Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Assimetrias culturais e o kit sofrimento

Tenho plena consciência de que o tema a ser abordado pode carrear, para a imagem do articulista, alguma carga de antipatia. Todavia, assumo o risco em favor de um pensar cujo propósito tenta, mesmo timidamente, contrapor-se a uma tendência que, segundo parece, se torna um paradigma no comportamento da classe média brasileira no lidar com tragédias do cotidiano, com base num estímulo ditado pelos veículos de comunicação (impressos e eletrônicos).

Ao repassar, na memória, ocorrências irmanadas pela marca da violência urbana, há décadas, proliferantes nas principais capitais brasileiras, algo parece apontar para um roteiro que já não esconde a ‘clicherização’. Sem recorrer a pesquisas, a memória registra a morte da adolescente Gabriela, assassinada no interior de uma estação do metrô (RJ), por conta de uma troca de tiros entre policiais e bandidos. Outro caso, também no RJ, comoveu o Brasil: o menino de seis anos, João Hélio, arrastado por um carro, ao longo de 7 km. Recentemente, o assassinato da menina Isabella.

Os três casos relatados (afora outros não mencionados), resguardado o respeito a todos os vitimados, apresentam algo em comum o que me causa certo desconforto. A procedência do mal-estar tem dois vetores: 1) o comportamento da mídia; 2) a reação dos vitimados. No tocante ao primeiro, é indisfarçável o ímpeto da mídia em explorar a comoção do público receptor. O tratamento jornalístico de tais fatos é visivelmente contaminado por enfoques novelísticos. No que diz respeito ao segundo, fica evidente a incorporação de tensões típicas de como se absorve a emocionalização com a qual se configuram conflitos novelísticos.

‘Modelito’ pronto?

Semelhante avaliação a fez Rosely Sayão no artigo ‘A sociedade do espetáculo’ (Folha de S. Paulo, 06/04), quando se fez presente à missa de sétimo dia na Paróquia Nossa Senhora da Candelária:

‘O padre começa a missa pontualmente, não sem antes exigir que todos da mídia se concentrassem no local reservado. Pelo lado de fora da igreja, cheguei à frente. De lá, vi o altar repleto, com crianças com menos de seis anos que brincavam, corriam, conversavam. Pais as fotografavam com celular.

Passei a sentir um mal-estar. Olhava para o público e não identificava expressões visíveis de dor, sofrimento, indignação, espanto. Foi mais resignação o que vi estampado nos rostos presentes. Alguns choram silenciosamente. Os demais cantam, batem palmas, oram.

A comunhão ocorre enquanto uma jornalista escova os cabelos e ensaia a entrada que fará ao vivo /…/’.

O depoimento da colunista é preciso na captura de algo estranho a habitar o imaginário societário, pautado pela contaminação midiática que parece arrastar todos ao ‘culto do evento’.

O que tento configurar (sujeito a um olhar deformado) é o fato de, em todos os casos, perceber um ‘roteiro’ no qual se dá encadeamento previsível, a exemplo do formato das novelas. Tentarei dar concretude ao que pode parecer algo abstrato e impressionista.

Há um fato de dimensões trágicas. Seqüência 1: a mídia dá plena visibilidade. Seqüência 2: a família vitimada concede entrevistas a todos os veículos (impressos e eletrônicos). Seqüência 3: a mídia relata, passo a passo, as investigações. Seqüência 4: a missa de sétimo dia: ao acontecimento, todos os familiares comparecem com uniforme: malhas que, no peito, estampam a foto e o nome do ser vitimado. Seqüência 5: à saída da missa, entrevistas. Daí para frente, o enredo tem igual desfecho: alguém funda uma ONG em homenagem à vítima. Fico a imaginar quem, na família vitimada, ainda sob intensa dor da perda se preocupa em providenciar malhas estampadas. Encomendar, pagar, buscar, distribuir… Será esse o ‘modelito’ já pronto para tais situações? Por outra, o ‘modelo’ combina com o esgarçamento subjetivo que o sofrimento imprime às vítimas?

Um tipo perverso de ‘compensação’

No mais recente caso, o repórter do programa de TV Aqui e Agora (SBT, edição do último sábado), estava à porta do edifício onde reside a mãe, Ana Carolina, que, no sábado, completava 24 anos. Ela desce as escadas, com semblante levemente suave, devidamente uniformizada (a malha com o nome e a foto da filha), e encontra populares, com cartazes, aos prantos e aos gritos. O repórter aborda a mãe e pergunta-lhe, após saber que já existia uma ONG: ‘Ana, quais são os próximos eventos?’ A mãe, ainda tomada pela dor, responde: ‘Olha, não sei, mas estamos pensando em mais outras coisas /…/.’

A pergunta do repórter não poderia ser mais infeliz e, ao mesmo tempo, reveladora de como a mídia se comporta ante a tragédia que ‘decora’ o cenário da vida. ‘Eventos’? Será a morte, em circunstâncias tão injustas e perversas, ‘produto’ para alimentar imaginário marqueteiro? Por outro lado, a classe média brasileira terá caído na ‘armadilha midiática’ de um certo (errado) jornalismo que não esconde sua filiação ‘publicitária’, capaz de transformar a dor em produto de venda? Estamos, culturalmente, muito mal. Em tempo: a avaliação não tem nada a ver com instância política. Por favor, nenhum leitor queira considerar que a presente crítica tenha a ver com ‘governo Lula’. Não, o buraco é muito mais embaixo. A questão de fundo não diz respeito a políticas culturais e educacionais de ordem governamental. Estas atuam em outros setores. O problema mesmo tem a ver com ‘modelagem midiática’ e ‘sistema educacional’ na dimensão cotidiana. Quais são os ‘agentes midiáticos e educacionais’ que, de modo efetivo, se tornam responsáveis pelo grau de deformação, em função do que noticiam e do que ensinam.

