Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As falhas da imprensa no pós-11 de Setembro

É bem difícil imaginar David Halberstam jogando conversa fora com Alberto Gonzáles, Paul Wolfowitz e mais um ou dois candidatos descartáveis a ‘Ídolo Norte-Americano’ durante o jantar anual da Associação de Correspondentes na Casa Branca. Antes de Bob Woodward e Carl Bernstein, havia Halberstam, então, no início da década de 1960, com menos de 30 anos, convocando os que ocupavam o poder a se explicarem sobre as mentiras a respeito de nosso ‘progresso’ no Vietnã. Foi o que ele fez, apesar de John Kennedy ter dito ao diretor do Times: ‘Estou doido para que você ponha o Halberstam na rua’. Ele o fazia apesar do ridículo público a que era exposto o bambambã da época (e apologista veemente da Guerra do Vietnã), o hoje esquecido colunista Joseph Alsop.

Foi o espírito de Alsop, e não de Halberstam, que pôde ser visto na transmissão ao vivo do jantar de correspondentes do último sábado [21/4], dois dias antes da morte de Halberstam num acidente de carro, na Califórnia. Aquela festa é uma cristalização das besteiras cometidas pela imprensa na era pós-11 de Setembro: ilustra a forma fácil pela qual uma Casa Branca, apoiada numa estrutura de propaganda, pode recrutar a mídia de Washington para seus espetáculos.

Foi precisamente isso que literalmente ocorreu no jantar anual, onde os jornalistas fazem o papel de elenco de apoio – embora isso seja metaforicamente verdadeiro para o ano todo. A imprensa credenciou dublês da ameaça pré-fabricada de iminentes ‘nuvens de cogumelos’ até ‘Salvando a Soldado Lynch’ e ‘Missão Cumprida’, cujo quarto aniversário ocorre na terça-feira [1/5]. Considerando todas as acusações, autoflagelações e reformas que se seguiram a essas tolices jornalísticas, está longe de ser claro por que a totalidade da profissão ainda não compreende por que perdeu a credibilidade do público.

Cômico e de mau gosto

Essa atitude de recusa era o principal tema do jantar dos correspondentes do ano passado, quando um artista convidado, Stephen Colbert, ‘caiu duro’ – forma pela qual o Washington Post resumiu o consenso geral. Para o espanto dos presentes, ocorreu uma coisa engraçada na manhã seguinte: o vídeo do desempenho de Colbert tornou-se uma sensação nacional. (Semana passada, ainda estava em segundo lugar entre os downloads feitos no iTunes.)

A sabedoria de Washington interpretou que o fracasso de Colbert foi por ele ter sido grosseiro com o presidente. Na realidade, seu pecado foi ter sido grosseiro com a corporação jornalística, que ele caricaturou como estenógrafos. Embora a maioria dos espectadores de Washington não tenha considerado a piada boa, cidadãos norte-americanos de outros lugares – que pagaram um preço alto pelo fracasso da imprensa em desafiar a propaganda da Casa Branca sobre o Iraque – riram até não poder mais.

Você poderia pensar que o ‘caso Colbert’ teria levado a um pouco mais de circunspecção, mas o jantar do último sábado foi outra humilhação. E não apenas por o artista convidado este ano – um veterano apolítico de cabarés (Rich Little) – ter sido totalmente desastroso. O mais constrangedor – e sintomático da cultura de delação – foi o pérfido papel da imprensa mostrando o presidente Bush como estrela da noite.

Em ocasiões semelhantes, é comum o presidente mostrar seu lado humorístico, mas este ano Bush fez um espetáculo grandioso de se abster, dizendo que a matança na Escola Politécnica da Universidade de Virgínia o impossibilitava de ser ‘engraçado’. Qualquer civil que estivesse assistindo, teria formulado a pergunta deixada no ar por essa afirmação: por que a matança no Iraque não o impediu de ser ‘engraçado’ em outros banquetes com jornalistas que vimos na TV?

Numa outra festa semelhante há três anos, a da Associação de Correspondentes de Rádio e Televisão, o presidente contribuiu com uma cena cômica, elaborada e de mau gosto, sobre sua busca fracassada por Saddam Hussein.

Morte e ficção

Mas a alegre moçada no salão de baile do último sábado não iria ver a inconsistência e desafio da hipocrisia de Bush; limitaram-se a bater palmas. Assim, agiram como extras cativos de uma propaganda de dublês, pondo sua credibilidade a serviço da exploração pseudopiedosa da tragédia da Politécnica de Virgínia para o auto-engrandecimento político do presidente na televisão nacional. No meio tempo, a guerra foi tão bem coberta quanto os caixões dos soldados.

Por coincidência, o jantar deste ano ocorreu apenas um pouco antes que uma audiência no Congresso preenchesse alguns dados numa história ainda incompleta de um outro espetáculo, mais flagrante, da Casa Branca: a jogada de Pat Tillman. Como se veria depois, o jantar dos correspondentes também teria um papel constrangedor nesse assunto.

O que a audiência no Congresso desvendou foi que a Casa Branca também sabia, quase com certeza, o que o exército sabia e ocultava: que a suposta morte da estrela de futebol norte-americano em combate, no Afeganistão – descrita com tanto realismo pelos releases do Pentágono e que lhe renderam uma medalha de prata – foi completamente fabricada e assim foi contada ao mundo (e aos parentes de Tillman), embora oficiais superiores já desconfiassem que ele tivesse sido morto por fogo amigo.

