Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Alberto Dines

‘Não adianta olhar para o lado, animar-se com a semana de feriados que se avizinha, lastimar que Carlinhos Cachoeira seja o senhor das crises, espernear contra a estrela do PT plantada nos jardins dos palácios de Brasília. Deletério berrar contra juros escorchantes, invocar Lênin, xingar Bush, atrelar-se a Hugo Chávez e iludir-se com as quotas para negros nas universidades.

A Rocinha não é carioca nem fluminense – é brasileira. Esse pedacinho de roça na periferia da antiga Capital que subiu até a aristocrática Gávea (ou dela desceu em direção à praia) não é apenas a favela-símbolo da Cidade Maravilhosa. É o show-room da falência do Estado, terra de ninguém da República, mostruário da imoralidade, vitrina da degradação social, exibição permanente da incompetência política e da corrupção entranhada.

A Rocinha é o mais famoso ferro-velho de leis, Museu de Cera de magistrados venais, depósito de códigos obsoletos, mausoléu constitucional. Não é uma ilha, já é um continente. O narcotráfico não teria assumido proporções tão gigantescas se não existissem em nosso país, há tantas décadas, esses roçados cultivados apenas pela contravenção e pelos caudilhos.

A Rocinha é a antítese do Brasil roceiro. Já fomos bucólicos, serenos, lúcidos, conciliadores. Ontem seresteiros, hoje funkeiros. A violência saiu das sombras, consagrada pelas foices da reforma agrária na marra, pelas flechadas dos índios nos garimpeiros, pelas balas que pareciam perdidas mas são certeiras. Essa transformação precisa ser plenamente assumida.

A sociedade brasileira comporta-se como sonâmbula, entregue às rixas paroquiais, tomada pela insensatez, palavras de ordem vazias, confundida por idiotas letrados que jamais administraram suas próprias casas, incapaz de perceber que a Rocinha, ao invés de dividir o Rio, espraia-se cimentada pelo país afora.

Engalfinhados na discussão sobre o envio dos tanques do Exército para subir as ladeiras da favela, esquecemos do ‘bonde’, a caravana de sete ônibus com 500 admiradores do bandido Lulu que foram ao seu enterro na quinta-feira. Não são bandidos, mas servem aos bandidos – no caso o herdeiro Zarur que se opõe às pretensões do facínora Dudu com outros 500 inflamados súditos, prontos a fechar lojas, escolas, agredir repórteres e impor a sua lei.

Os blindados federais jamais impedirão esses ‘bondes’. Quando se fala em intervenção do poder central, o que se pretende é lembrar que na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, existem pelo menos dois – o das Cidades e o da Integração Nacional – que deveriam estar fazendo alguma coisa há pelo menos 10 dias.

O casal Garotinho não é solução nem tem soluções. Os consortes, para o nosso azar, são o problema, frutos da demagogia e do populismo que só agravaram a exclusão e a ignorância, mães de todas as favelas. Egressos do PCB, do PT, do PSB e agora no PMDB, representam a incapacidade de certas esquerdas para encarar a realidade.

Cemitério de ideologias, religiões e utopias, a Rocinha é, antes de tudo, um monumento ao fracasso dos governantes. Salvo a experiência do recolhimento do lixo nos anos 70 e o programa Favela-Bairro – todos insignificantes -, a Rocinha permanece como desafio à famosa criatividade brasileira. Nunca foi bandeira de projeto de grosso calibre, sempre inferiorizada diante de sonhos faraônicos para privilegiar o transporte individual. Agora, vingou-se.

Enganam-se redondamente os geólogos, ao afirmar que o Brasil não tem vulcões em atividade; temos muitas rocinhas de magma incandescente prestes a derramar-se morro abaixo.

Integrada a uma cidade que não a aceita, disfarçada por seus modismos, a Rocinha tomou conta do Rio e impôs-se à agenda nacional. Impossível esquecê-la: o risco-país pode ser atenuado com a safra de soja ou as reuniões do Copom mas as realidades da Rocinha têm todas as condições para agravá-lo.’



