Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As lições de uma tragédia

Na terceira semana após o sismo que afetou o Sul/Sudoeste da Ásia estendendo-se à costa oriental da África, a imprensa mundial ainda se ocupa das ondas gigantes que já produziram um número traumatizante de mortos, mesmo para estes tempos aparentemente insensíveis em que vivemos.

Na edição de domingo (9/1) a Folha de S. Paulo trouxe um caderno especial de oito páginas sobre a catástrofe que soma mais de 150 mil mortos, sugerindo uma desoladora ingenuidade para as primeiras horas do 26 de dezembro, quando o número de vítimas ainda não havia atingido cinco mil.

O especial da Folha, a capa semanal de Veja e praticamente toda a mídia do planeta, passando por revistas científicas como Science (a contrapartida da prestigiosa Nature nos Estados Unidos), sugerem uma pausa na espetacularização da realidade a que estamos submetidos, fazendo com que a vida se pareça a uma seqüência de comerciais na TV. Tudo muito rápido, efêmero e completamente esvaziado de sentido.

Há alguma reflexão, embora nada assegure sua continuidade.

A mídia tem boa parte da responsabilidade por essa alienação de estarmos no mundo desamparados de uma razão, qualquer que seja ela, por ter trocado a idéia de processo por uma seqüência pontualizada de eventos aleatórios.

Ironia refinada

Mas a mídia é um espelho da realidade histórica, na verdade, a crista da onda num corte vertical do oceano segundo representação de alguns historiadores, em que a ‘história total’, como Fernand Braudel sugeriu em seu Mediterrâneo, é representada pelas águas profundas que roçam os solos marinhos.

Há uma curiosa analogia entre águas oceânicas nos maremotos e na história, embora nada autorize uma comparação mais consistente. Pode ser mera analogia, recurso imagístico capaz apenas de sugerir uma inteligibilidade possível.

Ainda assim, de um ponto de vista geológico, o sismo da Ásia – que não foi o primeiro nem será o último a sacudir o corpo da Terra no espaço – está intimamente ligado à história do planeta. À maneira como nosso mundo se formou em órbita do Sol por um processo que os astrônomos chamam de acreção, a justaposição por efeito gravitacional, de porções de uma nebulosa que sobrou da morte anterior de velhas estrelas.

Neste sentido, Einstein tem razão tanto científica quanto poética quando disse com sua ironia refinada que ‘Deus não joga dados’. O que significa dizer que há uma historicidade para cada acontecimento, embora, em última instância, possamos não ter acesso a ela.

Fundo religioso

Quanto à posição da mídia enquanto veículo do efêmero, da pontualização e da espetacularização da realidade, Ortega y Gasset – comprimido entre o jornalismo e a filosofia – alertou suficientemente sobre os riscos da massificação da cultura e a abertura de espaço para a forma mais profunda de terrorismo: aquela em que perdemos a capacidade de distinguir o relevante do completamente irrelevante.

Certamente por influência da mídia, o homem massificado – ainda para tomar emprestada a imagem de Gasset – espera que a ciência seja capaz de resolver tudo, como se tivesse origem supra-humana. E aqui novamente é preciso retornar a Einstein para quem a ciência é uma coisa maravilhosa, mas não passa de uma caixa de brinquedos frente à complexidade do Universo.

Leitores irados, do começo a estas alturas dos acontecimentos, cobram, com veemência, um alarme provável que poderia (na avaliação deles) ter soado para evitar a destruição do que até recentemente foi um paraíso (um paraíso artificial, de consumo da Natureza).

Um ambientalismo de fundo religioso vende uma visão bem comportada da Natureza, na qual nenhuma catástrofe parece possível. E, se ocorre, a culpa é dos humanos e da hierarquia de pecados que eles carregam desde que nasceram, aumentada das que constroem ao longo da vida.

Sem controle

A mídia amplifica essa visão especialmente em seus suplementos de turismo e os governos nacionais, com os olhos voltados exclusivamente para o mercado, simplesmente manipulam os riscos, na linha de raciocínio levantada por Alberto Dines na edição anterior deste Observatório [remissão abaixo].

A verdade é que um aviso prévio, com intervalo de poucas horas, não evitaria os efeitos do maremoto por várias razões. A principal delas é que um sistema de detecção não existe no Oceano Índico. Não existe tanto por razões de mercado turístico quanto escala de prioridade na realidade subdesenvolvida.

