Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As instituições

 

Duas grandes publicações especializadas na cobertura da atividade jornalística nos Estados Unidos são a tradicional Columbia Journalism Review (CJR), fundada em 1961, e uma revista mais recente, a Nieman Journalism Lab, instalada desde 2008 no Nieman Center, parte da Harvard University. Ambas se erguem sobre a paisagem normalmente árida de bastidores de redações e críticas à imprensa. Ao lê-las, no entanto, fica a dúvida se o setor que cobrem realmente é o mesmo.

Ao narrar em suas páginas o triste declínio de uma leva de publicações e instituições tradicionais da imprensa norte-americana (incluindo jornais como Philadelphia Inquirer e San Jose Mercury News), a CJR volta e meia soa como um tributo a um mundo extinto. Já a Nieman Journalism Lab é pródiga em notícias sobre as últimas novidades no ofício jornalístico e novas organizações de mídia, muitas delas com semanas de vida (ou que ainda nem saíram do papel). Embora a Nieman Journalism Lab traga sua cota de fatalismo e a CJR prospecte um pouco o futuro, o contraste é claríssimo para qualquer pessoa interessada em ficar a par dos últimos desdobramentos no meio jornalístico.

Quando se trata de instituições de imprensa, o problema – e razão para que a discussão em geral seja tão polarizada – é que tanto a CJR quanto a Nieman Journalism Lab estão contando uma história real. O momento atual é tanto de desgraça como de ressurgimento para instituições que abrigam o trabalho jornalístico.

A história que contamos a nós mesmos sobre instituições jornalísticas é, em suma, mais de uma. Aliás, são três histórias, todas transcorrendo mais ou menos simultaneamente. Há uma história de declínio e colapso institucional, uma história de renascimento institucional e, talvez a mais importante para nossos propósitos, uma história de adaptação institucional. Onde termina a morte e começa o renascimento, qual o grau de responsabilidade de novas instituições pelo declínio das velhas, se há mais a ganhar ou a perder e como fazer o pêndulo oscilar para o “ganho” são argumentos que se confundem, já que não estamos assistindo ao desenrolar de uma só história. Estamos assistindo a três.

 

>> Uma história de declínio e colapso institucional – Nos estados norte-americanos de Michigan, Louisiana e Alabama, a Advance Publications está abandonando a publicação diária de jornais, reduzindo o número de dias da semana em que imprime um exemplar em papel. Em Chicago, Boston e San Francisco, organizações jornalísticas se debatem com questões éticas e logísticas trazidas pela crescente terceirização da cobertura local para “fazendas de conteúdo” (e para as Filipinas). O respeitado Philadelphia Inquirer está no quinto dono em seis anos. Até o New York Times, embora revigorado pelo modelo de assinatura digital, trava uma batalha com sindicatos para tentar congelar aposentadorias, enxugar planos de saúde e aumentar a carga horária da redação. E esses são só os destaques da semana. Dois anos atrás, discutíamos o fechamento de jornais em Denver e Seattle. E daqui a dois anos? Como observamos na introdução, ainda que a indústria jornalística se estabilize, dificilmente voltará a registrar a mesma rentabilidade de antes de 2005.

 

>> Uma história de renascimento institucional – A história do declínio não é, contudo, a única. Embora projetos como Talking Points Memo eProPublica costumem figurar em tratados sobre o futuro do jornalismo como símbolo do ressurgimento institucional que ocorre paralelamente no setor, pelos padrões do universo digital esses sites já seriam veteranos. Pode levar anos para que um fato como a decisão da Suprema Corte norte-americana sobre a reforma da saúde nos Estados Unidos traga maior visibilidade a um site como o SCOTUSblog. O mesmo vale para a cobertura das eleições presidenciais norte-americanas por Nate Silver no blog FiveThirtyEight.com, hoje parte do New York Times. Um rápido exame de instituições consideradas para um prêmio da Knight Foundation (o Knight News Challenge) em junho de 2012 revela uma meia dúzia de projetos – Behavio, Signalnoi.se, Recovers.org, Tor Project, alguns novos, outros nem tanto – dedicados a levar informações de cunho jornalístico à sociedade. E essas são só as organizações citadas em uma rodada da disputa; além delas, havia muitas outras.

O atual consenso sobre essas novas instituições – opinião expressa em uma série de estudos, incluindo um relatório de 2011 da Federal Communications Commission (FCC) intitulado “The Information Needs of Communities”, e num estudo sobre o mercado em Baltimore feito pelo Project for Excellence in Journalism – é que nenhuma delas irá substituir a cobertura jornalística hoje feita por veículos de comunicação tradicionais (e em declínio). No que tange ao volume de conteúdo produzido, não discordamos. Achamos, contudo, que o nó é mais embaixo; mais adiante, abordaremos alguns dos motivos para tal.

 

>> Uma história de adaptação institucional – O foco no declínio e no ressurgimento também oculta uma terceira história – história que, no final, pode ser a mais importante de todas. A pergunta é como um novo ator no meio jornalístico chega ao ponto no qual se pode dizer que atingiu estabilidade organizacional? Como passa de um precário projeto a membro legítimo da comunidade jornalística? Como veremos a seguir, uma das marcas de uma instituição é poder enfrentar idas e vindas de pessoal sem o risco de extinção organizacional. Como isso ocorre, e como uma organização jornalística emergente vira uma instituição, é uma das questões centrais diante do jornalismo nessa transição para a era digital.

É preciso indagar, ainda, como organizações jornalísticas tradicionais estão reformulando processos para se adaptar ao novo cenário da informação. Um estudo sobre o New York Times a ser publicado em breve por Nikki Usher, professor assistente da George Washington University, provavelmente ajudará muito a esclarecer a questão, embora também devamos começar a sintetizar saídas adotadas por organizações criativas para se adaptar à era digital. Estudiosos precisam partir de uma constatação sociológica básica – o fato de que a maioria das instituições jornalísticas busca assimilar a ruptura com o mínimo possível de mudanças em processos operacionais e autoimagem ideológica – e começar a indagar como instituições criativas contornam essas limitações sistêmicas, autoimpostas.

Ao pensar em instituições jornalísticas, estamos contando a nós mesmos uma série de histórias ao mesmo tempo. Embora as histórias de declínio e renascimento formem o grosso da discussão sobre o “futuro do jornalismo”, há uma relativa deficiência quando o assunto é entender a terceira história, a da adaptação institucional. Embora o efeito da internet sobre o ecossistema do jornalismo norte-americano volta e meia seja pintado como anti-institucional, destinado basicamente a reduzir ou até destruir a viabilidade de instituições, a realidade é mais complexa. Embora tenha de fato abalado muitas instituições, a internet também ajudou a criar várias outras. Em grande medida, o futuro da indústria jornalística será decidido não por aquilo que está sendo extinto, nem por aquilo que está chegando, mas pelo modo como novas instituições passam a ser velhas e estáveis e como velhas instituições se tornam novas e flexíveis.

Neste ponto, é importante ter duas coisas em mente. A primeira é que, embora iremos frisar a relativa inflexibilidade de instituições de grande porte, não queremos dizer que toda instituição, seja lá de onde for, seja incapaz de mudar. Nossa tese é outra: mudar instituições jornalísticas não é impossível, mas é difícil – e mais difícil do que um observador externo poderia logicamente esperar. Argumentos sobre a eficiência econômica da mudança, o valor normativo da mudança e o imperativo administrativo da mudança são, em geral, corretos – mas, do ponto de vista institucional, irrelevantes.

A segunda coisa a lembrar é que instituições jornalísticas capazes de se adaptar seriam uma das mais valiosas fontes de crescimento e evolução no ecossistema jornalístico de modo geral. É óbvio que, onde quer que ocorra, a adaptação tem tremendo impacto; grandes instituições jornalísticas são, contudo, como um navio de guerra: ainda que demorem para mudar de curso, uma vez completada a volta são capazes de avançar com força e velocidade impressionantes. Editores e gestores de meios de comunicação devem ter em mente que muito da mudança potencial nesse ecossistema depende de sua capacidade de pensar de forma distinta.

 

Afinal, o que são instituições?

O que, exatamente, são instituições? O economista Geoffrey M. Hodgson sustenta que instituições são “a forma de estrutura que mais importa no plano social, por constituírem a matéria da vida social”. Segundo Hodgson, uma instituição pode ser definida como “um sistema de normas sociais estabelecidas e dominantes que estrutura interações sociais”. Na análise do sociólogo Jonathan Turner, a coisa é um pouco mais elaborada. Segundo ele, instituições são “um complexo de posições, papéis, normas e valores que, contido em certas estruturas sociais, organiza padrões relativamente estáveis de atividade humana”.

