Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Absolvição do promotor condenado pela mídia

Em 30 dezembro de 2004, o promotor de justiça Thales Ferri Schoedl protagonizou um episódio trágico. Ele andava com a sua namorada Mariana Ozores Bartoletti pelas ruas da Riviera de São Lourenço, em Bertioga, no litoral paulista, quando deparou com um grupo de jovens que estavam encostados em um carro.


De acordo com o promotor, ouviu provocações de baixo nível acerca da beleza de Mariana e, ofendido, cobrou respeito. Foi, então, ameaçado de agressão. Em uma seqüência fracassada para tentar evitar o confronto físico, Schoedl, então com 26 anos, 1,70m, identificou-se como promotor, foi ironizado (‘é promotor de balada!’), alertou estar armado, sacou a sua pistola 380 (‘é arma de brinquedo!’), deu tiros de advertência para o alto e para o chão (‘é de festim!’), deixou o local andando e, como nada disso adiantasse, teve de fugir correndo por cerca de 100 metros, ao lado da namorada, perseguido por um grupo que gritava ‘Mata!, Mata!’.


Acuado, por fim, inferiorizado fisicamente e na iminência de ser espancado e assassinado por dois dos seus agressores, que tentavam tirar-lhe a arma, desesperou-se e disparou várias vezes. O jogador de basquete Diego Mendes Modanez, 20 anos, 1,94m, levou dois tiros e morreu no hospital; o estudante Felipe Siqueira Cunha de Souza, 20 anos, 1,98m, foi atingido quatro vezes, mas sobreviveu.


Condenado pela mídia


Confirmada por diversas testemunhas, inclusive as apresentadas pela acusação, como se verifica pela leitura do processo criminal 118.836.0/0-00, a versão foi considerada verdadeira pelos desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, composto pelo presidente, pelos desembargadores mais antigos e por uma outra parcela de magistrados eleitos. Por 23 votos a zero, Thales Ferri Schoedl foi absolvido por legítima defesa.


Ao proferirem os seus votos, alguns desembargadores criticaram veemente a cobertura jornalística do caso: ‘Houve uma distorção da imprensa, isso é revoltante’, disse o desembargador Ivan Sartori. O desembargador Carlos Mathias Coltro citou o caso Escola Base para defender que houve pré-julgamento do réu na divulgação de informações sobre o crime, publicou o UOL.


Os desembargadores referem-se à versão exaustivamente divulgada pela mídia e que não se sustenta nos vários testemunhos do processo. Conforme essas reconstituições, o promotor simplesmente teria descarregado a sua arma nas vítimas apenas porque estava irritado com os rapazes que teriam mexido com a sua namorada.


Como destacamos neste Observatório em uma série de artigos publicados há mais de um ano, o promotor acabou sendo condenado pela mídia, sem direito a julgamento. Chegou a ser tachado de ‘assassino’ por veículos tradicionais, como os jornais O Estado de S. Paulo e, na linha ‘popularesco-popular’, o Diário de S. Paulo, entre outros.


Prejulgamento lamentável


Disse o promotor na primeira entrevista que concedeu, publicada por este portal em 23 de outubro de 2007:




‘Eu lembro como se fosse ontem, que logo no primeiro dia já apareceu uma simulação, num canal de televisão que não me recordo qual foi, aparecendo aquela versão que se divulgou, que eu estava andando com a minha namorada, mexeram com ela, eu virei e comecei a efetuar diversos disparos contra aquelas pessoas. Eu fiquei desesperado. Fui até falar para todo mundo: ‘Não, não foi assim que aconteceu!’ Já havia alguns depoimentos, posteriormente. Eu lembro que mostrava os depoimentos, quando estava preso, para as pessoas que vinham me visitar e as pessoas ficavam espantadas: ‘Nossa, mas a imprensa não divulgou essas versões…’ Infelizmente, nunca se divulgou a versão que está aí nos autos.’


Absolvido por unanimidade, o promotor voltou a falar com este articulista. Na entrevista a seguir, realizada por e-mail, Schoedl relembra os fatos, mostra-se decepcionado até com a ‘imprensa boa’, lamenta o seu prejulgamento pela mídia e aconselha: ‘Acho que a imprensa deveria deixar a função de julgar para o Poder Judiciário.’


***


Qual é a sua avaliação sobre a cobertura jornalística do julgamento e da sua absolvição?