Marcos Sá Corrêa

‘Seu nome não é Rocinha’, copyright No Mínimo (http://nominimo.ibest.com.br), 15/04/04

‘Nada como uma semana de guerra na Rocinha para se ler uma grande reportagem sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Mas não adianta procurá-la nos jornais. Ela saiu em livro, como acontece cada vez mais no Brasil com as reportagens que são grandes de verdade. Chama-se ‘Meu nome não é Johnny’, do jornalista Guilherme Fiúza, que mantém nesse site um desencontro semanal com a opinião pública. Conta a história de João Guilherme Estrella, preso em 1995 pela Polícia Federal num apartamento de Copacabana, onde embalava para exportação 6 quilos de cocaína, destinados ao mercado europeu.

João Guilherme não poderia ter menos a ver com a Rocinha. É filho de um gerente do falecido Banco Nacional. Criou-se num condomínio de alta classe média no Jardim Botânico. Cresceu no circuito Country Club, colégio Souza Leão e Praia do Pepino, como mandava o figurino da grã-finagem carioca em sua geração. Viciou-se em cocaína sem pisar nos morros do Rio de Janeiro. E virou traficante de grosso calibre sem disparar uma só bala. Mas é exatamente por seguir um curso tão diferente do que parece inevitável na Rocinha – ou pelo menos nas notícias publicadas sobre a Rocinha – que sua história talvez sirva de consolo ao carioca. Assim ele não é obrigado a ouvir, além dos tiros, as bobagens que sempre respondem na cidade ao fogo-cruzado das favelas.

No livro, os bandidos propriamente ditos, do tipo sanguinário que parece indispensável à saga da cocaína nas páginas policiais, só atravessam o caminho de João Guilherme quando ele estava na cadeia. Ou seja, em pleno processo de recuperação para o convívio social. Ali, sim. Foi jurado de morte por um companheiro de cela. Cuidou da correspondência amorosa de um gerente do tráfico que enfrentara o cerco da polícia cheirando 50 gramas de pó e apertando o gatilho do fuzil AK-47. Formou um conjunto musical com o dono de uma boca-de-fumo. E conheceu de perto um preso taciturno que, lá fora, tinha o hábito de serrar pernas e braços dos inimigos ainda vivos.

Não era bem o tipo de gente que ele, como traficante, associava naturalmente à cocaína. Solto, operando numa conexão que tinha os pés em Mato Grosso e a cabeça em Amsterdã, tinha uma freguesia que ninguém seria capaz de associar à violência urbana do Rio de Janeiro. Dona Marly, por exemplo. Tratava-se de uma setentona ‘de olhos claros e espertos, enxuta, cabelos bem pintados e passos firmes’, que morava num cobertura alugada em Copacabana e costumava lhe dar, de graça, conselhos meio maternais.

‘Mas quando João passava de carro em frente a seu prédio, na rua Santa Clara, para entregar a droga, ela aparentava 90 anos. Cobria a cabeça com um xale, se curvava toda e ia da portaria ao meio-fio com um passinho curto e uma fragilidade de dar pena. Uma ótima atriz. Então a pobre velhinha estendia a mão para dentro do carro e voltava para casa com seus 50 gramas semanais de pó, que revenderia para cerca de vinte clientes mais ou menos fixos. Um negócio de 5 mil dólares mensais líquidos, aproximadamente’.

No varejo, vênia a um oficial da Aeronáutica: ‘Era um tenente-médico, jovem, figura absolutamente Caxias, que por um bom tempo viraria um de seus fregueses mais regulares – e mais discretos. Ao contrário da maioria, o militar era incapaz de telefonar em horários impróprios, ou de qualquer outro tipo de assédio indesejável. Não falava demais nem de menos, não atrasava pagamento, entrava e saía de sua casa compenetrada e objetivamente. Era como se estivesse despachando no gabinete de um oficial superior. João tinha encontrado nas Forças Armadas o seu cliente modelo’.

