Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As leis, essa chatice

Terça-feira, dia 17 de novembro. Abertura do Festival de Cinema de Brasília, que, este ano, aconteceu no Teatro Nacional. Não fui a Brasília para ver avant-première de Lula, o filho do Brasil. Não fui, mas conheço gente que foi. Parece que a coisa não primou pela pontualidade, nem pela organização. Meus conhecidos me contaram que a sessão, marcada para 20h30, atrasou mais de uma hora. Era gente sentada no chão dos corredores e em cadeiras postas ali de última hora. Ministros, secretários de Estado, parlamentares e funcionários públicos de muitas patentes abarrotavam a sala. Calculou-se em 1.400 o número de espectadores.


Antes do início, o produtor do filme, Luiz Carlos Barreto, foi ao microfone e reclamou da desordem. Alertou que não havia bombeiros a postos e que a superlotação contrariava qualquer limite de segurança. ‘E se estourar uma lâmpada?’ Tradução: a pré-estréia da cinebiografia do presidente da República, que contou com a primeira-dama na platéia, transcorreu em total desobediência às normas que existem para prevenir acidentes nas casas de espetáculo. E se uma luminária explodisse e o auditório entrasse em pânico? Não é bom nem pensar. E tudo isso num lugar abarrotado de autoridades, quero dizer, com autoridades saindo pelo ladrão, ou, melhor, com autoridades não saindo pelo ladrão e nem por lugar nenhum. Autoridades que não arredaram pé. Mais ainda: pelo que disseram minhas testemunhas oculares e auriculares, nenhuma autoridade protestou. É como se não fosse com elas.


Dizer que as autoridades não arredaram pé não é uma figura de linguagem. É fato. Depois do discurso de Barretão, o filho dele, Fábio Barreto, diretor do longa – longa mesmo, com 2 horas de duração – tomou a palavra. Disse que estava ali acompanhado de trinta profissionais, entre atores e técnicos que atuaram na produção, e que a organização do Festival não lhes reservara lugar. Pediu, então, que a primeira fileira fosse desocupada. Mandou a fila do gargarejo se retirar. Em vão. Consta que foi como se falasse para as cortinas. O pessoal olhou para cima, fez cara de paisagem – fazer cara de paisagem é um esporte muito apreciado em Brasília – e ninguém saiu de onde estava. Só depois, vendo as estrelas que circulavam em busca de um assento, é que alguns cederam seus postos – esporte que ninguém aprecia em Brasília.


Mas o que mais interessa é aquilo que relatei no primeiro parágrafo: para as autoridades em Brasília, pelo menos para aquelas que foram ver a biografia edificante do ‘filho do Brasil’, as normas de segurança que estipulam padrões severos para as casas de espetáculo não valem para as casas de espetáculo em que elas, autoridades, estão bem (ou mal) acomodadas. Aos olhos delas, a lei é essa chatice que vale para os outros, não para as autoridades, como elas.


Vai um contrabando aí, doutor?


Não vi nenhum jornal ou revista criticando o pequeno disparate. Falaram do filme, de ser bom, ser ruim, ser melodramático, ser eleitoreiro, caro, etc e mais etc, mas não vi registros sobre isso: como é que acontece, na capital federal, uma sessão de cinema – apinhada da mais alta elite da administração pública – que desobedece frontalmente os padrões de segurança? Quero dizer: que os desobedece ao menos na opinião do produtor do filme, opinião expressa no microfone, na frente de todo mundo? Como pode a avant-première do filme que narra a vida do presidente da República não respeitar a lei?


Tudo bem que sou mal-informado. Tudo bem que não leio tudo, nem quase tudo, nem mesmo quase nada do que há para ler. Pode ser que algum comentário tenha sido publicado e eu não tenha visto. Mas andei procurando – e não vi. Se falaram, não houve destaque. É como se fosse um pormenor, uma bobagem, uma filigrana desimportante. Não vi entrevistas com as autoridades presentes sobre isso, especificamente: não sobre o filme. Não vi uma apuração esclarecendo a quem caberia providenciar a retirada do excesso de público. É como se nada disso fosse notícia.


Concedo. Talvez haja uma explicação para isso, para esse silêncio. O acontecido no Teatro Nacional não é uma exceção, mas a própria regra. Brasília é assim mesmo e o que tivemos ali foi ‘mais do mesmo’. Portanto, sendo ‘mais do mesmo’, não é notícia.


Morei em Brasília por uns quatro anos e meio. Durante quatro anos, três meses, vinte dias e duas horas ocupei um cargo público: presidente da Radiobrás. Ao menos em termos, eu era uma autoridade. Eu me espantava quando ia a restaurantes, para almoços de negócios (lícitos), e apareciam os vendedores de filmes piratas. Depois, os vendedores de lápis com ventiladorzinhos na ponta. E lanternas. E bonequinhos de pilha. E óculos escuros com lentes vastas e logotipos laterais mais vastos ainda. Às vezes eu puxava um dos comerciantes pelo braço, quase que num tom de piada: ‘Escuta aqui, você sabe que eu sou uma autoridade?’. Eles olhavam para mim como se eu fosse um idiota.


