A concepção instrumentalista da ciência veio se tornando hegemônica no cenário global ao longo do século XX. Essa transformação moral da pesquisa científica é ainda mais nociva naquelas regiões que ainda são economicamente subdesenvolvidas e dependentes dos grandes atores globais no cenário macroeconômico.
Notamos que no caso da América Latina, por exemplo, há uma importação da agenda internacional. Os países latino-americanos privilegiam políticas científicas sem conexão com suas identidades culturais, demandas locais e com a história de seu povo, beneficiando modelos internacionais de ciência e racionalidade.
O físico brasileiro José Leite Lopes, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, já advogava a ideia de que a reconfiguração da pesquisa científica global a partir da aproximação entre ciência e indústria ao longo do século XX teve como consequência o aumento da desigualdade socioeconômica e da disparidade técnica-científica entre os Estados mais ricos e os mais pobres. Os países latino-americanos, dentre os quais o Brasil, de acordo com Lopes, deveriam superar tal situação buscando vivificar sua vocação científica, e não somente reproduzir os modelos internacionais.
As análises de Leite Lopes, engendradas nos anos 70, permanecem atuais. Tanto que o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis publicou recentemente seu Manifesto da Ciência Tropical, documento em que pede, dentre outros pontos, mais autonomia universitária e a busca por uma vocação científica nacional.
De acordo com nosso entendimento, a compreensão da ciência na região, com destaque para o Brasil, apresenta problemas em três eixos que poderíamos classificar como (1) Prática, (2) Formação e (3) Comunicação. Com relação à (1) Prática, consideramos que os critérios de avaliação de pesquisadores e de aprovação de projetos precisam ser repensados. Williams P.M. Ferreira, meteorologista da Embrapa Café, publicou neste Observatório da Imprensa (Ano 19 – nº870) artigo em que põe em destaque o sistema produtivista da pesquisa brasileira, que privilegia a produção em quantidades “astronômicas” e não a colaboração entre os pares.
Neste sentido, a imagem produtivista da ciência como commodity propagada pela grande mídia brasileira é fruto da própria política científica nacional. A imprensa, portanto, ao invés de exercer seu papel crítico e sua função social, apenas reproduz essa imagem de ciência por meio dos grandes canais de comunicação.
Com relação à (2) Formação, compreendemos que a educação científica no Brasil é des-regionalizada, descontextualizada e fragmentada, de modo que o futuro cidadão e cientista dificilmente consegue compreender o valor cultural da ciência, sua História, aspectos e valores sociais, além de seus problemas filosóficos. Dificilmente se concebe o conhecimento científico como algo valioso por si mesmo, mas apenas como um instrumento para geração de tecnologia e inovação. Quanto à (3) Comunicação, pensamos que o papel da imprensa brasileira nas relações entre ciência e sociedade é fundamental. É necessário um amplo debate acerca do que esperamos do jornalismo científico e de como este pode contribuir para que a sociedade possa entender e se posicionar em relação a temas como comoditização da ciência e da universidade.
Imagem distorcida
O jornalismo científico praticado pela grande mídia brasileira reforça a disseminação para o grande público de uma imagem distorcida de ciência, oscilando entre a orientação instrumentalista, que concebe a ciência como commodity, e o sensacionalismo comercial, que divulga ideias científicas sem rigor e responsabilidade. Como resultado o grande público consolida seus preconceitos sobre a ciência.
A ciência divulgada pela grande mídia quase sempre é um empreendimento internacional com finalidades práticas, ligada a algum nicho de mercado bastante rentável, ou algo extravagante e espetacular, como naquela capa da Revista Época de 2012, intitulada O Universo, Deus e você, em que a descoberta da “partícula de Deus” (bóson de Higgs) pelo LHC, experimento do CERN, foi noticiada como algo capaz de alterar nossa compreensão do universo, da crença religiosa e mesmo da vida!
Assim, aos poucos, a imprensa vai contribuindo para que a sociedade confunda cada vez mais a ciência com suas aplicações práticas e a rentabilidade das mesmas, ou com alguma coisa parecida com ficção científica. O entendimento pela sociedade do valor cultural da ciência vai sendo, desta forma, empurrado para um futuro utópico.