Um tema complicado, sem dúvida. Mas o que importa, para nossos propósitos aqui, é entender que uma instituição deve ser vista como algo que, pelo menos em teoria, pode estar situado fora de uma determinada estrutura física. Instalações da empresa e até sua folha de pagamentos não são o substrato da matéria institucional. Instituições são, antes disso, uma série de normas sociais que criam padrões estáveis de comportamento. É óbvio que trabalhar junto com outros numa redação ou ganhar para realizar certo trabalho não prejudica a formação e o fortalecimento dessas normas sociais, mas dinheiro e proximidade física nem sempre são o essencial.

Também seria um erro encarar a instituição como mero agrupamento de indivíduos racionais, cada qual tomando a decisão consciente de que aderir a esquemas institucionais é a melhor maneira de maximizar o próprio interesse. Como disseram os sociólogos Walter Powell e Paulo DiMaggio, “embora sem dúvida sejam resultado da atividade humana, instituições não são necessariamente o produto de uma vontade consciente (…) o novo institucionalismo na teoria da organização e na sociologia traz uma rejeição do modelo do ator racional, a adoção de explicações cognitivas e culturais e um interesse em características de unidades de análise supraindividuais que não podem ser reduzidas a somatórios de motivos individuais ou a consequências diretas destes”. Em outras palavras, embora entender o indivíduo seja importante para entender a instituição, há, em instituições, um resíduo acumulado que impossibilita sua redução a comportamentos individuais.

Tudo isso nos leva a um terceiro argumento – argumento capaz, a nosso ver, de lançar luz sobre a crise que hoje assola o jornalismo. Citamos, acima, a observação de um acadêmico de que instituições organizam “padrões relativamente estáveis de atividade humana”. A estabilidade tem suas vantagens, e discutiremos algumas delas a seguir. Mas, como afirmaram Powell e DiMaggio, “condutas e estruturas institucionalizadas normalmente demoram mais a mudar (…) esquemas institucionais são reproduzidos porque, muitas vezes, indivíduos são incapazes de sequer conceber alternativas adequadas”.

 

Por que instituições são importantes

Durante entrevistas com jornalistas em uma série de contextos institucionais, ficamos impressionados com o contraste entre o orgulho que exibiam pela organização na qual trabalhavam e o sentimento de frustração que muitos manifestavam ao falar do ritmo moroso da adaptação organizacional. “Não acho que falte vontade de mudar nessas grandes organizações”, disse um repórter. “Mas o custo e o risco são muito altos. Pode ser um desastre financeiro, é verdade, mas também pode ser um desastre cultural na redação. E ninguém sabe como deve ser essa [nova redação]. A cada repetição de processo, ao analisar algo, você só sabe como funciona quando algo dá errado.”

O lamento geral poderia ser assim resumido: a presença de processos é um obstáculo maior à mudança do que a ausência de dinheiro. Não chega a surpreender; como observamos em nossa definição de instituições, a finalidade de esquemas institucionais é incutir e racionalizar normas padronizadas de conduta – em outras palavras, dificultar a mudança.

Aqui e ali, essa frustração com a lentidão da mudança institucional se converte em um niilismo organizacional generalizado. Por essa lógica, se arranjos institucionais estão ruindo, e se organizações em ruína se recusam a encarar a realidade e mudar, melhor seria destruí-las de vez e começar do zero. O problema com esse raciocínio anti-institucional é que, paradoxalmente, aquilo que torna uma organização conservadora é justamente o que, em certos casos, faz com que seja tão forte na produção do “núcleo duro” da notícia.

Resta saber, portanto, que tipo de jornalismo é viabilizado por instituições jornalísticas e se há um jeito de preservar suas possibilidades (affordances) positivas e, ao mesmo tempo, abri-las à evolução e à mudança. Esse paradoxo institucional tem solução? À receita da produção de notícias, instituições adicionam os seguintes ingredientes: influência, capital simbólico, continuidade e margem de capacidade. De modo geral, instituições utilizam esses ingredientes para produzir dois tipos distintos de informação relevante para uma democracia: informações genéricas sobre acontecimentos públicos e informações mais especializadas destinadas a exercer “impacto” sobre outras instituições sociais. A confusão sobre o propósito do jornalismo, e a tendência jornalística a mesclar deliberadamente essas duas categorias de produção de informação, dificultam a definição da melhor forma de preservar influência, capital simbólico, continuidade e margem em uma nova conjuntura tecnológica.

 

Imprensa, burocracias e cobertura setorista

As origens do jornalismo norte-americano moderno remontam à década de 1830, quando uma crescente leva de publicações populares – a chamada penny press – buscou padronizar e racionalizar a produção regular de notícias. Em vez de depender da correspondência vinda do exterior, de notícias que desembarcavam nos portos da colônia pelas mãos de gente que cruzava o Atlântico, ou de fatos reciclados de outros jornais em circulação, jornalistas empregados pela penny press cobriam áreas específicas: os tribunais, a delegacia, a política. E o faziam, em parte, porque cada instância dessas supostamente gerava, em caráter regular e previsível, informações de interesse da crescente massa alfabetizada de consumidores de notícias. A infância do jornalismo é, em suma, a história de uma nova instituição que buscava instituições mais estabelecidas para alimentar a “roda de hamster” do século 19. O acadêmico Matthew Carlson, especializado em estudos do jornalismo, generaliza o argumento histórico, invocando estudo anterior de Mark Fishman (1980) segundo o qual a “afinidade burocrática” leva organizações jornalísticas burocraticamente organizadas a buscar outras burocracias para obter informações.

Sociólogos costumam apontar as consequências negativas dessa afinidade burocrática. “Embora jornalistas não busquem intencionalmente fortalecer detentores do poder, o jornalismo legitima instituições de controle social ao apresentar lógicas institucionais ao público como [se fossem] leis da natureza”, diz Carlson. Jornalistas, por sua vez, costumam frisar a função de cobrança de prestação de contas (accountability) incorporada a essa vigilância institucional; “de olho constante em burocracias”, como alertou o repórter David Burnham em artigo de 1998 para a Nieman Reports.

Mas por que instituições jornalísticas seriam particularmente qualificadas para cobrir grandes burocracias e organizações governamentais e empresariais? David Simon explica:

É suficientemente difícil exigir que órgãos [do Estado] e lideranças políticas prestem contas de seus atos numa cultura que já não tem paciência nem disposição para lidar com a dinâmica de instituições. No momento, temos dificuldade, como sociedade, até para reconhecer nossos problemas, que dirá para solucioná-los. Na falta de uma imprensa profissional devidamente financiada – imprensa que cubra burocracias civis com constância e tenacidade –, nossas chances no futuro serão menores ainda.

Organizações que estão surgindo na era digital, alega Simon, não estão preparadas para cumprir essa função:

A blogosfera, por sua vez, não chega a ser um fator nesse tipo de cobertura. A maioria daqueles que dizem que o jornalismo das novas mídias está crescendo (explodindo até), em um surto democrático de cobertura igualitária, de todo ângulo possível, simplesmente nem menciona a cobertura jornalística setorista que inclui juízo qualitativo e análise. Há mais informação em estado bruto, é verdade. E mais opinião. E há, sim, mais sites novos com conteúdo de pouca consequência (…) [mas] o que está desaparecendo é a cobertura setorista e a estrutura setorista de um jornal diário.

A tese de Simon é interessante, embora seja em grande medida circunstancial. É possível definir com mais precisão exatamente o que uma instituição faz? E, uma vez que isso tenha sido precisado, é possível descobrir uma maneira de preservar suas funções básicas, mesmo em uma fase de transição? Eis a seguir quatro fatores que definem o valor agregado de uma instituição jornalística quando comparada com uma amostra aleatória de jornalistas isolados.

 

>> Influência

Se a meta fundamental do jornalismo é levar ao público a informação de que este necessita para se autogovernar, e se parte dessa informação é o conhecimento que advém do monitoramento vigoroso e não raro hostil de uma série de instituições sociais, por que alguém revestido de algum poder falaria com um jornalista? Por que os alvos desse olhar vigilante não se comunicariam simplesmente uns com os outros, e com o público diretamente, evitando qualquer contato com profissionais da imprensa? Em parte, por interesse próprio: autoridades públicas e outros indivíduos com algum poder sabem que falar com a imprensa é sempre uma oportunidade, por mais limitada que seja, de “dar sua versão dos fatos”, ainda que o tiro saia pela culatra. Mas detentores do poder também falam com a imprensa por temer as consequências de se manter calados.

Instituições jornalísticas, pelo menos em sua versão do século 20, tinham um punhado de características que aumentavam seu poder na comparação com outras estruturas de governança pública. A primeira era a tese de que sua autoridade era diretamente proporcional a seu público de massa – a tese da influência. Um grande público, nesse caso, era garantia de poder, já que se supunha que leitores e a “opinião pública” eram moldados pelo jornalismo em grande escala. É irônico que a raiz dessa equivalência entre audiência e poder não esteja na ascensão da penny press, mas na era da chamada party press (a imprensa partidária que a precedeu), quando era mais direta a correlação entre a circulação de um veículo e a força de um partido numa determinada área. Isso posto, a era da comunicação de “massa” trazia a ideia de que as massas respondiam à conduta do jornalismo e por ela eram influenciadas.