Thales Ferri Schoedl – O episódio em que me envolvi, contra a minha vontade, foi muito triste, mas eu sempre tive certeza de que agi em legítima defesa, o que foi confirmado pelo Tribunal de Justiça. Foi uma vitória importante para mim, para minha família, amigos e para toda a sociedade, que pode ter certeza de que existe um Poder Judiciário isento e que julga os processos de acordo com a prova dos autos, e não com base no que parte da imprensa afirma sobre um fato. Infelizmente, a maioria da imprensa divulgou uma versão que não corresponde ao que aconteceu naquele trágico evento, ou seja, que eu estava numa festa na praia e que após um grupo de rapazes ter mexido com minha namorada atirei contra eles doze vezes. Isso nunca aconteceu, conforme insistentemente afirmado pelos desembargadores do Tribunal de Justiça, com supedâneo nos depoimentos de várias testemunhas e até do rapaz que sobreviveu. Chegou-se até a afirmar que parecia tratar-se de outro processo, tamanha a discrepância entre o que se divulgou na mídia e o que de fato ocorreu naquele dia. Enfim, ficou provado que, após a importunação à minha namorada, eu apenas pedi respeito, mas aquele grupo de jovens resolveu me agredir e tomar a minha arma, mesmo após eu me identificar como promotor de justiça, alertar que estava armado, efetuar disparos de advertência, guardar a arma, fugir cerca de 100 metros, realizar novos disparos de advertência e somente atirar contra o grupo quando concretizada a agressão e no momento que eles me agarraram para tomar a minha arma.


Eu respeito o direito à informação e sei que a imprensa é importante para a democracia, mas este direito deve ser exercido com responsabilidade; caso contrário, uma decisão serena e justa, como esta do Tribunal de Justiça, acaba sendo questionada pela população, por conta da divulgação daquela versão inverídica sobre os fatos, quando na verdade se trata de uma demonstração de que a sociedade pode confiar numa Justiça isenta, atenta apenas à prova do processo. Acho que a imprensa deveria deixar a função de julgar para o Poder Judiciário e estimular que a população confie nas instituições constituídas, ao invés de colocá-las em xeque, salvo, é claro, quando desvios de poder forem praticados.


Como foi o trabalho da mídia desde a ocorrência em Bertioga?


T.F.S. – Acho que a internet foi um grande aliado para meus advogados poderem divulgar a verdade sobre o caso. Através dela, foi possível divulgar os depoimentos, peças e as decisões do processo e as pessoas puderam se informar sobre a verdade dos acontecimentos. Não foram poucos os internautas que mudaram de opinião após lerem estes documentos, afirmando que se tratava de um caso típico de legítima defesa. Já os demais veículos de imprensa, em sua grande maioria, sempre insistiram na divulgação daquela versão inicial que não corresponde à verdade, mesmo após serem alertados pelos meus advogados que, inclusive, entregaram a diversos jornalistas as cópias daqueles mesmos documentos.


Decepção com a ‘imprensa boa’


É correto dizer que, na generalidade, os jornalistas torceram pela sua condenação?


T.F.S. – Isso eu não tenho como afirmar. Talvez aqueles que não conheciam a prova do processo podem, sim, ter torcido pela minha condenação.


Na mesma linha, parece haver uma má-vontade persistente contra a tese, aceita pelo tribunal, de legítima defesa…


T.F.S. – Sim, exatamente, porque a maioria não conhece a prova dos autos e, infelizmente, às vezes parece não querer conhecer. Foram poucos os jornalistas que realmente quiseram ler o que consta no processo.


Jornalistas e uma boa parcela do público têm dito que a decisão do tribunal teria sido ‘corporativista’…


T.F.S. – Esta afirmação não tem sentido. Primeiro porque o Ministério Público e o Poder Judiciário são carreiras distintas, sendo até ilógico falar-se em corporativismo. Além disso, o próprio Tribunal de Justiça já condenou, também por unanimidade, alguns juízes e promotores de justiça, mas este fato parece ser ignorado por parte da imprensa, destacando-se apenas esta decisão absolutória proferida de forma isenta, técnica e justa, com base na prova dos autos. Eu queria ressaltar que os desembargadores do Órgão Especial do Tribunal de Justiça estão entre os mais preparados e experientes do Brasil, possuem uma história de vida pessoal e profissional inatacável, não havendo sentido em quererem proferir uma decisão caracterizadora da legítima defesa apenas para favorecer-me. Aliás, quem acompanhou o julgamento pôde perceber que todos os votos foram muito bem fundamentados na prova dos autos e que não havia outra solução, senão a absolvição por legítima defesa.


Qual era a sua visão sobre a mídia antes do episódio da Riviera? Algo mudou?


T.F.S. – Mudou muito. Eu já sabia que muita coisa publicada na imprensa não correspondia à verdade, mas não esperava que isso ocorresse também na chamada ‘imprensa boa’.


‘Cobertura revoltante’


Jornalistas têm justificado um suposto ‘mau tratamento’ que lhe teria sido dispensado como conseqüência de o senhor ter-se recusado a conceder entrevistas…


T.F.S. – Meus advogados entregaram aos jornalistas várias cópias dos principais documentos do processo e nas gravações das entrevistas por eles concedidas todo este material era também apresentado. Porém, quando a matéria era publicada, tudo era omitido, talvez para sustentar aquela versão inicial que não corresponde à verdade. Acho que, diante deste quadro, nenhum ser humano se sentiria à vontade para dar entrevista e tal postura não justifica o mau tratamento que me fora dispensado pela maioria da imprensa.