Seu principal fornecedor vivia preso a uma cadeira de rodas: ‘Ficara paraplégico num acidente de carro cinco anos antes. Na época, não era traficante. Tinha uma confecção de roupas em Petrópolis com sua namorada de muitos anos, que acabou morrendo no acidente’. De sua casa na serra, ligava o Rio de Janeiro a ‘um dos maiores laboratórios de refino de cocaína da América do Sul, situado na cidade de Rondonópolis, Mato Grosso, a cerca de 400 quilômetros da fronteira com a Bolívia’. Trabalhava com ‘cocaína de grife’, com ‘o selo Nelore Puro’. Ou seja, cocaína D.O.C.

Tão pura que abriu para João as portas da Holanda, via Felipe, um brasileiro de 36 anos que morava em Amsterdã. ‘Magro, alto, pele branca e cabelo bem cortado, discretamente sedutor, ele transparecia na forma e no conteúdo os seis anos de vida na Europa. Falava bem de qualquer assunto, demonstrando cultura vasta, especialmente musical’. Tinha uma namorada inglesa e um projeto de vida: juntar um milhão de dólares para, com ele, mudar de ramo. Alcançou-o.

Para a primeira remessa ao exterior, contou com a ajuda de Leôncio, um ‘violonista clássico de razoável sucesso profissional, 38 anos, alto, forte e pacato’, que se prontificou a viajar com um capote revestido de carbono e fibra de vidro, ‘para embaçar a fiscalização por raio x’, e impregnado de spray repelente, para toldar o olfato de cães da polícia de entorpecentes nos aeroportos. No forro, iam 3 quilos de cocaína, valendo 90 mil dólares que foram pagos na hora, em dinheiro vivo que João gastou quase todo na viagem de comemoração.

João gostava mais de cocaína que do dinheiro da cocaína. E esse desvio profissional, de certo modo, salvou-o, dando a seus advogados a chance de apresentá-lo à Justiça como um viciado que traficava por absoluta necessidade de garantir o próprio consumo. Pegou dois anos de internação no Manicômio Judiciário da Frei Caneca, condenado pela juíza Marilena Soares Reis Franco que, do alto de uma severidade inatacável, resolveu apostar tudo em sua regeneração. Em 1996, quando o condenado passava o primeiro Natal no xilindró, mandou-lhe um cartão em que citava, com letra que parecia desenhada em pauta de caligrafia, a escritor francesa Marguerite Yourcenar: ‘O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos’.

Saiu em 1998. Virou músico. E em 2001 começou a contar sua história, povoada por nomes falsos e personagens autênticos, a Guilherme Fiúza. Diga-se de passagem que eles são primos em primeiro grau. Logo, o jornalista chegou a João por um atalho quase privativo. Mas entrevistou dezenas de drogados, policiais, advogados e testemunhas para escrever o livro. Fez bom negócio. Demorando tanto a sair, ‘Meu nome não é Johnny’ está sendo lançado bem na hora em que o carioca precisa de novas perguntas sobre um problema estacionado em velhas respostas. Ele está cansado de saber que o tráfico de drogas piorou muito a favela. Mas não custa indagar se a favela não piora também o tráfico de drogas.’



Esther Hamburger

‘Guerra na favela transfigura telejornais’, copyright Folha de S. Paulo, 14/04/04

‘As favelas aparecem hoje como se estivessem no centro dos acontecimentos. Os tradicionais bairros populares ganharam uma hipervisibilidade perversa, que associa tráfico, violência e pobreza -com evidência documental.

No início dos anos 90, novelas pouco tratavam de casos escabrosos. Os telejornais, ainda na esteira dos anos de oficialismo forçado, se limitavam a coberturas institucionais.

Coube ao pioneiro ‘Aqui, Agora’ dar visibilidade, na maioria dos casos, indiscreta e preconceituosa aos bairros populares. Reportagens ao vivo e ‘in loco’ apresentavam casos policiais narrados dramaticamente.

O noticioso do SBT teve vida curta. O formato sobrevive na Bandeirantes e na Record, em versões centradas em figuras de apresentadores-personagens autoritários.

Mas quando a guerra civil irrompe no feriado santo, ela toma conta da pauta, fazendo os noticiários nacionais se assemelharem aos telejornais ‘realidade’.