Hoje, a ideia da influência, ao menos como corolário do porte da audiência, passa por mudanças. Embora ninguém negue que instituições jornalísticas atuais sigam sendo excepcionalmente fortes em sua capacidade de mobilizar a opinião pública e punir políticos desvirtuados, a fragmentação do público consumidor de notícias lançou por terra a velha noção do público como massa. De novo, não estamos negando que instituições tradicionais de comunicação tenham um grande público na internet, como gestores desses sites não cansam de repetir ao comparar o número de visitantes únicos e page views dessas páginas ao de pequenos blogs. O que mudou não é o tamanho do público propriamente dito, mas o modo como é entendida a relação entre instituição e público – entre o jornalismo e a imagem que este faz do público. Mudanças nessa imagem do público têm profunda relação com uma segunda leva de transformações: o declínio do capital simbólico de instituições jornalísticas tradicionais.

>> Capital simbólico

Além da diminuição de seu capital financeiro, instituições jornalísticas testemunharam também a queda de uma segunda forma de capital: o capital reputacional. Parte da autoridade histórica de instituições jornalísticas não pode ser atribuída a indicadores de fácil quantificação como porte do público, faturamento ou honrarias como um Prêmio Pulitzer. No longo decorrer da história, o século 20 foi testemunha de uma grande transformação em instituições jornalísticas, que passaram de veículos panfletários e não raro escandalosos de informações úteis e publicidade a sóbrios guardiões da democracia. É um exagero, é claro, mas não totalmente injustificado. As razões para a mudança fogem ao escopo do presente ensaio, mas são de caráter tanto cultural e sociológico como econômico; o mito de Watergate marcou mais o culminar de uma recuperação de longo prazo da reputação do que o nascer desta. No intervalo aproximado de 1908 a 1968, instituições jornalísticas passaram a ser o “quarto poder”.

O capital reputacional do jornalismo foi conferido basicamente à profissão e ao conjunto de instituições, não a jornalistas de forma isolada. Isso significa que, pelo menos em parte, o grau de capital simbólico detido por este ou aquele jornalista decorria tanto de quem era como de onde trabalhava. Embora haja exceções (o caso de I.F. Stone é particularmente destacado), o capital simbólico que um jornalista em particular possuía na mente do público e na mente de políticos era, basicamente, produto de sua filiação institucional e profissional.

Em suma, uma segunda vantagem que instituições jornalísticas conferiam a jornalistas e ao jornalismo de modo geral era uma marca extremamente forte. Embora seja difícil solucionar o problema do ovo e da galinha que atormenta a indústria jornalística neste século 21 (foi a queda da reputação do jornalismo que deixou o setor em dificuldades econômicas ou foram as dificuldades econômicas que levaram à queda na reputação?), o fato é que tendências nessa área continuam indicando um só movimento: o de queda. Assim como a matemática do capital monetário, a matemática do capital simbólico do jornalismo parece vítima de uma crise estrutural, não conjuntural. No século 21, não só jornalistas, mas chefes e executivos de redações, terão de refletir profundamente sobre essas mudanças institucionais.

 

>> Continuidade

Instituições jornalísticas existem tanto no tempo como no espaço. Pode ser útil pensar na continuidade como a “influência acumulada distribuída ao longo do tempo”. É bem possível que este seja o mais importante dos quatro ingredientes da “sopa” institucional, embora normalmente seja o menos teorizado. Continuidade significa poder decidir cobrir um certo fato, setor ou segmento da sociedade de forma persistente ao longo do tempo, mesmo com alterações no time de jornalistas. O jornal Philadelphia Inquirer cobre o crime na cidade da Filadélfia desde que foi fundado – cobertura que não cessa quando o principal repórter da editoria de Polícia se aposenta. Em tese, ao menos, o meio é a instituição que monitora a violência na cidade. É essa a função básica dos “padrões estáveis de comportamento” citados lá atrás, quando da definição de instituições – a tese de que um processo existe independentemente do indivíduo.

Partindo de uma analogia feita por Leo Downie e Michael Schudson num estudo de 2009 intitulado “The Reconstruction of American Journalism”, podemos dizer que a continuidade institucional vem respaldar duas funções exercidas pelo jornalismo: a de cão de guarda e a de espantalho. Tanto um cão de guarda quanto um espantalho dão certa proteção. Mas o fato de que só o cão de guarda é capaz de ladrar nem sempre importa. Embora o espantalho “não faça nada”, sua simples existência – o fato de que o corvo sabe que está ali, de guarda – costuma bastar para coibir a má conduta de corvos e afins. O mesmo vale para o jornalismo. A imprensa vigilante, reconheçamos, raramente ladra. Mas a continuidade dessa imprensa, o fato de que está de guarda, volta e meia basta para inibir a má conduta de instituições poderosas.

Quando se discute o impacto que a redução da capacidade institucional teria sobre instituições jornalísticas, se essas instituições desapareceriam por completo ou simplesmente cobririam menos assuntos, o foco em geral é a função cão de guarda – o fato de que serão cobertos menos temas do que antes e de que o cão vai ladrar menos. A nosso ver, contudo, a verdadeira função institucional em risco nesse caso é a de espantalho. Ambas são interligadas, é claro, e a capacidade de fazer empresas e políticos andarem na linha reforça a sensação de que a imprensa está aí, vigiando. A verdadeira questão para a indústria jornalística, no entanto, é como convencer o público de que a atividade segue sendo importante.

 

>> Margem

Instituições jornalísticas, ou pelo menos organizações que costumávamos encarar como instituições jornalísticas, fazem mais do que cobrir um único tema. Fazem mais do que promover a cobertura setorista, e fazem mais do que orquestrar investigações especiais de longo prazo, com pesado uso de recursos. Fazem essas três coisas. E foram capazes desse feito devido à capacidade de rapidamente lançar mão de uma margem de capacidade. Essa margem institucional significa que, ao longo do tempo, organizações jornalísticas foram capazes de se adaptar, a um piscar de olhos, a acontecimentos mundiais incertos, que evoluíam rapidamente. Paradoxalmente, o conservadorismo operacional deu a essas organizações a capacidade de mostrar bastante agilidade na cobertura de fatos, justamente o que todos aqueles processos conservadores foram feitos para facilitar.

Muitas das novas instituições jornalísticas – organizações especializadíssimas vivendo permanentemente com o mínimo – não têm essa margem de capacidade. O site Technically Philly, por exemplo, tem uma só missão: cobrir novidades no setor de alta tecnologia da Filadélfia. Texas Tribune,Voice of San Diego e Smoking Gun também vão por aí; o traço comum da maioria dos novos projetos jornalísticos é não tentar ser tudo para todos. Andrew Donohue, editor do Voice of San Diego, dá a seguinte explicação: “[Mais] do que em setores, o pessoal aqui se especializa em narrativas específicas dentro de uma área. Não vamos cobrir algo a menos que nossa cobertura vá ser melhor do que a dos outros, ou se ninguém mais estiver cobrindo o assunto”.

Não há mal nenhum nessa especialização, é claro. Tampouco achamos que a descomunal duplicação de esforço que hoje existe na indústria jornalística (despachar centenas de repórteres para cobrir o Super Bowl, por exemplo) seja saudável ou sustentável. Queremos simplesmente frisar que eliminar essa margem do arsenal de instituições jornalísticas é algo inédito, cujas implicações ainda não estão totalmente claras.

 

Recomendação: formar parcerias

O declínio da capacidade institucional não significa que organizações jornalísticas tenham de sacrificar a profundidade de seu conteúdo, já que há recursos disponíveis em outros pontos do ecossistema. Em outras palavras, é preciso tornar parcerias jornalísticas um ingrediente mais comum do repertório institucional.

A nosso ver, há uma imensa diferença entre instituições que encaram parcerias como parte genuína de seu DNA e aquelas que não o fazem. A fé genuína em parcerias não depende, em última instância, do benefício que a parceria terá para a instituição, mas sim da capacidade dessa parceria de agregar valor ao ecossistema como um todo.

Para concluir, instituições jornalísticas agregaram valor público às esferas política e jornalística ao alavancar o trabalho de muitas pessoas, acumular capital simbólico, estabelecer padrões estáveis de atuação capazes de garantir continuidade ao longo do tempo, ser capazes de se concentrar em muitas coisas ao mesmo tempo e, de modo geral, exercer a função de espantalho da imprensa tanto quanto a de cão de guarda. Muitas dessas instituições estão sob considerável risco devido a mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais no ecossistema maior de mídia. E é nesse momento de crise que deficiências dessas instituições – deficiências que, paradoxalmente, nascem das mesmíssimas vantagens que foram de tanta utilidade em momentos de estabilidade – mostram suas garras.

