Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Anarquia nos processos de outorga e renovação

O primeiro balanço público após o vencimento das concessões das ‘cabeças’ das principais redes de TV de Brasil revelou um pouco mais da anarquia em que ocorrem os processos de outorga e renovação das licenças de rádio e TV no país. Em seminário realizado na terça (14) por organizações e movimentos sociais na cidade de São Paulo, o próprio representante da Rede Globo, Evandro Guimarães, reconheceu a inexistência de um contrato firmado entre a União e as concessionárias de radiodifusão.

O evento realizado na Câmara Municipal de São Paulo foi convocado por entidades da sociedade civil e pelos vereadores Beto Custódio, Carlos Neder e Soninha Francine. Foram convidados para o seminário os representantes das redes Globo, Record e Bandeirantes, cujas concessões na capital paulista venceram em 5 de outubro do ano passado, e do Ministério das Comunicações. Destes, apenas a Globo enviou seu representante. Também participou da mesa a deputada federal Luiza Erundina (PSB-SP). A parlamentar presidiu a subcomissão da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) que reuniu em um relatório propostas de mudanças nos critérios e procedimentos na outorga e renovação de concessões de rádio e TV. O seminário faz parte da programação da Semana Nacional pela Democratização da Comunicação.

Os depoimentos apresentados por sindicatos e movimentos sociais reforçaram a idéia de que a insuficiência de regras e a ausência de fiscalização abrem espaço para uma série de distorções no funcionamento das emissoras, que se distanciam claramente do interesse público. O único representante das TVs não quis responder aos comentários sobre o tratamento dispensado às minorias e movimentos populares, nem a perguntas sobre o respeito aos direitos das mulheres e das crianças e adolescentes. Mas se mostrou disposto a engrossar o coro dos descontentes com o que reconheceu como ‘anarquia’.

‘Não nos interessa a anarquia’

Segundo Evandro Guimarães, ‘aos concessionários não interessa a anarquia’. Entretanto, questionado se a Globo aceitaria assinar um contrato público em que se comprometesse com cotas para a produção independente, a inclusão de programas de debates no horário nobre, limites para a publicidade infantil e a criação de uma ouvidoria, Guimarães preferiu eximir-se de assumir tal compromisso ‘em nome de uma empresa enorme’ como a que representa.

Ficou claro, portanto, que o comentário de Guimarães estava endereçado a seus concorrentes. Durante o seminário, foram apresentados dados sobre irregularidades envolvendo Record e Bandeirantes em relação aos limites legais de concessões de um mesmo serviço para uma mesma entidade. O representante da Globo não citou diretamente estes casos, mas deixou claro, por exemplo, o descontentamento com a distribuição de autorizações de TVs educativas para fundações indevidamente classificadas como sem fim lucrativos.

Em dado momento, Guimarães chegou a afirmar que ‘a simples aplicação da lei já daria uma melhora substantiva’ no quadro de descontrole no setor de radiodifusão. Mas para Guimarães, o fato de inexistir um contrato formal entre a União e as concessionárias não seria um problema, já que o que ocorre é, em suas palavras, ‘a adesão automática das empresas ao que está no Decreto Presidencial 88.066 de 1983’. O decreto define as obrigações impostas às entidades que assumem emissoras de rádio e TV [veja o decreto aqui].

É importante notar que, apesar de a Globo Participações S.A. obedecer ao limite legal e ter em seu nome cinco concessões de geradoras de TV em estados diferentes, boa parte da rede de afiliadas da Globo estaria sujeita a enfrentar problemas com uma fiscalização mais rigorosa, seja em relação aos limites de propriedade, sem com outras irregularidades, como as concessões em nome de deputados e senadores. No caso das concessões de rádio, a empresa enfrentaria problemas diretamente. Em São Paulo, por exemplo, o grupo controla duas emissoras AM e uma FM.

Avaliação popular

Na avaliação feita pelos representantes dos movimentos sociais, o descontrole sobre as estruturas das empresas e grupos e os processos de concessão refletem-se diretamente na programação das TVs. A representante da Articulação Mulher & Mídia, Rachel Moreno, criticou duramente o tratamento dispensado ‘à metade da população do país’. Segundo ela, a mídia simplesmente ignora a revolução realizada pelas mulheres nas últimas décadas e segue promovendo valores e atitudes condizentes com uma relação entre gêneros que inferioriza a mulher.

Para Sônia Coelho, da Marcha Mundial das Mulheres, o fato de o controle das emissoras estar concentrado na mão de pouquíssimos grupos não só esconde a luta das mulheres, mas torna invisíveis toda e qualquer ação dos movimentos sociais. ‘Outro dia, assisti no horário nobre da TV 10 minutos de entrevista com o autor da música ´Créu´. Não quero desmerecer um tipo de música, mas por que o Fórum Social Mundial, que reúne 100 mil pessoas e mais de 100 países de lutadores do mundo todo, não tem um minuto, dois minutos, às vezes não tem nada?’, questionou Sônia. ‘As TVs perseguem as lideranças que defendem os direitos humanos. Agradecem a audiência, mas nunca pediram desculpas por nada’, reforça o coro Sebastião Nicomedes, do Movimento Nacional dos Moradores de Rua.

Episódios de desrespeito aos direitos humanos e, especialmente, das crianças e adolescentes também foram lembrados. Fátima Nassif, do Conselho Regional de Psicologia, afirmou que ‘causou muita estranheza que as TVs fizessem o possível e o impossível, por meio da Abert [Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV], para não ter que obedecer a classificação indicativa’. ‘A classificação é o mínimo essencial para o atendimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente na questão da comunicação’, disse.

Já Anaí Arantes, da Associação Paulista de Defensores Públicos, lembrou a responsabilidade das empresas de comunicação na manutenção de um modelo de Justiça e de política carcerária injusto e desumano. ‘As emissoras geram esta sensação de insegurança que leva o policial e o juiz a prender mais e, portanto, à superlotação do sistema’, comentou.

Os sindicatos dos radialistas e dos jornalistas lembraram que o descontrole sobre a gestão das concessões de rádio e TV reflete-se diretamente sobre as relações de trabalho dentro destas empresas. Para Edson Amaral, diretor do Sindicato dos Radialistas de São Paulo, é preciso que o pleno cumprimento das obrigações trabalhistas seja um critério fundamental para a renovação das outorgas. ‘Se for assim, no dia seguinte serão fechadas 3 mil emissoras em todo o país’, avaliou Amaral.

Seguem as audiências

O seminário em São Paulo foi convocado pela Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), Campanha pela Ética na TV, Rede Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura e Assembléia Popular. Ainda dentro da programação da Semana Nacional pela Democratização da Comunicação, outros dois encontros semelhantes serão realizados em Brasília e no Rio de Janeiro.

Os eventos locais servem como ensaio para as audiências públicas que deverão ser realizadas na Câmara dos Deputados, possivelmente em novembro. As comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática e de Legislação Participativa aprovaram a convocação de audiências para analisar os processos de renovação de emissoras de caráter nacional.

Como ressaltou a deputada Luiza Erundina, esta convocação – a primeira desde que a Constituição Federal instituiu o Congresso Nacional como avalizador dos processos de concessão de radiodifusão – só foi possível graças à pressão exercida pela sociedade civil. Segundo ela, é preciso reforçar esta pressão para que também o relatório apresentado pela subcomissão que ela presidiu, e que institui mudanças ainda mais relevantes na avaliação dos processos, seja aprovado.

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Do Observatório do Direito à Comunicação