A questão tem suas raízes no conceito de educação e de cultura, as quais, por sua vez, também não se referem a políticas governamentais. Há algo no imaginário populacional brasileiro que está fortemente transtornado por conta de um paradigma midiático para o qual boa parte da população escolarizada presta devoção e, sem perceber, reproduz o modelo em suas vidas. Há uma espécie de ‘kit sofrimento‘ com o qual os seres vitimados pela dor da perda promovem a reprodução automática de uma ‘roteirização’ para a qual, em algum grau, a mídia contribuiu. Esclareça-se que não são apenas malhas estampadas e ONGs. Proliferam, também, associações para famílias traumatizadas por fatos similares. A mídia tende a tratar os seres vitimados como novas ‘celebridades’, sugerindo, para os seres acometidos pelo sofrimento profundo, um tipo perverso de ‘compensação’, ou seja, ‘já que você está sofrendo, então console-se com a ‘popularidade de sua imagem’.

Jornalismo não-investigativo

O dado aponta para outro aspecto: o cidadão brasileiro não está preparado para suportar a dimensão subjetiva de sua própria dor. O que isto pode significar? De onde provém tamanha fragilidade emocional? Que fatores estarão conformando o imaginário brasileiro, de modo a gerar a preferência por ‘estrutura narrativa clicherizada’, somada à ‘padronização estética’, em prejuízo das vivências subjetivas mais profundas e intransferíveis? Por que a dor individualizada nos assusta tanto? O que se verifica, progressivamente, é uma espécie de ‘subjetivação midiatizada’ (ou ‘subjetividade midiatizada’), redundando em ‘fenômeno invertido’.

Dois programas dominicais prometeram ‘revelações esclarecedoras’ quanto ao ‘caso Isabella’: o Fantástico (Globo) e Domingo Espetacular (Record). Bem, nem o primeiro exibe fatos ‘fantásticos’, nem o segundo expõe algo ‘espetacular’. O que une os dois é apenas a exibição de programas aos domingos.

Os dois programas dominicais apenas investiram na estratégia da ‘reativação’, com o intuito de envolver, emocionalmente, o contingente populacional no ‘acontecimento’. Sob o ponto de vista jornalístico, nenhum dos dois foi capaz de oferecer ao receptor nada de especial. Ninguém indagou ao pai ou à madrasta por que há manchas de sangue no carro da família. Ninguém procurou apurar por que um pai, após ver uma filha estendida, seis andares abaixo, num jardim, vai tomar banho no apartamento da irmã.

O sentido de democracia

Como pai, tento imaginar-me em tal situação. Jamais, elegeria, como prioridade, tomar banho. Enfim, o tal ‘jornalismo investigativo’ é, no mínimo, risível (Globo ou Record). O que, a rigor, a modalidade televisiva promove é uma ‘recepção excitada’ cujo efeito consiste em vivenciar as tragédias do cotidiano na mesma sintonia com a qual o receptor acompanha as ‘tensões ficcionais’, codificadas pelo ‘formato semiótico’ que alimenta a ‘estética novelística’. O problema é que, na reiteração de coberturas dessa ordem, o receptor brasileiro vai turvando, progressivamente, a relação entre ‘verossímil’, ‘verdade’, ‘lógica’ e ‘realidade’. A conseqüência quanto à competência cognitivo-perceptiva não é pouca.

Paralelamente, virando a câmera para outro quadro, permanece o embate entre ciência e religião: a CNBB inibe o poder judiciário quanto ao veto para a liberação de tratamentos à base de ‘células-tronco embrionárias’. Diz-se que o Estado brasileiro é laico. Todavia, os fatos não ratificam essa avaliação. Em Estado verdadeiramente laico, é compreensível que doentes, devotos de crença ‘x’, tenham seu direito preservado e doentes, devotos de crença ‘y’ (ou de nenhuma crença), possam decidir sobre o destino de suas vidas (e de suas mortes). Não é o que os fatos atestam. A mídia, entretanto, em relação a essa questão, não se empenha em contemplar as diferenças. Ao contrário, a mídia trata a questão com timidez que beira a subserviência. Que tal injetar-se mais ousadia na abordagem do tema? Numa avaliação de quem tenta cultivar um olhar criticamente distanciado, sou levado a crer que a maior parte da mídia e expressivo contingente do imaginário social da classe média brasileira estão aquém da astúcia com a qual o governo federal conduz os destinos da nação.

Outros temas polêmicos acusam iguais distorções. Em matéria de primeira página, a Folha de S.Paulo (06/04) estampava resultado da pesquisa Datafolha, concluída em março: ‘Cai apoio à pena de morte; 68% rejeitam aborto’. Que ótima, a primeira! Que lástima, a segunda! Os dados apontam para uma espécie de instabilidade ética. O grupo que repele o direito de o Estado matar em nome da justiça é o mesmo que não reconhece o direito de a própria mulher decidir sobre o uso de seu corpo e do destino a ser dado à sua vida. 45% também são contrários à união civil entre pessoas do mesmo sexo. Não se trata de princípio em favor à preservação da vida. Pena de morte e aborto implicam situações distintas. A pena de morte é uma oficialização coletiva. O aborto é uma escolha individual que é motivada por histórias pessoais específicas. A conclusão é a de que ainda somos pouco auto-determinados. Ainda não aprendemos, em profundidade, o sentido de democracia, de respeito às diferenças e minorias. A sociedade precisa compreender que o corpo pertence a quem o tem. Continuemos caminhando.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da Facha, Rio de Janeiro