Uma noite de Sexta-Feira da Paixão brindada com imagens de projéteis bélicos que, tal como as guerras no Iraque, produzem imagens semelhantes a espetáculos de fogos de artifício.

A guerra entre traficantes e entre eles e a polícia atinge moradores com balas perdidas, expulsa outros, que, de mala e cuia, abandonam suas casas em busca de um exílio seguro.

Há ainda os que supostamente, antes de sair à rua, sondam as condições de segurança pirateando mensagens de rádio amador. Ouvimos as ameaças do tráfico aos repórteres.

Acompanhamos imagens de perseguições com policiais subindo o morro de tocaia, armados até os dentes. Vemos civis se abrigarem inutilmente dentro de frágeis barracas de madeira fina.

Diante de tanto realismo, as imagens de moradores que denunciam a situação aparecem sugestivamente embaçadas. No meio do excesso de luzes, o anonimato se torna questão de vida ou morte.

As telas de TV então surpreendentemente se aproximam da pintura abstrata. O efeito estético da tela borrada de um telejornal ‘realidade’ é no mínimo perturbador.

É como se da hipervisibilidade passássemos a uma diluição tão discriminatória quanto a invisibilidade anterior. O desafio de representar a situação equivale ao desafio de enfrentar poderes paralelos que, apesar das aparências, não se originam na favela. Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP’



Carla Rocha e Cristiane de Cássia

‘Traficantes ameaçam atirar contra jornalistas que cobrem o confronto’, copyright O Globo, 13/04/04

‘Policiais que estavam ontem de manhã num dos principais acessos à Favela da Rocinha interceptaram, através de um radiotransmissor, um diálogo entre traficantes de drogas. Na conversa, eles ameaçavam atirar em direção aos jornalistas que trabalham no local, cobrindo a guerra na comunidade. Os bandidos acusavam os repórteres de estarem passando informações à polícia. Segue o diálogo interceptado:

– Vamos meter bala nos repórteres.

– E qual é, família?

– Eles estão cagüetando nós (sic), ‘cumpadi’. Sabe como é, meu irmão. Depois eu estou trepadão (bem armado), vou ficar sentadão. Negócio é meter bala neles mesmo.

A ameaça aos jornalistas deixou preocupadas as entidades profissionais. Em 2002, o jornalista Tim Lopes, da TV Globo, que fazia uma reportagem sobre bailes funk, foi executado por traficantes da favela Vila Cruzeiro, na Penha.

ABI pede reação mais enérgica do estado

Ontem, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Fernando Segismundo, defendeu uma reação mais enérgica do estado como forma de conter essa escalada de violência. Segundo ele, a imprensa é um alvo previsível porque denuncia e, de certa forma, ajuda a sociedade e o estado a combater o tráfico de drogas.

– Depois que o Tim Lopes foi assassinado, sinto que tudo é possível. Quebrou-se um tabu. A imprensa, por seu caráter investigativo, atrapalha os negócios do tráfico e alerta a sociedade para o problema. Temos que nos defender também porque os bandidos estão sendo desmascarados e vão reagir. Não me admira que nós também estejamos expostos aos caprichos e à vontade dos bandidos – disse Fernando Segismundo.

Alberto Jacob Filho, diretor do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro, alertou para a necessidade de os profissionais terem cautela num quadro crítico como o que estamos vivendo. Ele lembrou que os repórteres fotográficos correm risco ainda maior porque precisam acompanhar as operações policiais para fazer imagens.

Repórteres fotográficos são confundidos com bandidos

Alberto Jacob Filho disse que há casos em que os bandidos atiram por confundir os equipamentos fotográficos com armas.

– Muitas vezes, a máquina do fotógrafo é confundida com uma bazuca. Essa é a situação absurda que estamos vivendo. Nós jornalistas somos alvos fáceis. A cidade do Rio de Janeiro virou uma praça de guerra e, como nas guerras, precisamos ter cautela – afirmou o diretor do Sindicato dos Jornalistas.’