 

O dilema da mudança institucional

Uma queixa recorrente entre jornalistas entrevistados por nós – profissionais de publicações e setores bem distintos da imprensa – é a dificuldade de alterar os rumos de organizações tradicionais de mídia às quais pertencem para, com isso, fazer frente aos desafios da era digital. Zach Seward, ex-editor de interação e mídias sociais do Wall Street Journal e hoje editor sênior do site de economia e negócios Quartz, da Atlantic Media, opinou que o próprio êxito dos jornais em sua atividade tradicional dificulta qualquer mudança:

A ideia de alterar o curso, para uma organização que ainda é obrigada a colocar um produto impresso em circulação diariamente, ou é muito boa e eficiente em um certo processo, faz parecer que o melhor que uma organização nessa situação tem a fazer é promover pequenos ajustes, caso esteja atada a um processo de produção que já existe. Já é um verdadeiro milagre que publicações de periodicidade diária sejam capazes de produzir o que produzem, de modo que 100% do esforço vai para processos atuais.

Essa “presença de processos”, como chamamos o fenômeno, não se manifesta apenas na hora de tomar grandes decisões. É da natureza de processos institucionais serem repetidos a cada dia, até mesmo a cada hora. Um processo determina o que é ou não possível, não só em conversas entre repórteres, editores e executivos, mas na própria infraestrutura tecnológica que torna possível o exercício do jornalismo. Ferramentas instituídas para administrar processos também instituem as premissas usadas para conceber as ditas ferramentas.

Vejamos o caso de sistemas de gestão de conteúdo (CMS, na sigla em inglês) para redações. Um sistema desses já vem com uma ideia definida do fluxo de trabalho – de quando e como o conteúdo será criado, editado, revisado e publicado. O resultado é que um CMS faz mais do que ajudar a organização a gerenciar o conteúdo de uma certa maneira. Na prática, dificulta, ou até impede, qualquer tentativa de gestão de um jeito não previsto no sistema.

Isso vale para tudo, é claro; todo processo existe para obstruir alternativas. Só que um CMS costuma chegar a extremos, pois, em seu caso, requisitos e premissas foram programados no software e são difíceis de questionar, ou ignorar. É como disse Anjali Mullany, que foi editora do site do New York Daily News e hoje é editora de mídias sociais da revista Fast Company:

Sistemas de CMS e de gestão de projetos são a raiz de muitos desses problemas [com processos]. Talvez de 90%. Às vezes, o fluxo de trabalho e o CMS não são sequer compatíveis, ou o CMS não casa com o fluxo de trabalho. Ou, então, o fluxo de trabalho destrói o CMS. Pegue qualquer organização de grande porte, com várias plataformas. Não é raro ver a mesma versão [de uma matéria] várias vezes. Ou vários repórteres cobrindo a mesma coisa por pura falta de comunicação. O CMS maravilhoso e flexível que permitirá [à redação] alterar seus processos com o tempo não existe. Faça o seguinte: tente achar um repórter na cidade de Nova York que goste do CMS que usa. É um sério problema. Se seu CMS o restringe, vai restringir tudo na redação. A tecnologia que a pessoa está usando vai mexer com aquilo que a pessoa produz.

O dilema aqui é claro. Já observamos que uma instituição pode ser definida como padrões e processos estáveis que permitem a um conjunto de pessoas e tecnologias realizar mais do que seria possível como mero somatório de indivíduos. Esses processos institucionais dão à organização jornalística várias vantagens vis-à-vis instituições políticas, sociais e empresariais que monitoram. Mas esses padrões estáveis, sobretudo quando atrelados a ciclos específicos de produção (erguidos, por sua vez, em torno de tecnologias específicas), podem tanto limitar organizações jornalísticas quanto capacitá-las a cobrir o noticiário.

Matt Waite observa que o problema de organizações grandes, hierárquicas, não é que desencorajem o raciocínio criativo, uma distinção sutil e importante: “No trabalho em uma redação, [processos são] um enorme problema. Mas mesmo em hierarquias rígidas, trabalhando com limitações, era possível ter muita criatividade. O único problema era conseguir o sinal verde de alguém para tirar algo do papel”. Waite também observa que em organizações com processos altamente burilados o teste de novos métodos pode ser politicamente difícil: “Nas redações, a estrutura ainda é militaresca. Com isso, fica difícil fazer qualquer coisa sem pisar no calo de alguém”.

A dificuldade da mudança institucional também é visível se formos ver como novos projetos jornalísticos, embora em grande parte formados por jornalistas e editores veteranos, lidam com mudanças em processos. Andrew Donohue lembra-se do comecinho do Voice of San Diego: “Simplesmente fazíamos o que costumávamos fazer em jornais, mas na internet. Fazíamos a cobertura ao longo do dia, fechávamos às 7 e, então, subíamos o material no site. Ninguém nem pensava em atualizar constantemente [o conteúdo]”.

Ouvimos uma história parecida de um alto editor do New York Times: “Fomos informados de que, com os cortes, seria preciso fazer mais com menos, com menos gente, mas sem trégua na cobertura. Em nenhum momento veio alguém da área técnica com conhecimento ou autoridade para dizer que adotássemos outras ferramentas ou outro modo de usá-las. Ninguém disse, ‘vejamos o que vocês precisam fazer em um dia para ver se podemos mudar os processos’. Isso era o que mais desanimava”.

Numa organização menor e mais ágil como o Voice of San Diego, no entanto, era mais fácil trocar o processo tradicional por algo que fizesse um pouco mais de sentido na atual era tecnológica. “Tínhamos uma rotina bem estruturada que foi sendo abolida à medida que a redação crescia e as mídias sociais foram se impondo. Agora, nossa rotina é bem distinta. Ainda apuramos notícias do jeito tradicional, por meio de fontes e de observação, mas temos de decidir como apresentar o fato: como um post de blog, uma matéria única, uma série publicada ao longo de três meses, um conteúdo gerado por crowdsourcing. Hoje, essas são as grandes questões.”

O descompasso de processos costuma ser mais visível em esquemas de trabalho atrelados a sistemas de gestão de conteúdo, pois o conservadorismo desses sistemas é duplo. Devido ao esforço envolvido na implantação de um CMS, a estrutura de um sistema desses em geral reflete decisões gerenciais sobre como deveria ser o fluxo de trabalho na redação. Além disso, como no processo do Voice of San Diego relatado por Donohue, um CMS normalmente é atualizado aos poucos; quando produtos com um ritmo diário centrado no impresso são adaptados para a internet, tudo o que tem a ver com a plataforma digital parece – e em geral é – mero apêndice do projeto original.

Para termos uma ideia do grau de inadequação de muitos processos de produção atuais, vale a pena ir conferir um CMS que já nasceu digital e os processos que o acompanham. Um exemplo recente é o da Vox. A editora, que tem vários sites de nicho (incluindo SB Nation eVerge), projetou seu próprio CMS do zero. “Armamos nosso plano de desenvolvimento com base nas ferramentas que as equipes editorial e de publicidade dizem que precisam”, contou Trei Brundrett, diretor de produtos e tecnologia da Vox, em uma entrevista. Embora pareça um jeito óbvio de trabalhar, isso requer habilidades raras e essenciais: uma equipe editorial capaz de definir corretamente suas necessidades; uma administração que incentive a colaboração editorial e técnica; equipes editoriais e técnicas capazes de se comunicar; e um pessoal técnico suficientemente qualificado para criar um sistema simples e estável o suficiente para ser utilizável. Com isso, não estamos sugerindo que toda organização jornalística deva criar um CMS só seu – ainda que fosse possível, seria perda de tempo e dinheiro. Queremos apenas mostrar que ferramentas feitas para o meio impresso não combinam com a nova realidade da produção de notícias.

Unidades do jornalismo em geral estão ligadas à lógica da atualização diária – lógica que nem sempre vale em condições de digitalização. À medida que a noção de tempo e atualidade do usuário vai mudando, a organização precisa repensar totalmente o modo como o conteúdo é organizado e disposto no fluxo de trabalho da redação. A linha de montagem da redação é quase totalmente anacrônica como método de produção de conteúdo para consumo digital, e deve ser repensada.

 

Recomendação: administrar requisitos tecnológicos da internet

Quando o fluxo de trabalho em condições de digitalização não é repensado, a organização jornalística pode acabar sofrendo todos os inconvenientes de processos digitais sem obter nenhum dos benefícios. É o pior dos cenários – algo que certas vozes no meio chamam de “roda de hamster”: jornalistas com o tempo cada vez mais contado e menos autonomia profissional.

