas. Com isso, uma atração do Big Brother Brasil ganha mais espaço nos cadernos culturais do que artistas locais mesmo de fama internacional, como um Toninho Horta ou um Carlos Bracher, só para citar duas unanimidades.


Com exceção da Rede Minas, que tem procurado cumprir seu papel institucional no trato com a cultura e a educação dos mineiros, a programação da TV local deixa tudo a desejar. Os poucos horários da grade reservados às manifestações regionais são impraticáveis. Também as emissoras de rádio, em sua maioria, ignoram a música produzida no estado, que em outros tempos chegou a ser considerada a melhor do Brasil pelo compositor baiano Caetano Veloso. Com exceção de alguns que fazem o gênero pop rock, raramente nossos músicos têm tido espaço na programação radiofônica.


Do seu lado, a classe artística chora a vida nos bastidores, esquecida dos tempos em que era politicamente organizada. Tempo no qual grupos profissionais e amadores disputavam os poucos espaços culturais da cidade. Hoje sobram palcos, mas, mesmo com as leis de incentivo, as dificuldades de produção se multiplicaram e boa parte dos eventos deixa a desejar ou nem chega a se concretizar enquanto produção. A Campanha de Popularização do Teatro, por exemplo, banalizou-se com a reprise de comédias toscas que agradam o público leigo, mas nada acrescentam ao próprio teatro. A discussão estética e a preocupação vanguardista renderam-se aos ditames do circo de entretenimento montado pela mídia eletrônica.


A omissão de artistas e produtores


Por mais que nossos produtores possam discordar, o fato é que não há mais reflexão crítica sobre a nossa realidade cultural. A maioria daqueles que atuam no setor se rendeu aos parâmetros impostos pela TV, pelas grandes editoras, pelas gravadoras – ainda que decadentes – e pelo cinema comercial norte-americano. Em outras palavras, artista mineiro bom é artista mineiro morto. E olha que isso também já não conta. Basta lembrar a modesta repercussão dada à morte de Vander Piroli pela mídia local, só para citar um grande nome da nossa literatura cuja perda repercutiu em jornais do eixo Rio-São Paulo.


Enquanto isso, na contramão da submissão ao colonialismo cultural, a Feira de Livros de Porto Alegre e a música baiana devem muito às mídias regionais. Enquanto, no Rio Grande do Sul, o tablóide Zero Hora fez da cultura gaúcha sua principal bandeira, na Bahia as emissoras de rádio acolheram os músicos locais. Em ambos os casos a cultura regional se consolidou, tornando-se referência internacional. Se hoje os escritores gaúchos encontram mercado nos pampas, os músicos baianos fazem festa o ano inteiro e só não ofuscam o carnaval carioca porque os interesses comerciais não deixam. Basta lembrar que Michael Jackson gravou um dos seus videoclipes com o Olodum em pleno Pelourinho.


Em Minas, contrariando a tradição e o ensinamento de Tolstoi, tornaram-se raros os cronistas que escrevem sobre seu tempo e a aldeia onde vivem. O compadrio e o gosto pessoal de quem faz a notícia é o que prevalece no agendão de eventos sem importância dos cadernos culturais. Isso sem falar nos interesses comerciais e políticos dos veículos de comunicação. Não há mais espaço para a crítica especializada e a reflexão estética. Criou-se o mito de que esporte, política e economia são as editorias mais importantes e provavelmente essa é uma das causas da perda de leitores dos grandes jornais, embora alguns entendidos prefiram culpar a internet.


Enfim, na ausência de critérios objetivos, o contrapeso subjetivo à síndrome do tapete vermelho são as relações pessoais e o modismo puro e simples – os cinco minutos de fama fabricados pela cultura de massa. Ao ignorar a segmentação de mercado e os valores regionais, a imprensa local perde leitores e condena profissionais da arte e da cultura ao exílio na própria terra. Mas o que mais preocupa é a omissão de artistas e produtores, que fazem média com a mídia na esperança de merecer espaço na pauta. Ignoram, inclusive, as possibilidades da internet, sem a qual o presente artigo jamais seria publicado.

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Escritor e jornalista, Belo Horizonte, MG; seu site