São muitos os desafios em relação à comunicação social da ciência no Brasil, que passam pela falta de treinamento em ciência, Filosofia e História da Ciência dos jornalistas, e se estendem até as relações institucionais entre veículos de comunicação e atores globais com interesses corporativos na ciência.
Enquanto pesquisadores como André Luis de Oliverira Mendonça e Kenneth Rochel de Camargo Jr, do Instituto de Medicina Social da UERJ, vêm demonstrando em seus trabalhos recentes que a invasão e a tentativa de controle da mídia é uma das principais estratégias das indústrias para manipular a opinião pública sobre a ciência, a Folha de São Paulo promove esse ano o seu “3° Programa de Treinamento em Jornalismo de Ciência e Saúde”, patrocinado justamente por um dos maiores laboratórios farmacêuticos do mundo, a Pfizer.
No mínimo, ter um programa de treinamento em jornalismo científico patrocinado pela Pfizer, em que os participantes publicam matérias sobre medicina e ciências da saúde, é como ter sua página de política patrocinada por um partido político, ou seu caderno de esportes por um clube de futebol. Mesmo que, em tese, haja neutralidade entre patrocinado e patrocinador, não é o tipo de vínculo desejado quando o que se quer é garantir uma comunicação social de ciência que seja intelectualmente robusta e economicamente despojada.
Em suma, tal prática está na direção contrária de um jornalismo científico crítico, autônomo, desvinculado de quaisquer interesses externos aos critérios e ideais de uma imprensa livre. É preciso aprofundar o debate e questionarmos se desejamos que nosso jornalismo científico receba incentivos de mega corporações com interesses de mercado em ciência, tecnologia e inovação.
Em sua obra “Jornalismo Científico”, a jornalista Fabíola de Oliveira analisou a situação da Comunicação Social em ciência e tecnologia no Brasil, e identificou diversos entraves a uma boa divulgação da ciência pela imprensa nacional. Em primeiro lugar, não há em nossa sociedade uma cultura científica, e isso afeta tanto aos jornalistas que escrevem sobre ciência quanto aos leitores interessados. Em nosso entendimento, essa falta de uma cultura científica é um problema social de grandes proporções.
A questão transcende em muito o escopo do jornalismo, mas o atravessa e o prejudica. Tal problema encontra suas raízes na política científica nacional produtivista, que concebe a ciência como commodity e importa a agenda internacional. Também está ligado aos desafios da educação científica brasileira, ao enfraquecimento das universidades como espaços de produção do conhecimento, e à transformação das escolas em cursos pré-vestibular. É evidente que tamanha distorção não é gerada pela imprensa, mas também não se pode negar que seja reproduzida por esta, pelo tratamento que a grande mídia dispensa à ciência.
Fabíola problematiza ainda a falta de conhecimento e treinamento científico entre os jornalistas. Como consequência, as notícias tendem a ser ingênuas e facilmente instrumentalizadas pelos interesses do Governo ou do mercado, que no fundo, a nosso ver, se confundem e se reforçam. O pesquisador de jornalismo científico Wilson Costa Bueno lembra que na atualidade ciência e tecnologia são tratadas como mercadorias, e não como algo a serviço do bem público e da cultura. Logo, a notícia científica sempre contém interesses de grupos específicos, corporações, Estados.
O jornalista científico, portanto, deve possuir elevado senso crítico para não se tornar porta voz de interesses privados, o que, de acordo com Bueno, é comum nos veículos de comunicação. Em suma, para a formação de uma sociedade brasileira com cultura científica, de uma sociedade que pense a ciência e participe da política científica nacional, teremos que repensar os rumos desta política, da educação científica, da universidade e da escola, mas não poderemos nos esquecer de debater também a grande importância da divulgação de ciência pela imprensa nacional. Muito se discute se a ciência deve ou não ser notícia. Mas a pergunta realmente importante é “como” ela deve ser noticiada.
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Vinícius Carvalho da Silva é doutorando e Mestre em Filosofia da Ciência e Epistemologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.