Essa “roda de hamster” é fato, mas muitos se equivocam ao apontar sua causa. Não somos deterministas tecnológicos, não culpamos a “internet” pelo efeito da “roda de hamster”. A nosso ver, a culpa é da própria organização jornalística que segue passivamente aferrada a velhos processos mesmo com a mudança das condições tecnológicas. Em outras palavras, é preciso lidar com exigências tecnológicas da internet para que essa “roda de hamster” seja evitada. A lista de soluções para administrar o digital pode incluir o uso inteligente de links (em vez de acrescentar informações sem parar e de reescrever matérias já publicadas), botar alguém na equipe editorial para atrair tráfego (traffic whoring), como faz a Gawker, e muitas outras mudanças em processos.

 

Recomendação: poder passar por cima do CMS

Sistemas de gestão de conteúdo volta e meia incorporam processos já cristalizados na redação. Nesse caso, a capacidade de subverter um sistema desses pode ser uma forte arma contra a tirania rotineira de processos contraproducentes. Jornalistas devem se preparar, individualmente ou em grupo, para poder passar por cima de toda etapa de seu CMS. Com sorte e persistência, essas soluções alternativas podem lançar as bases para um processo mais racional no futuro.

Aqui, há uma analogia com a criação de sistemas de informação médica. À medida que prontuários médicos vão sendo digitalizados, há, como sempre, um conflito entre segurança e acesso. Um sistema suficientemente seguro para impedir todo uso indevido dessa informação acabaria prevenindo também certos usos justificados, porém imprevistos. Já um sistema que permitisse todo uso possível seria incapaz de garantir a segurança das informações.

A solução, em geral, é um recurso do tipo “quebre o vidro” (algo análogo a romper uma proteção de vidro para acionar um alarme). Um médico que solicita arquivos que por algum motivo o sistema se recusa a liberar pode passar por cima do mecanismo de segurança. Como? Afirmando, basicamente, que sua necessidade vem antes do modelo de segurança do sistema. Isso feito, o acesso à informação é liberado.

Isso exige, contudo, que o médico seja identificado pelo sistema, que dê uma justificativa para estar contornando o sistema e que esteja ciente de que sua decisão será auditada no prazo de 24 horas. Se suas razões não forem justificadas, será disciplinado.

O que estamos recomendando é um mecanismo equivalente a esse “quebre o vidro” para que o jornalista possa ignorar premissas que um CMS faz sobre processos e controle. Se quiser ignorar uma determinada etapa, por razões que pareçam justificadas e urgentes, o profissional deveria ser capaz de fazê-lo – desde que tenha suficiente tempo de estrada para ter interiorizado a versão local do critério jornalístico, que seja identificado pelo sistema e justifique a decisão, e que esteja disposto a defender essa justificativa quando analisada pela chefia.

Obviamente, isso abre a porta para a possibilidade de erros de incumbência – erros cometidos quando o jornalista faz algo que não deveria ter feito. Mas muitos sistemas de gestão de conteúdo causam erros de omissão, erros que impedem o jornalista de tirar partido de uma oportunidade óbvia. Ao permitir que o jornalista passe por cima dos próprios processos quando necessário, e com a devida supervisão, organizações jornalísticas podem impedir que o desejo de manter um fluxo de trabalho previsível destrua a oportunidade de que sua equipe inove e tome iniciativa.

 

Recomendação: promover a transparência

Como contrapartida ao poder de “hackear” processos e de passar por cima do CMS da redação, instituições jornalísticas devem tornar transparentes e sistematizáveis por outras organizações os novos processos sendo empregados para produzir um jornalismo de qualidade. Em outras palavras, quem inventa um processo que funciona deve exibi-lo para que possa ser utilizado por outros meios de comunicação. Nesse sentido, o ProPublica é um exemplo no setor. Embora certas organizações jornalísticas temam que essa transparência vá “ajudar a concorrência”, o fato é que, durante um século, processos jornalísticos foram um livro aberto. Não há nada que impeça uma organização de seguir faturando e dando furos nessa nova era, ainda que seu modus operandi seja transparente.

 

Por que trabalhar com jornalismo? Motivação e impacto institucional

O fato de que um número crescente de indivíduos contribua de graça para o ecossistema da informação, ou que o faça por razões outras que a obtenção de ganho financeiro, causa quase tanta comoção no setor de mídia como a questão dos paywalls. O otimismo inicial sobre o poder do “jornalista cidadão” de transformar o mercado jornalístico rapidamente cedeu lugar à atitude defensiva de profissionais e à crise que se abateu sobre jornais (crise sem nenhuma relação com a produção de conteúdo por amadores, mas que volta e meia figura em discussões sobre o jornalismo cidadão).

Discutiremos na próxima seção o papel que amadores e cidadãos engajados exercem no ecossistema jornalístico de modo geral. Por ora, é suficiente afirmar que, a nosso ver, ambos os lados de um debate hoje muito estéril estão errando o alvo. O papel do cidadão comum na produção de notícias é uma questão de caráter tanto institucional quanto econômico. Em linhas gerais, o fato de que ao menos parte daqueles que produzem notícias estejam trabalhando de graça significa que um mundo de informação limitada hoje virou um mundo de informação infinita, em geral não processada. Isso cria um desafio geral para instituições jornalísticas: como criar novos processos e procedimentos institucionais para ir de um mundo no qual a informação era escassa para outro no qual há fartura de informação.

Em termos mais específicos, um dos grandes dilemas da produção amadora é como organizar, racionalizar e sistematizar essa produção. Não é mera coincidência que Amanda Michel, que chefiou o projeto Off the Bus do Huffington Post, tenha começado a vida profissional como organizadora de campanhas eleitorais, não como jornalista. No papel de organizadora, Michel sabia determinar o que amadores e voluntários podem fazer, o que não podem fazer e como fazer com que trabalhem juntos em benefício de uma instituição maior. A questão da gestão da produção amadora pode, portanto, ser vinculada à questão maior de como converter novos atores no ecossistema jornalístico de redes ad hoc em instituições. É essa questão que agora abordaremos.

 

Informação e impacto (ou para que serve o jornalismo?)

Uma instituição leva vantagens importantes na hora de cobrir notícias de interesse público. Tem a influência, o poder simbólico, a continuidade e a folga de recursos necessários para enfrentar em pé de igualdade outras instituições: políticos, órgãos públicos, empresas, instituições de ensino, ONGs, organizações religiosas. Só que esse mesmo “sistema de normas sociais estabelecidas e dominantes” que ajuda a garantir o poder de instituições também serve, em sua inércia, para impedir mudanças necessárias e obrigatórias.

A solução para esse paradoxo não é abolir instituições. Tampouco é seguir cegamente fiel a instituições que, no passado, produziram o jornalismo de maior qualidade. Há coisas importantes que só uma instituição pode fazer – mas é preciso reinventar as que já estão aí e inventar novas instituições. Precisamos entender de que modo esquemas sociais desestruturados se institucionalizam, que obstáculos existem para a dita institucionalização e que lições e estratégias de cobertura jornalística tirar da observação desse processo de institucionalização.

No jornalismo do século 21, há dois dilemas centrais de institucionalização. O primeiro, óbvio e discutido a torto e a direito desde a década de 1990, é a necessidade de adaptação de organizações jornalísticas tradicionais à internet (e a dificuldade que estão sentindo para tal). Já o segundo é menos discutido: novas formas de produção de notícias (posts no Twitter editados por Andy Carvin, o jornalismo de banco de dados do MapLight, a estabilização de veículos digitais sem fins lucrativos como Voice of San Diego ou Texas Tribune) precisam ser institucionalizadas, pois sem as virtudes de instituições (ainda que concebidas para a produção digital) nenhuma iniciativa dessas vai conseguir sobreviver ou se tornar persistente ou forte o bastante para disciplinar outros atores institucionais.

Um caso emblemático de organização jornalística nova e pouco estruturada que atingiu certo grau de estabilidade institucional é o do Talking Points Memo (TPM). Não damos esse exemplo porque o TPM não tenha enfrentado sua cota de dramas e desafios institucionais, mas justamente porque passou por tudo isso. Para entender de que maneira o ecossistema jornalístico está mudando é crucial entender a dinâmica entre desafio organizacional e evolução institucional. Lançado em 2000 por Josh Marshall, um jornalista que na época fazia um doutorado, o site era basicamente indistinguível do sem-fim de blogs políticos individuais lançados nos primórdios da revolução dos blogs.

Em 2002, o site tinha a arquitetura do gênero naquela fase inicial, com uma foto de Marshall para dar um toque “pessoal” e uma organização em duas colunas (links numa coluninha estreita à esquerda e o conteúdo principal no meio da página). Quatro anos depois, em 2006, o visual do site sugeria o despontar de uma organização bem distinta. A foto de Marshall seguia ali, mas o leitor era recebido por uma página muito mais estruturada.

O mais importante é que, em 2006, o TPM já empregava jornalistas – processo que teve início em 2005, quando Marshall solicitou contribuições de leitores para contratar dois profissionais fixos; levantou US$ 100 mil diretamente do público. Além disso, a coluna à direita fazia o link com o TPMMuckraker, um projeto paralelo cuja meta é produzir mais conteúdo próprio e combativo.