Aparentemente, a Casa Branca decidiu juntar-se ao Pentágono em manter aquela mentira para que fosse tirada vantagem, com fins publicitários, em dois programas de televisão – um no jantar dos correspondentes de 1º de maio de 2004 e outro, dois dias depois, num serviço fúnebre de homenagem a Tillman.

A cadeia de acontecimentos daquela semana do jantar foi espantosa. Tillman foi morto no dia 22 de abril de 2004. No dia seguinte, oficiais superiores já sabiam que ele não fora morto por fogo inimigo. Em 29 de abril, um comandante de operações especiais enviou um comunicado a John Abizaid, entre outros generais, sugerindo que a Casa Branca não fizesse perguntas específicas, em público, sobre como morrera Tillman. Simultaneamente, segundo uma mensagem eletrônica que apareceu na semana passada, um redator de discursos da Casa Branca entrou em contato com o Pentágono para conseguir informações sobre Tillman a serem usadas no jantar dos correspondentes.

Quando o presidente Bush falou naquele jantar de fim de semana, depois das piadas fez uma homenagem ao sacrifício de Tillman. Mas deixou vagas as circunstâncias em que ocorrera a morte de Tillman – sem dúvida porque a Casa Branca recebera a mensagem com o release da imprensa do Pentágono dizendo que a morte de Tillman em combate era ficção. No entanto, passaram-se ainda quatro semanas antes que a família de Pat Tillman fosse posta ao corrente da verdade.

Nunca mais

Para que se compreenda por que o governo queria manter a mentira, basta ler sobre outros acontecimentos ocorridos na semana anterior ao jantar dos correspondentes. No dia 28 de abril de 2004, a CBS transmitia as primeiras fotografias de Abu Ghraib; no dia 29 de abril, uma pesquisa na primeira página do New York Times dizia que a aprovação do presidente no que se referia à guerra estava despencando; no dia 30 de abril, Ted Koppel desafiou os esforço do governo em manter a guerra escondida, lendo, no programa Nightline, os nomes dos soldados mortos.

Tillman poderia ser útil no sentido de abafar todas essas notícias ruins e, de certa maneira, o foi. Os jornalistas de Washington que aplaudiam o presidente naquele jantar de correspondentes são os mesmos jornalistas que demoraram a reconhecer, naquele fim de semana, a importância de Abu Ghraib e, de acordo com uma nova pesquisa (When the Press Fails, University of Chicago Press), demoraram ainda mais para chamar aqueles crimes de tortura.

Num trabalho sobre o colapso do jornalismo antes da guerra, Bill Moyers disse que ‘a imprensa ainda tem que chegar a um acordo sobre seu papel ao permitir que Bush fosse à guerra sob falsos argumentos’. Isso não é universalmente verdadeiro; algumas empresas de comunicação reconheceram seus próprios erros e tentaram aprender com eles. Só que velhos hábitos custam a sumir: faz muito tempo que o escândalo de Gonzáles no Departamento de Justiça vem sendo evitado pela mídia de Washington, assim como ocorreu com Abu Ghraib e com o caso do vazamento da CIA.

Após o jantar de correspondentes da semana passada, o Times decidiu pôr fim à sua participação em tais eventos. Mas mesmo que o jantar desapareça por completo, continua sendo uma imagem anual televisiva de toda a síndrome. A atual Casa Branca, enfraquecida como está, ainda pode criar histórias tão falsas como ‘Missão Cumprida’ e se dar bem.

‘Ponto baixo’

Para pegar um exemplo doloroso: grande parte da imprensa ainda acredita que o Iraque tem um governo atuante que pode superar os obstáculos políticos (lei do petróleo, reforma política sem o partido Ba’ath etc.) que facilitariam a retirada norte-americana. Na realidade, o ‘governo’ Maliki não pode superar quaisquer obstáculos, mesmo que isso lhe fosse imposto, porque esse governo existe apenas como um porta-voz fictício da Casa Branca.

Como disse o general Barry McCaffrey, na semana passada, aquele governo não controla por completo uma única província. Seu Parlamento, que agora se aproxima do recesso, não aprova qualquer legislação importante há vários meses. O único avanço recente do Iraque, em termos de democracia, foi a proibição de que sejam soltos civis feridos – que poderiam desafiar o alegre discurso da Casa Branca sobre ‘progresso’ no Iraque.

Triste é o destino de nosso país, em que David Halberstam se vai e muitos Joe Alsops ainda têm influência. Veja-se o atual decano dos jornalistas de Washington, David Broder, numa campanha para ridicularizar Harry Reid por dizer o óbvio – que ‘esta guerra está perdida’ (e ela está, do ponto de vista militar, a menos que lá fiquemos eternamente e mandando muito mais tropas). Em fevereiro, Broder produziu uma outra jóia da sabedoria convencional sugerindo que ‘justamente no momento em que a Câmara dos Representantes repudia sua política no Iraque, o presidente Bush está de prontidão para seu retorno político’.

Algumas pessoas podem achar que Stephen Colbert ofereceu a mesma previsão em seu monólogo no jantar dos correspondentes do ano passado. ‘Não acho que este seja um ponto baixo na Presidência’, disse ele. ‘Acho que só falta um pouquinho para que retorne.’ Mas o falso adivinho, ao contrário do verdadeiro, admitiu que era uma piada.

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Colunista do New York Times