Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As religiões e a vida política

O Brasil é a maior nação católica do mundo. Ainda é? Não sabemos. Não sabemos e a imprensa não informa, não analisa, não interpreta, não presta serviços pertinentes no tema e domínios conexos, a não ser muito raramente.

Se não fossem as ações providenciais das comunidades eclesiais de base provavelmente Lula não teria chegado à presidência da República. Chegou, um de seus principais assessores é um frade dominicano, que combina sua prática cotidiana na ordem dos dominicanos com uma dedicação comovente às letras. Com efeito, Frei Betto é um de nossos mais representativos escritores.

Aliás, no Le Monde diplomatique deste agosto, dois bons escritores de língua portuguesa estão presentes. Sob a rubrica ‘Le Brésil de ‘Lula’: Crimes et rédemption’, Ramón Chao comenta o mais recente romance de Frei Betto, Hotel Brasil (vertido para o francês por Richard Roux, Edições L’Aube, Paris, 220 páginas 20 euros). Conclui o comentarista:

‘Frei Betto nous propose une sorte de passionant kaléidoscope, féroce et tendre, baroque et authentique, festif et inquiétant, du Brésil contemporaine’.

E o Prêmio Nobel José Saramago nos dá uma aula, não de democracia, mas sobre a democracia, num artigo controverso, de página inteira, comentando que precisamos repensar o menos pior de todos os regimes em ‘Que reste-t-il de la démocratie?’ A conclusão do Prêmio Nobel:

‘Si nous ne trouvons pas un moyen de la réinventer, on ne perdra pas seulement la démocratie, mais l’espoir de voir un jour de droits humains respectés sur cette planète. Ce serait alors l’échec le plus retentissant de notre temps, le signal d’ une trahison qui marquerait à jamais l’humanité’.

Tema explosivo

Na revista Primeira Leitura (nº 30, agosto de 2004), Caio Blinder, em ‘A confissão de Kerry’, traz à lembrança dos leitores que o candidato democrata é, desde John Kennedy, o primeiro católico com reais chances de chegar à presidência dos Estados Unidos. Ilustra sua matéria com um belo gráfico do peso das religiões nas eleições americanas.

Segundo o US Census de 2002 (dados, portanto, recentes), 53% dos americanos são protestantes; 25% são católicos; 9% declaram-se sem religião e 8% entram em ‘outros’ (o que representará a rubrica?); 2% são judeus, 2% são mórmons, e os ortodoxos representam apenas 1%. Quer dizer, o coroinha tem sérios problemas pela frente. Contra John Kerry ergue-se uma barreira integrada por líderes fundamentalistas protestantes e bispos conservadores.

Como se pode ver, nos EUA, como no Brasil, as religiões têm peso considerável. E o que faz a imprensa brasileira? Limita-se a dizer que o candidato tal visitou uma sinagoga, o outro uma mesquita, um outro a Igreja Universal, e mais um foi pedir as bênçãos do cardeal mais poderoso do mundo, o de São Paulo! Sem contar que, no Brasil, particularmente nestas eleições, várias igrejas estão misturando interesses religiosos num caldo preocupante, que traz, não a religião para a política apenas, mas para dentro da imprensa.

É dever da imprensa desenredar esses fios, aprofundar os temas e oferecer ao leitor um apanhado das diversas situações. Com efeito, ninguém votará em nome de Deus. A democracia é leiga. Mas não se discute que as instâncias religiosas exercem papel decisivo à hora das eleições. Principalmente em nações como o Brasil, infelizmente dependendo ainda do que é dito, mais do que é escrito.

Mas como emissoras de rádio e televisão pautam-se por jornais e revistas no mais das vezes, que os leitores sejam informados do que se passa. É o mínimo que a imprensa poderá fazer e é seu dever: informar ao distinto público o que, como, quando, onde, quem etc. está fazendo o quê com o tema explosivo das religiões nas campanhas.

Forças do atraso

Prestará um serviço indispensável à democracia, ela que é o quarto poder. Quarto? Também sobre isso há controvérsia. Atravessamos tempos em que a imprensa está constantemente mudando de lugar, de quarta para outra posição nos poderes que mais influenciam a vida brasileira, tendo acumulado as funções de Judiciário várias vezes. E não foram poucos os momentos recentes da vida brasileira em que a imprensa foi o primeiro poder. Seus méritos para a retomada e consolidação da democracia são inegáveis, mas dos erros que cometeu, nem ao bispo foi permitido que nos queixássemos!

Evidentemente, o tema é complexo e agora se desdobra em direção a outras paragens: jericos cheios de poder, incrustados no governo federal, estão maquinando um projeto de controle fascista da imprensa. Estão dizendo que é estalinista. É como comparar a praga e a peste para verificar qual a pior, mas o fascismo, mais do que proibir, obriga a pensar, falar e escrever a favor. Vem chumbo grosso por aí. E é preciso lutar! Como escreveu Carlos Drummond de Andrade, ‘lutar com palavras/ é a luta mais vã/ entanto lutamos/ mal rompe a manhã’.

De que outras armas dispomos? Ora, vêm aí as eleições. Que sejam identificadas as forças do atraso para que sejam derrotadas de onde elas emergiram: das urnas! Os jornalistas que organizam e participam de debates bem que poderiam incluir uma exigência aos candidatos: que eles se pronunciem sobre o papel da imprensa. E do que pretendem com ela ao chegar ao poder.