Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bento 16 e a pedofilia

A revista alemã Der Spiegel pediu nada mais nada menos do que a abdicação do papa Bento 16. Motivo: suposta omissão em escabroso caso de pedofilia. O padre americano Lawrence Murphy admitiu que abusou de cerca de 200 crianças surdas da escola St. John´s para surdos no Wisconsin (norte), nos EUA, entre 1950 e 1974.

Arthur Budzinski, hoje com 62 anos, informou ao arcebispo de Milwaukee, William Cousins, e a outras autoridades sobre os fatos em 1974, mas Cousins respondeu com gritos, o que fez com que saísse ‘da reunião chorando’, contou. O então cardeal de Milwaukee, Rembert Weakland, e outro bispo do Wisconsin escreveram ‘diretamente ao então cardeal Joseph Raztinger’, hoje Bento 16, que não respondeu à carta, informou o New York Times.

O teólogo Hans Küng foi duro nas críticas ao sumo pontífice, como duro sempre soube ser nas réplicas às perseguições sofridas quando a cúria investia contra ele em décadas anteriores. Küng é o Leonardo Boff da Alemanha, o Joseph Comblin da Bélgica, o Ernesto Cardenal da Nicarágua, todos padres que se tornaram alvo das inquisições que na cúria romana eram patrocinadas pelo então cardeal Joseph Ratiznger, nome civil do atual papa, que dali comandava a poderosa Congregação para a Doutrina da Fé.

Verbete ‘mulher’ remetia a prostituta

Quando ainda cardeal, por ser tão cioso das defesas da fé, perseguiu tanto o teólogo Leonardo Boff, que levou o papa João Paulo II a condenar e pressionar o frade franciscano de tal modo que ele não teve outro jeito senão abandonar o sacerdócio e a ordem a que pertencia, mesmo com todo o apoio de dom Paulo Evaristo Arns. E João Paulo II fez mais: repreendeu publicamente Ernesto Cardenal durante a visita que fez à Nicarágua, diante de gigantesca multidão que recebeu e vaiou o papa.

Por que a pedofilia não vinha merecendo os cuidados de Bento 16?

A pedofilia é muito antiga, mas é recente na língua portuguesa. Aparece apenas nos finais do século 19, no Novo Diccionario da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo.

Não estranhem o viés deste comentário. Para um homem de Letras, o berço das palavras pode revelar indícios percucientes de problemas que, por sua própria natureza, como é o caso da pedofilia, ensejam uma série de artifícios de ocultamento e de disfarces.

Explico melhor: faz poucos anos que o dicionário Aurélio, um dos mais consultados do Brasil, dava, no verbete ‘mulher’, equivalências de significado que remetiam mais de dez vezes a prostituta. Depois de diversas teses defendidas sobre o assunto (de uma delas fui membro da banca examinadora, na USP), o próprio Aurélio mudou a redação do verbete. Deixei registrada num conto intitulado ‘Mulheres Abandonadas’, no livro Cenas Indecorosas (1976), a minha inconformidade. Em antigas edições do Aurélio, o leitor pode confirmar o que estou afirmando.

Silêncio como recurso de covardia

Por que a pedofilia demorou tanto a entrar para o dicionário? Talvez pela mesma razão invocada pelo autor de nosso primeiro dicionário, o padre Rafael Bluteau, de excluir a palavra ‘caga-lume’ de nossa língua escrita, substituindo-a por ‘vaga-lume’. Houve até um concurso para fabricar palavra substituta. De autoria feminina, ganhou ‘pirilampo’. Mas a dinâmica da língua portuguesa tem suas próprias regras e hoje as três estão nos dicionários, só que pirilampo e caga-lume aplicam-se apenas ao inseto, enquanto vaga-lume designa também o lanterninha dos cinemas. Há como que um trauma cercando a Igreja e as sexualidades, cujo contexto tem como referência solar o celibato imposto a padres e freiras.

Aqueles que em tudo veem conspiração, não têm dúvidas de que há uma campanha da mídia contra a igreja. Outros, que apreciam a Justiça, a conversa clara, o trato justo, a lei igual para todos, veem mais coisas no espantoso rol de denúncias que dão como certa e comprovada a atuação de diversos padres pedófilos, no Brasil e no exterior.

Ao leitor leigo – leitores são leigos, como leigos devem ser os poderes do Estado – está parecendo que Bento 16, ao menos quando cardeal, utilizava os poderes que detinha para punir desafetos, inclusive recorrendo a calúnias, delações, interpretações viciadas de textos etc., mas quando o assunto era pedofilia, sem que ainda se saiba por quê, silenciava.

E o silêncio, que é de prata, em certas situações, é intolerável quando recurso de covardia ou manipulação que vitima inocentes, como foi o caso.

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Escritor, professor da Universidade Estácio de Sá e doutor em Letras pela USP; seus livros mais recentes são o romance Goethe e Barrabás e De onde vêm as palavras