E, se existisse, deveria incluir um processo prévio de sensibilização da sociedade. Esse é o principal desafio das sociedades subdesenvolvidas: substituir um certo substrato mental e torná-lo capaz de estimular iniciativas de ação. Mas com isso o próprio subdesenvolvimento estaria superado e os sistemas anacrônicos de poder que o construiu e se alimenta dele estaria eliminado.

A garotinha inglesa de 10 anos que aprendeu rudimentos de um maremoto na escola, avisou a mãe e com isso evitou a morte de pelo menos 100 pessoas é uma evidência disso. Mas mesmo que tudo estivesse disponível, ainda assim nem tudo estaria sob controle.

Verdade óbvia

Leitores mais apressados podem ler numa frase como esta sugestão de que tudo deveria continuar como está. É uma reação típica da época de reações apressadas a que estamos submetidos. Pensar a maiores profundidades provoca reações de enorme irritação.

A esses leitores sumários certamente se poderia dizer que Sófocles não escreveu seu Édipo Rei por acaso, como sinônimo de que os gregos tivessem buscado na tragédia uma explicação imediata para os acontecimentos.

As tragédias vivem nas águas profundas, integram a história total e, com uma periodicidade fora do alcance humano, vêm à superfície para representar todo o horror de existir. Essa parece ser a essência da tragédia.

O jornalismo deve, por sua própria razão de existir, apontar omissões, falcatruas, abusos de poder e toda uma sorte de patifarias que alimentará pautas até o fim do Universo. Ou até que o homem se transforme numa criatura que ainda desconhecemos. Mas um certo jornalismo, capaz de mergulhar a maiores profundidades, deve sugerir a idéia de que a tragédia está fora do alcance de nossas mãos e se manifestará enquanto o homem viver.

Outros leitores, cínicos, que não chegam a fazer justiça a Diógenes, argumentam que a tragédia das ondas gigantes na Ásia só tem a repercussão que está tendo pela morte de turistas ocidentais. É uma verdade óbvia, ainda sem forças para alterar a realidade. Apenas confirma a dramaticidade de uma consciência limitada, em que o valor da vida varia segundo as coordenadas geográficas. E que vale para brasileiros. Onde estão pelo menos meia centena de brasileiros de quem não se tem notícia?

Nada de novo

Jornalistas têm apego a um conceito de realidade que, paradoxalmente, não é real. Uma surrada expressão nas redações é ‘não diz a que veio’, como referência a um assunto que não tem um gancho evidente. Como se os fatos gravitassem em torno dos interesses das redações o que, felizmente, é de um impossibilidade completa.

Mas o jornalismo deu sua contribuição para deflagrar um sistema internacional de ajuda mínima, com denúncias de brutalidades que vão de violação sexual de crianças órfãs à ação de piratas que dificultam o socorro de emergência, incluindo a sovinice de governos que, como tratantes quaisquer, não cumprem em privado o que prometeram em público.

Prêmio Nobel de Literatura em 2001, o escritor inglês V.S. Naipaul, em artigo para o la Reppublica, reproduzido pela Folha, diz não acreditar que o movimento de solidariedade configure o ‘início de uma nova era de fraternidade’.

Certamente que não. Seria, de alguma maneira, o fim da tragédia. Embora Gaia, a Terra, deslocada de seu eixo em algo como 2,5 centímetros, continue reverberando no espaço essa última contração de destruição.

Um príncipe nórdico diria que não há nada de novo sob o Sol, embora tudo seja sempre novo.

O puro horror

Outro Nobel de Literatura, o húngaro Imre Kertész, em palestra (‘Uma sombra longa, escura’) de 1991, reunida a outros escritos em A língua exilada, diz que ‘enquanto o homem sonhar – coisas boas ou ruins –, enquanto o homem tiver histórias sobre as origens, lendas universais, mitos, haverá literatura, apesar do que e do quanto falarem de sua crise. A verdadeira crise é o completo esquecimento, a noite sem sonhos: a isso, porém, ainda não chegamos’.

Literatura, aqui, é um sinônimo de esperança.

Kertsz fala de um outro sismo de destruição, produzido pelas ações humanas, não pelas forças da Natureza: Auschwitz e de todos os seus congêneres, literais e alegóricos e a idéia de que, depois deles, não se pode mais escrever versos.

A verdade, no entanto, é que mais que nunca os versos são necessários. Eles são uma ‘promessa de felicidade’, como dizia Stendhal.

O que não exclui a tragédia. O puro horror de existir.