Em 2007, a transição na arquitetura do TPM fora concluída. Agora, a página parecia um típico produto jornalístico, com boxes, links e fontes de corpos distintos para diferenciar cada área do projeto e apor o selo editorial a notícias importantes. A redação seguiu crescendo: em 2010, eram 16 funcionários; em 2012, 28. O site também recebeu um aporte financeiro considerável em 2009 do fundo capital de risco Andreessen Horowitz.

Ao analisarmos a trajetória do Talking Points Memo ao longo do tempo, vemos o surgimento de um site não-institucional em 2000, seguido de um nível cada vez mais complexo de estruturação organizacional, de crescimento da equipe e de acúmulo de capital simbólico (o site ganhou um Polk Award em 2008 pela cobertura da exoneração de procuradores nos Estados Unidos por questões políticas). Embora hoje seja um projeto “velho” pelos parâmetros digitais, o TPM é um caso útil exatamente por isso. É só com o exame da evolução de organizações digitais na internet que iremos entender que a história do jornalismo na era digital não é só de morte e nascimento. É também de estabilização institucional.

Igualmente importante é entender que a história do Talking Points Memo representa a estabilização de um híbrido de velhas e novas práticas jornalísticas, e não simplesmente a adoção de métodos tradicionais de cobertura jornalística para a era digital. O TPM foi um pioneiro no que hoje é chamado de jornalismo interativo, algo que o site define como o “uso de sugestões, informações e textos explicativos de leitores ao lado de conteúdo de produção própria para armar reportagens de fôlego”. Embora haja menos informação sobre como o TPM incorpora tais práticas na versão 2012 de sua estrutura organizacional, há pouca dúvida de que a solidificação da capacidade institucional do site representa a popularização de um certo conjunto de práticas organizacionais.

Um exemplo mais recente espocou em meados de 2012, quando o site Homicide Watch D.C. quase foi fechado. Conforme relatado na primeira seção do dossiê, o Homicide Watch é uma fusão da cobertura tradicional de polícia com uma infraestrutura tecnológica nova. O site tem um orçamento minúsculo; seus fundadores, Laura e Chris Amico, licenciam a plataforma para outras organizações jornalísticas. É um exemplo ideal de reformulação de processos para geração de alto valor a baixo custo.

Isso posto, depois de dois anos no ar o Homicide Watch corria o risco de ser fechado – por dois motivos. O primeiro era que poucas organizações de mídia se interessavam em operar a plataforma sob licença. O Homicide Watch é tão diferente do modelo tradicional da editoria de polícia – que decide que crime vai ou não cobrir – que nenhuma organização estabelecida poderia usar a plataforma sem o efeito colateral de ter de alterar premissas e processos internos. A incompatibilidade de processos tornou o licenciamento da plataforma muito mais difícil do que o casal Amico imaginara.

Apesar dessa dificuldade, e da verba curta, a dupla manteve o site no ar. Foi quando surgiu o segundo problema. Laura Amico, que cuidava da reportagem, recebeu uma bolsa Nieman para estudar em Harvard. Caso perdesse a fundadora, ainda que por um tempo, o Homicide Watch não teria nenhuma das vantagens de grandes instituições: uma forte reserva de talentos, funcionários com atribuições redundantes capazes de assumir o trabalho de outros e assim por diante.

O site só foi salvo devido a uma campanha de última hora no Kickstarter que permitiu a contratação de uma equipe em Washington para trabalhar remotamente com Amico. Isso adia, mas não resolve, o problema: pequenas organizações como a Homicide Watchsão um prodígio na arte de fazer muito com pouco, mas vivem sob eterna ameaça. Para sobreviver e difundir seu modelo, terão de conseguir fontes mais seguras de receita, uma equipe maior e mais variada e processos mais complexos para gestão desse pessoal. Precisam, em outras palavras, virar uma instituição.

 

Recomendação: criar “guias” para novos projetos

Criar uma organização jornalística nova não é tão difícil quanto estabilizar um empreendimento desses no médio e longo prazos. Cientes disso, iniciativas de sucesso (como Talking Points Memo, Texas Tribune, West Seattle Blog, Baristanet) deviam criar “guias” de caráter público para orientar novas organizações jornalísticas.

É preciso levar em conta que o fundador de uma organização que atinge certo sucesso pode ter pouco tempo ou interesse em destinar recursos para explicar como chegou lá. Sua função, afinal, é produzir jornalismo. Daí sugerirmos que essas organizações, e similares, recebam dinheiro de fundações para poder promover essa “metarreflexão”.

Entender como novas organizações jornalísticas adquirem estabilidade e como, no processo, fazem uma série de práticas institucionais parecerem mais do que lógicas, é o elo perdido em nosso esforço para entender o novo ecossistema jornalístico. É, também, uma área nebulosa em termos de financiamento. O grosso de dotações de fundações é dirigido a projetos que tenham “impacto” tangível, o que torna essas entidades menos inclinadas a ajudar organizações na missão maçante e invisível da estabilização institucional (coisas como montar uma folha de pagamentos, alugar espaço comercial e contratar plano de saúde para o pessoal, bem como orientar gente nova e fortalecer normas institucionais). Agora que grandes fundações norte-americanas – como a Ford Foundation – estão investindo cada vez mais em meios de comunicação tradicionais, como o Washington Post e Los Angeles Times, o investimento em veículos menores, que já não são novidade mas tampouco pertencem à velha guarda, parece ainda menos provável. O Washington Post recebeu US$ 500 mil da Ford Foundation; não é difícil imaginar o que o Homicide Watch seria capaz de fazer com uma fração dessa verba.

 

Recomendação: repensar a distribuição de verbas

Fundos “públicos” ou de fontes não comerciais (incluindo dotações de governos e fundações) devem ser usados basicamente para ajudar na institucionalização de organizações. Paradoxalmente, é justamente o que essas fundações e o poder público parecem menos inclinados a fazer, pois seu foco é mostrar impacto. Dada a importância e a fragilidade de novos atores, fundações devem repensar essa estratégia de financiamento.

Em última instância, como saber se instituições jornalísticas – velhas, novas ou no meio do caminho – estão fazendo o que deveriam fazer? Como medir o êxito de uma organização dessas? Quando o sucesso é definido basicamente como “sucesso comercial”, a resposta é simples – embora, por esse critério, a indústria jornalística norte-americana venha em queda livre há pelo menos meia década. Quando o sucesso passa a ser definido em termos do impacto exercido no mundo, e não só do lucro, o cálculo muda. Hoje, há muito mais maneiras de definir esse impacto do que antigamente, embora a complexidade da questão também tenha aumentado. Para saber se instituições estão funcionando, precisamos entender seu propósito e medir o impacto que estão tendo sobre as instituições que monitoram.

Não faz muito tempo que a questão do “impacto” virou um tema de discussão em organizações jornalísticas e nos círculos que debatem o “futuro do jornalismo”. O ProPublicahá muito lidera a reflexão sobre o real impacto do jornalismo. Na seção “About Us”, o site declara que, “na melhor tradição do jornalismo norte-americano de serviço público, buscamos promover mudanças positivas. Expomos práticas ímprobas a fim de incentivar a reforma”. O ProPublicaacrescenta que age “sem nenhuma filiação a partidos ou ideologias, aderindo aos mais rigorosos padrões de imparcialidade jornalística”. Para encerrar, observa que “todo material publicado [no site] é distribuído de modo a maximizar seu impacto”.

A princípio, é uma missão sem controvérsia. Por incrível que pareça, no entanto, não é encampada publicamente por organizações de mídia mais tradicionais, embora o desejo de exercer “impacto” esteja na base do ideário jornalístico de modo geral. Instituições jornalísticas volta e meia sustentam que sua função é simplesmente “apresentar os fatos” e que questões ligadas ao efeito que ditos fatos terão não são de sua alçada. Instituições jornalísticas em geral veem o consumidor de notícias como um receptáculo vazio de informação pública que, quando preenchido com o conhecimento adequado, passará a exibir condutas democráticas.

O impacto do jornalismo, em outras palavras, não vem de quem produz a notícia, mas de quem consome a notícia – do próprio cidadão de democracias.

A essa altura, já deve estar claro que não damos muito valor à analogia do receptáculo vazio para refletir, nas palavras do professor de jornalismo da New York University Jay Rosen, sobre “a função do jornalismo”. A nosso ver, são as instituições jornalísticas que, em geral, dão a maior contribuição para a promoção de resultados positivos em uma democracia. Isso posto, é essencial saber exatamente como a organização jornalística exerce impacto e fazer essas empresas aceitarem que sua função é exercer impacto.