Uma tarde, por volta das duas e meia, três da tarde, eu voltava para o batente e dei de cara com um sujeito que oferecia dezenas de DVDs piratas, numa mesinha que ele montara bem na porta do prédio principal da Radiobrás.


Bugigangas baratas, legalidade zero


Eu não costumava determinar pautas, reportagens, nem dar orientações para a cobertura do dia. Achava – e continuo achando – inadequado. Naquela empresa, eu desempenhava uma função administrativa: eu era presidente, encarregado da gestão executiva, não era um repórter ou um editor; nem mesmo diretor editorial. As redações tinham sua autonomia necessária, e se baseavam em planos editoriais com parâmetros bem precisos. A definição da pauta e a orientação das reportagens era uma incumbência das chefias jornalísticas – não dos executivos da empresa, como eu. É assim que penso, até hoje. Ou a gente age desse modo, ou as brechas para que interesses políticos (do governo) interfiram na cobertura (de uma empresa pública de comunicação) vão se tornando mais e mais porosas. Por isso, como regra, eu não dava palpites na rotina. É assim que se fortalece a autoridade e a independência dos jornalistas. Claro que eu tinha participação na definição dos planos editoriais e também das críticas periódicas, quando os erros eram apontados, mas só isso.


Mesmo assim, mesmo com todas essas cautelas, naquela tarde, porém, abri uma exceção. Pedi que o chefe da Agência Brasil mandasse um fotógrafo clicar o vendedor de pirataria na porta da nossa ‘repartição’ e sugeri, depois, que pautassem algumas reportagens sobre o mercado de bens contrabandeados ou pirateados na capital federal. A redação da Agência topou e o resultado foi medianamente satisfatório. Apenas medianamente. Flagramos boas histórias de vida, mas não identificamos o nexo dos pequenos vendedores com o crime organizado e com os políticos. Esses nexos existem. O problema é encontrá-los. Nós, na Agência Brasil, não os encontramos.


Devo ter sido mesmo um idiota. Tanto que, até o fim da minha temporada brasiliense, continuei convivendo com esse mercado agressivo e capilarizado, que vivia me oferecendo bugigangas de preço baixo e legalidade zero.


Por que o jornalismo não se ocupa disso, obstinadamente?


A falta de ética dando nome a obras públicas


O ex-prefeito Celso Pitta morreu esses dias. Tinha 63 anos de idade e um câncer no intestino. Cada um se lembra de Pitta como quer ou como pode. Para mim, ele é a cara do ‘Fura-fila’ – um projeto de transporte público que ele apresentou na campanha eleitoral para a prefeitura paulistana, em 1996. A justificativa do ‘Fura-fila’ era encurtar o tempo consumido num determinado percurso. Assim, ele ‘furaria a fila’ e o usuário ‘levaria vantagem’ sobre seus concidadãos, os que tivessem que esperar na fila. Apoiar o fura-fila era como sonhar com dar um chapéu nos trouxas. Foi assim que muita gente votou no Celso Pitta e foi assim que Pitta ganhou a eleição.


Em suma: furar fila, para Pitta e seus eleitores, era um valor. Era uma coisa boa de se fazer. Ficar na fila era coisa de otário. Outros programas sociais, se estendêssemos a mesma filosofia a outras áreas, poderiam ser: ‘cola esperta’, para a educação; ‘bandido morto’, na segurança; ‘dar barato’, para distribuição de remédios subsidiados. O que é que explica que uma prática tão nefasta para a urbanidade como o hábito de furar fila tenha se erguido ao patamar de batizar um programa de transporte público?


Até hoje, nessas campanhas políticas de TV, às vezes alguém fala no fura-fila – que foi construído, em parte, mudou de nome, mais de uma vez, mas nunca perdeu sua majestade alicerçada na velha e boa contravenção. Outra vez, a imprensa não se ocupou do aspecto ético da história. Acho que os editores ponderam: ‘Mas que importância tem isso?’ Ou: ‘Não sejamos moralistas’. Ou: ‘Isso é coisa de UDN’.


Vai daí que o prefeito convidava os munícipes a ‘furar fila’ e a imprensa, como as autoridades no Teatro Nacional superlotado em Brasília, finge que não é com ela. Vai daí que as autoridades circulam pelos restaurantes da capital federal, infestados de contrabandistas à luz do dia, e ninguém noticia nem comenta. Vai daí que as leis de segurança das casas de espetáculo foram revogadas na prática pelas autoridades presentes à pré-estréia de Lula, o filho do Brasil e, outra vez, isso não é notícia.


Na boa, sem moralismo, sem chatice: quando a imprensa começa a tratar como naturais, banais, esses sintomas de cinismo na relação entre a sociedade e suas leis, ela mesma, imprensa, vai perdendo um pouco da capacidade de identificar o que é notícia. Como é que essas coisas acontecem? E como é que fica tudo por isso mesmo? Isso não desperta a curiosidade de ninguém?

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Jornalista, professor da ECA-USP