No julgamento, vários desembargadores criticaram o jornalismo brasileiro, em face deste caso. Quais foram as palavras dos juízes que mais lhe chamaram a atenção?


T.F.S. – No momento em que um dos desembargadores afirmou que era ‘revoltante’ o trabalho da imprensa na cobertura deste caso, eu não consegui segurar e comecei a chorar. Também quando afirmaram que tal tratamento da mídia era semelhante ao caso da Escola Base e que, após lerem os autos, parecia tratar-se de outro caso, e não daquele divulgado pela imprensa. Parecia que os julgadores, naquele momento, sabiam tudo o que se passou no meu coração nestes quatro anos e por isso não tive como conter as lágrimas.


Mandado de segurança


O senhor foi classificado por jornalistas como o típico filho da classe média alta, a autoridade arrogante que se achava acima da lei, o que o teria levado a cometer os crimes, em nome da impunidade. O que o senhor tem a dizer sobre isso?


T.F.S. – Como afirmado também pelos desembargadores, ‘trata-se de um caso clássico de legítima defesa, a ser utilizado em aulas de Direito Penal’. Isto é, qualquer pessoa que se encontrasse na mesma situação, seja rica ou pobre, teria sido absolvida da mesma forma. O que acontece é que os casos envolvendo autoridades ou pessoas com melhor condição social tornam-se emblemáticos, mas quando uma pessoa com menos poder aquisitivo é absolvida por um fato semelhante não há repercussão na mídia. Assim, surge a falsa percepção na população de que apenas pessoas com melhor condição social são absolvidas ou são agraciadas com algum benefício legal. Tenho certeza de que, apenas pelo fato de eu ser promotor de justiça, grande parte da imprensa preferiu logo me condenar, em vez de ler o processo. Sobre eu ser o ‘típico filho da classe média’, posso afirmar que tive muita dificuldade para pagar os meus estudos durante a faculdade e também o curso preparatório para o concurso de promotor de justiça e que muito me esforcei para chegar a este cargo, tenho certeza de que o alcancei por mérito próprio.


Os críticos que o consideraram e ainda o consideram publicamente um ‘assassino’ sustentam essa conclusão com base na leitura do processo criminal?


T.F.S. – Com certeza tal conclusão não decorre da leitura dos autos. Posso dizer que, após a leitura do processo, ou pelo menos dos depoimentos, inclusive do rapaz que sobreviveu, independentemente de se concordar ou não com tese de legítima defesa, não há como classificar a minha conduta como a de um ‘assassino’, tendo em vista a forma como os fatos ocorreram. Os próprios desembargadores mencionaram o depoimento de uma testemunha que afirmou que eu disse ‘pelo amor de Deus, eu estou armado’, durante o avanço daquele grupo e antes dos disparos de advertência. Quem tem a intenção de matar alguém, o chamado ‘assassino’ não age dessa forma e também não realiza as outras condutas já mencionadas, tentando, de todo modo, evitar o confronto.


O senhor pensa em processar algum veículo ou jornalista por ter sido chamado de ‘assassino’, uma vez confirmada a sua absolvição?


T.F.S. – Por enquanto eu só estou pensando no mandado de segurança impetrado no Supremo Tribunal Federal, onde já obtivemos uma decisão liminar [sobre a sua permanência no cargo] que suspendeu os efeitos da decisão inconstitucional proferida pelo Conselho Nacional do Ministério Público.


***


Furo medalha de bronze


A Rádio Bandeirantes veiculou na segunda-feira (1/12) uma entrevista com Thales Ferri Schoedl. Apesar do conhecimento de que este Observatório publicara com exclusividade a primeira entrevista com o promotor havia mais de um ano, com manchete no portal iG e grande repercussão em outros veículos, como o portal do Estadão e a Revista da Semana (Editora Abril), o repórter Pedro Campos, que havia muito acompanhava o caso de perto, preferiu iludir a si mesmo e ao seu ouvinte com este comentário:




‘Durante os quatro anos que se passaram, Thales não concedeu entrevista. O promotor rompeu o silêncio neste fim de semana em uma entrevista exclusiva para a Rádio Bandeirantes’.


Apesar de alertada por este articulista, a emissora manteve o conteúdo, também em seu site.


Não menos importante: depois do primeiro artigo neste Observatório, a revista Época também já havia publicado uma entrevista com o promotor.


É assunto que, ao largo das vaidades e dos impulsos de napoleão de hospício, merece uma análise futura, à luz da ética e da deontologia jornalísticas. (J.P.L.)

******

Jornalista