Foi alentador ouvir, em meados de 2012, que a Knight-Mozilla Foundation iria instalar um bolsista da fundação no New York Times com a missão específica de conceber maneiras para uma organização jornalística medir seu impacto. “O que não temos é uma forma de medir até que ponto um conteúdo jornalístico muda o modo de pensar ou agir das pessoas. Não temos um indicador de impacto”, explicou Aron Pilhofer, editor de conteúdo interativo do jornal, em seu blog.

Não é um problema novo. Critérios tradicionalmente usados por redações em geral são bem imprecisos. A lei mudou? O vilão foi para a cadeia? Expusemos riscos? Salvamos vidas? Ou, o menos relevante de tudo, ganhamos algum prêmio?

Mas a equação muda no universo digital. Estamos soterrados por dados e temos a capacidade de travar um diálogo com leitores numa escala, e de um modo, que teriam sido impossíveis (ou impossivelmente caros) num mundo analógico.

O problema hoje é saber que dados computar e quais ignorar. É uma questão de criar modelos para teste, análise e interpretação que possam tanto ser ampliados como reproduzidos.

É questão de achar, em meio a todo o ruído, um sinal claro que indique se nosso jornalismo está repercutindo ou não, se está tendo o impacto que acreditamos que deveria ter. Nossa meta, ao abrigar um bolsista da fundação Knight-Mozilla, é ajudar a eliminar esse ruído.

Esperamos que essa iniciativa do New York Times e da Knight-Mozilla Foundation abra caminho para que outras organizações jornalísticas reflitam sobre aquilo que fazem, e sobre a importância disso. Somente se começarem a encarar a si mesmas como organizações de algum impacto sobre o mundo poderemos entender o valor de instituições jornalísticas e achar saídas para repor o capital institucional hoje arrastado pelo tsunami digital deste início do século 21.

 

Recomendação: determinar e avaliar impacto

Torne a avaliação do impacto, incluindo distribuição de tarefas e promoções, parte da cultura organizacional. Considere parcerias com organizações que possam fornecer informações ou conhecimento sobre áreas nas quais se deseja exercer impacto.

 

Como serão as novas instituições jornalísticas

Já mostramos por que instituições são vitais para garantir o bom funcionamento de um ecossistema jornalístico saudável. Também abordamos um paradoxo institucional: o fato de que características que garantem o sucesso de uma organização em tempos de relativa estabilidade social podem impedi-la de se adaptar a uma realidade organizacional em rápida transformação. Isso posto, como seria uma instituição jornalística saudável no século 21? Que tipo de esquema institucional deveriam exigir editores, jornalistas, presidentes de empresas e estudiosos do futuro do jornalismo?

Já de saída, devemos afirmar que instituições jornalísticas do futuro serão menores do que as de hoje; com base em nossos argumentos anteriores, reconhecemos que cortes de pessoal, orçamentos menores e a necessidade de “fazer mais com menos” hoje viraram a regra em organizações jornalísticas. Também achamos provável que organizações jornalísticas encontrem, em uma série de fontes, novas formas de bancar as operações; nessa lista entrariam algum formato de assinatura digital, publicidade no site, estratégias de vendas para mídias sociais (como as adotadas pelo site BuzzFeed), verbas de fundações e subsídios do Estado. Não é nossa intenção recomendar qualquer fonte dessas em detrimento de outras, embora certas formas de geração de receita contribuam para as estratégias institucionais que apresentaremos a seguir, enquanto outras dificultem a transição.

Nosso argumento é que instituições jornalísticas do futuro, além de menores e “agnósticas” quanto a fontes de receita, devem ter três características definidoras. Terão um fluxo de trabalho “hackeável”, ou contornável. Vão adotar alguma forma daquilo que chamamos de “institucionalismo em rede”, sendo que muitas das maiores organizações jornalísticas de penetração nacional devem promover um jornalismo que cobre prestação de contas (accountability journalism) local em parceria com veículos locais de imprensa. E, por último, instituições jornalísticas terão de repensar radicalmente o que conta como “prova jornalística válida”, buscar novas maneiras de avaliar essas novas provas e integrar tais processos de apuração e avaliação a seus fluxos de trabalho “hackeáveis”.

 

Fluxo de trabalho hackeável

Atualmente, processos de produção jornalística são concebidos com dois imperativos em mente. O primeiro é a gestão racional da geração, transmissão, edição e produção de conteúdo para o maior número possível de plataformas simultâneas. O segundo imperativo, ligado ao primeiro e basicamente herança do processo de produção da imprensa escrita e falada, é que essa gestão do fluxo de trabalho é feita para produzir um produto único, acabado, que será “consumido” uma vez e, em seguida, descartado. Encarar o fluxo de trabalho dessa forma (e, mais ainda, administrar a produção e a difusão de conteúdos dessa forma) só faz sentido se o modelo da criação e do consumo de uma única vez se mantiver.

No meio digital, o conteúdo jornalístico pode ser produzido, complementado, modificado e reutilizado indefinidamente. Para tirar partido desse fato, o fluxo de trabalho terá de ser alterado para comportar essas novas possibilidades tecnológicas e culturais. Criar um fluxo de trabalho que reflita a produção mais flexível de conteúdo digital terá o efeito secundário de tornar rotinas rígidas da redação mais “hackeáveis”.

O salto organizacional do hacker-jornalista não está no domínio das últimas novidades em ferramentas de mídias sociais nem na capacidade de trabalhar com um Google Fusion Table de mil colunas. Nada disso. A grande sacada de jornalistas versados nos ritmos da produção digital e de linguagens de programação é entender que o “conteúdo” já não é descartado após o primeiro uso. Em vez disso, é infinitamente reciclado e deve ser projetado para uma perpétua iteração. Em entrevistas com jornalistas que exercem a profissão, ficamos impressionados ao constatar que a redação de toda organização jornalística, em maior ou menor grau, permanece presa a um fluxo de trabalho básico no qual a meta final da produção jornalística é um produto único, acabado. Instituições jornalísticas repaginadas vão projetar o fluxo de trabalho em torno de um fato novo, fundamental: a notícia não é nunca um produto acabado, e não há um jornal matutino ou um telejornal noturno que possa sintetizar, em sua totalidade, o trabalho daquela jornada.

Disso se infere que o conteúdo noticioso, e a produção desse conteúdo, usarão a iteração como ponto de partida. O produto da atividade jornalística terá de ser o mais reutilizável possível: em outras plataformas, em outros aparelhos, em novas matérias e até por outras organizações de comunicação.

Há ainda outra consequência: sistemas de gestão de conteúdo de redações terão de ser projetados para permitir que sejam contornados. Um corolário óbvio é que na escolha (ou, em raros casos, na concepção) do CMS será preciso indagar quem terá o direito de passar por cima de expectativas embutidas no sistema (e de que modo). Outro corolário é que processos erguidos em torno do CMS terão de frisar a capacidade de certos funcionários de fugir ao processo previsto a fim de tomar decisões atípicas em meio a circunstâncias incomuns.

Em outras palavras, terão de ser flexíveis e adaptáveis a necessidades organizacionais específicas. O foco da gestão da produção de conteúdo jornalístico não deve ser a criação de um produto final com um fluxo de trabalho genérico, mas sim a criação de um conteúdo infinitamente iterável por meio de um CMS altamente hackeável.

 

A instituição em rede

Muita tinta já foi gasta na questão da parceria entre organizações do meio jornalístico. Muitos argumentos já foram apresentados sobre a necessidade de instituições estarem mais abertas à colaboração com outros integrantes do ecossistema jornalístico digital. Por ora, no entanto, o veredicto sobre projetos atuais de colaboração ainda é incerto. Várias das parcerias mais festejadas do New York Times (com a Chicago News Cooperative, com o Bay Citizen, com a Local, abrigada na City University of New York – Cuny) tiveram um desfecho bastante inglório; paralelamente, muitas organizações parceiras do New York Times descobriram que trabalhar com uma organização tão forte pode acabar distorcendo as prioridades de suas próprias organizações. A ideia da colaboração institucional, embora atraente no plano intelectual, precisa ser repensada.

Nossa tese é que a organização jornalística do futuro provavelmente não será uma instituição totalmente aberta, cujo objetivo básico seja a colaboração, e que tampouco deva buscar apenas a colaboração fundada em projetos. Recomendamos, em vez disso, uma estratégia muito parecida à adotada pelo ProPublica no projeto “Free the Files”.

No “Free the Files”, o ProPublicaapostou no crowdsourcingpara reunir dados entregues à FCC (Federal Communications Commission) sobre a veiculação de propaganda política em emissoras de TV. Já que os mercados de mídia em questão são inerentemente locais, o ProPublicapromoveu, na prática, um ato de accountability journalismlocal, ainda que tenha coordenado a campanha em escala nacional. O último passo de um projeto como o “Free the Files” seria colaborar com organizações jornalísticas locais para publicar os dados de forma jornalisticamente relevante e interessante. Não se trata nem de uma parceria permanente, nem de uma colaboração em torno de um fato único. O que o site está fazendo é usar um institucionalismo em rede, inteligente e dirigido, para preencher uma lacuna aberta com o trabalho de reportagem local de prestação de contas. Como seria de supor, essa nova colaboração é fundada na chegada de novas formas de evidência jornalística, no caso em questão grandes volumes de dados.

 

Novas formas de prova

Na primeira parte do dossiê, falamos de novas habilidades que serão exigidas do jornalista pós-industrial. Sob vários aspectos, é possível resumir essas habilidades como a capacidade de reconhecer, ou melhor, avaliar e apresentar novas formas de prova jornalística. Qual o elo entre conversas em mídias sociais, grandes constelações de dados e a geração de informação em primeira pessoa, na cena dos fatos? É, basicamente, o fato de darem ao jornalista do século 21 um sem-fim de novas fontes a serem incorporadas ao processo de produção jornalística.

Como dissemos lá atrás, essas mudanças no ecossistema geral da mídia vão impor ao jornalista novos desafios e a necessidade de dominar novas habilidades. Todo indivíduo que trabalha no setor de comunicações precisa, portanto, encarar com seriedade essa necessidade. Já instituições que abrigam esses jornalistas devem montar uma organização e um fluxo de trabalho na redação que deem respaldo ao jornalista nessa empreitada.

Em outras palavras, não podemos seguir exigindo que um repórter domine novas habilidades e procedimentos de avaliação sem, simultaneamente, garantir a esse profissional um fluxo de trabalho e uma estrutura organizacional que indiquem que tal traquejo é valorizado e premiado. Esse fluxo de trabalho precisa ser flexível, e em rede, para facilitar e melhorar o trabalho.

 

Conclusão: jornalismo, instituições e democracia

Num ensaio em 1995, o teórico da comunicação James Carey discorre com eloquência sobre a visão da imprensa como um “quarto poder” – uma visão da relação entre mídia e democracia que só ganhou contornos definidos na década de 1960, a era de Watergate:

Por essa ótica, jornalistas seriam agentes do público no monitoramento de um governo inerentemente abusivo. Para poder exercer tal papel, a imprensa deveria ter o direito especial de apurar informações. Logo, sob o modelo do quarto poder, uma imprensa livre era, basicamente, sinônimo de uma imprensa forte dotada do privilégio especial de apurar informações.

Sob a teoria do quarto poder, ainda segundo Carey, a imprensa começou, cada vez mais, a se enxergar como representante do público na arena política. Para que essa noção de representação vingasse, no entanto, o público não só tinha de ver a imprensa como sua legítima representante política, mas também acreditar que essa imprensa representativa era capaz de entender e retratar corretamente a realidade empírica básica do mundo. Se sondagens da confiança no jornalismo servirem de algum indicador, é justo dizer que nenhuma dessas condições se sustenta em 2012.

O que Carey não considerou – o que quase ninguém considerou menos de uma década atrás, quando a margem de lucro de jornais ainda era de 20% a 30% – foi que a imprensa poderia se tornar incapaz de cumprir sua parte do acordo na cobertura dos fatos. Desde a década de 1960, o grosso da crítica à mídia se resumiu à tese de que a imprensa era capaz de uma cobertura jornalística muito mais forte, aprofundada e agressiva do que se dispunha a empreender. Como sustentam Downie e Schudson em sua análise do accountability journalisme como reitera o relatório de 2011 da FCC sobre ecossistemas de informação da sociedade, o problema com a imprensa hoje é tanto de incapacidade quanto de deliberada negligência. Também analisamos o elo entre capacidade institucional, o problema do tempo e a cobertura setorista ao discutirmos os argumentos de David Simon: em suma, muito do valor agregado pelo jornalismo está na operação de rotinas diárias, o sistema de vigilância setorista funciona melhor com instituições saudáveis e o declínio institucional está levando à corrosão desse recurso jornalístico singular.

Aqui, uma breve discussão sobre a lógica econômica da atividade jornalística se faz inevitável, pois é nesse ponto que o consenso em torno do futuro do jornalismo desaparece. Segundo pelo menos dois campos distintos neste debate, mecanismos de mercado melhores vão restituir a saúde institucional – embora a definição de “mercados melhores” de um lado e outro seja diretamente oposta. Uma terceira corrente duvida que seja possível achar uma solução de mercado para o problema do declínio institucional do meio jornalístico.

A primeira corrente de pensamento, representada por teóricos do futuro da mídia como Jeff Jarvis, acha que o ecossistema jornalístico digital constitui, em si, um mercado mais transparente e fiel do que o mercado monopolístico do regime anterior. A tese, aqui, é que a verba para um jornalismo de interesse público virá de uma combinação de transparência, maior disseminação pelo público e avanços na capacidade da indústria publicitária de microssegmentar consumidores. Tendo como contraponto o monopólio do qual instituições jornalísticas mais poderosas gozaram durante quase um quarto de século, esses teóricos veem a atual fase de fartura de informações, a capacidade de adaptar o conteúdo ao público consumidor e a facilidade de compartilhamento como grandes avanços em relação ao modelo anterior de produção jornalística, menos livre.

Em comentários ao post do blog discutido acima, David Simon articula com maestria uma segunda ideia do significado de mercado “melhor” – uma ideia aparentemente partilhada por uma crescente leva de executivos da imprensa. “Acredito que a cobertura jornalística local possa ser sustentada por receitas do meio digital”, diz Simon. “Mas isso requer que o jornalismo institucional valorize e proteja seus direitos autorais e que o setor como um todo projeta esse direito. Requer, ainda, um reinvestimento real nesse produto.” A essa lista Simon acrescenta a imposição de paywalls, que segundo ele já demonstraram seu poder no New York Times. Em suma, Simon e gente como ele defendem a ação unificada para coibir agregadores e cobrar pelo conteúdo como uma maneira de o setor como um todo enfrentar as causas do declínio da imprensa. Para que organizações jornalísticas detenham o posto de principal fornecedor de notícias, será preciso instalar barreiras na internet.

Uma terceira corrente de opinião duvida que qualquer solução de mercado dessas possa facilmente se materializar. Teóricos e comentaristas dessa vertente observam quão atípica foi a confluência de instituições capitalistas abastadas e do jornalismo de interesse público que produziram. Sua tese é que a dinâmica do mercado digital na verdade pune atores institucionais que buscam criar conteúdo jornalístico amplo, de caráter vigilante. Diferentemente de teóricos da segunda corrente, no entanto, não acreditam que a atual dinâmica do sistema jornalístico digital possa ser facilmente suplantada – nem acham que deveria ser necessariamente suplantada, ainda que possível. Certos teóricos dessa corrente saltam daqui para a tese de que bens públicos produzidos por instituições de imprensa (sobretudo a cobertura setorista) só podem ser financiados por formas de subsídio alheias ao mercado, sejam filantrópicas ou oriundas mais diretamente do Estado.

Os três autores deste ensaio se situam nessa terceira categoria, uma decisão que também embasa nossa transição de instituições, na presente seção, para o ecossistema jornalístico que vem em seguida, na terceira parte do documento. Precisamos, em outras palavras, deixar de depositar toda a esperança democrática na concepção da imprensa como um quarto poder. A prestação pública de contas deve vir, em parte, das próprias redes que hoje embasam o ecossistema de notícias. Não estamos dizendo que essas redes existem em um vácuo institucional. Nada disso. Instituições de jornalismo estão entre os nós mais importantes nesse novo ambiente digital. Precisam, contudo, coexistir de novas formas, ao lado e em conjunto com mais grupos e instituições do que nunca – e não só por razões econômicas, mas também democráticas. Precisam se apoiar nesses novos grupos e redes de um jeito novo. Estamos repetindo aqui nossa tese inicial de que a indústria jornalística está morta, mas que o jornalismo segue vivo em muitos lugares.

No ensaio citado anteriormente, James Carey afirma que a “ideia da imprensa como cão de guarda, de uma imprensa independente de toda e qualquer instituição, imprensa que representa o público, imprensa que expõe interesses e privilégios, imprensa que lança a luz ardente da transparência sobre toda esfera da república, imprensa que busca o conhecimento especializado entre uma barafunda de opiniões, imprensa que busca informar o cidadão, são ideais e funções que nos ajudaram muito em momentos sombrios”. Mas, continua Carey, “com o século avançando, as deficiências do jornalismo moderno foram ficando cada vez mais evidentes e debilitantes”.

As ideias de Carey sobre as vantagens e as desvantagens do quarto poder são tão válidas hoje como no passado. A crise, no entanto, é ainda mais severa do que quando essas palavras foram redigidas, em 1995. O universo da comunicação mudou radicalmente. Para que a prestação democrática de contas promovida pela imprensa institucional sobreviva num mundo pós-quarto poder, essa cobrança deve, em si, ser encampada pela rede.

[Continua]

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C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky, do Tow Center for Digital Journalism da Universidade Columbia