Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Blog do Políbio Braga

MÍDIA & POLÍTICA
Políbio Braga

‘Lula fez muito pior do que os generais da ditadura brasileira.’

‘Agentes da polícia brasileira prendem em solo brasileiro dissidentes políticos de uma ditadura amiga e rapidamente – sem burocracia, sem alarde, sem negociações diplomáticas, sem a cobertura da imprensa – devolvem os rebeldes aos braços armados de seus compatriotas, caçadores e algozes.

Foi o que aconteceu, no início do mês, com os boxeadores cubanos Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, que desertaram da delegação de Cuba no Pan do Rio-2007, pouco antes do início dos jogos, e foram presos e repatriados para Havana, onde o comandante Fidel Castro lhes concedeu a medalha de chumbo de ‘traidores’, banidos para sempre do pugilismo.

Mas algo semelhante ocorreu aqui mesmo, em Porto Alegre, quase três décadas atrás: o seqüestro dos uruguaios Universindo Díaz, Lílian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca. Militante da oposição de esquerda à ditadura dos generais de Montevidéu, o casal uruguaio era o canal clandestino que supria organismos da ONU, na Europa, de dados e relatos sobre as torturas e a repressão política no seu país. Um comando militar uruguaio, com autorização do Exército brasileiro e conluio do DOPS gaúcho, cruzou clandestinamente a fronteira do Rio Grande do Sul, seqüestrou o casal e as duas crianças e voltou com eles ao Uruguai. Sequioso por mais presas, voltou a Porto Alegre com Lílian, para uma emboscada que poderia pescar mais dissidentes. Em vez disso, toparam com dois jornalistas brasileiros que, avisados por um telefonema anônimo, surpreenderam em flagrante delito os seqüestradores e transformaram o seqüestro num escândalo e num fiasco internacional – a única incursão da Operação Condor, a transnacional terrorista dos regimes militares do Cone Sul, onde as vítimas sobreviveram para contar a história.

O Editor Políbio Braga localizou em Brasília o jornalista Luiz Cláudio Cunha que, com o fotógrafo João Baptista Scalco, testemunhou o seqüestro de Porto Alegre, onde então chefiava a Sucursal da revista VEJA. Ao longo de um ano de persistente investigação, Cunha e seus colegas jornalistas confrontaram as mentiras insistentes dos generais de plantão em Brasília e Montevidéu e acabaram provando a participação brasileira no caso, levando ao banco dos réus o delegado do DOPS Pedro Seelig, chefe brasileiro do seqüestro, e dois de seus capangas, Didi Pedalada e João Augusto da Rosa. Pelo conjunto das reportagens, VEJA ganhou em 1979 o Prêmio Esso de Jornalismo, o mais importante do país. A seguir, a entrevista de Cunha:

PERGUNTA – O Brasil entregou de bandeja os uruguaios em Porto Alegre e os cubanos no Rio. É possível fazer um paralelo entre os dois casos?

CUNHA – Não, acho que não. O caso dos cubanos é muito pior. O Governo Lula conseguiu fazer pior do que os generais da ditadura brasileira. Em 1978, os regimes de Brasília e Montevidéu eram companheiros, camaradas, irmãos siameses. A ditadura uruguaia tinha cinco anos de vida e a brasileira, 14. Ambos integravam o fechado clube da Operação Condor, criada por Pinochet em novembro de 1975, em Santiago, numa reunião secreta firmada pelos arapongas de cinco países. O sexto país, o Brasil, representado por oficiais do SNI de Figueiredo, foi mais esperto: na condição de simples observador, não assinou a ata. A solidariedade de caserna entre os regimes militares do Brasil e Uruguai tornava quase natural a troca de gentilezas, por cima da fronteira e por baixo dos panos, no sequestro dos uruguaios. No caso dos cubanos, agora, temos um país plenamente democrático, como o Brasil, e um regime fundamentalmente ditatorial, como Cuba. Como imaginar que um faça favores ao outro, à custa dos direitos individuais dos pugilistas? A única semelhança entre um governo e outro é que ambos, agora, suscitam mais desencanto do que esperança. Quando o comandante Fidel e seus companheiros barbudos adentraram Sierra Maestra, em 1957, para a luta que derrubaria o ditador Batista dois anos depois, embalou os sonhos românticos de toda uma geração que apoiava a luta pela liberdade no mundo. Exatamente meio século depois, o comandante de Cuba é o mesmo Fidel. É lamentável que o governo companheiro e camarada de Lula não tenha posto, agora, as barbas de molho antes de entregar apressadamente os cubanos.

PERGUNTA – Qual foi o envolvimento brasileiro no sequestro de Universindo, Lílian e seus dois filhos?

CUNHA – Total. O coronel Calixto de Armas, chefe do Departamento 2 do Estado-Maior, braço secreto do Exército uruguaio, consultou previamente o general Coelho Neto, chefe do Centro de Informação do Exército (CIEx), em Brasília. No contexto da Operação Condor, que tinha o aval do SNI, sócio-fundador, Montevidéu mandou a Porto Alegre, via Chuí, um comando clandestino integrado pelo capitão Eduardo Ferro, chefe da seção de operações da Companhia de Contra-Informações, e pelo capitão Glauco Yanonne, chefe da seção administrativa. Na capital gaúcha foram recepcionados pelo delegado Pedro Seelig, chefe do setor de investigações do DOPS, conhecido entre os militares como o ‘Fleury do sul’, por sua eficácia no combate à luta armada no Estado. Ambos comandaram a sessão de torturas a que submeteram o casal nas celas do DOPS, no prédio da Secretaria de Segurança, na avenida Ipiranga. O próprio Universindo me contou, em 1993, numa edição especial do seqüestro publicada em ZERO HORA e exibida na RBS-TV: ‘Fui levado a uma peça com uma janela e uma mesa no centro, para ser interrogado por Seelig e Yannone. E ali fui muito golpeado, durante horas, pelos policiais brasileiros e por Yannone. Estava sem capuz e, a cada golpe, me tiravam a roupa. Só me deixaram de cuecas. Me golpearam tanto que Yannone, num certo momento, sentou-se no chão e passou a me golpear com o punho. Como o punho também doía, após um certo tempo, Yannone tirou o mocassim e passou a me bater com o salto do sapato’. Depois, em duas Brasília do DOPS, dirigidos por policiais brasileiros, os militares uruguaios e os seqüestrados foram levados às pressas para o Uruguai, via Chuí. Universindo e as crianças mudaram para carros do Exército uruguaio, rumo a Montevidéu, e Lílian voltou com os policiais brasileiros e os militares uruguaios a Porto Alegre, para ver se alguém mais caía na rede. Só caíram os jornalistas da VEJA, que forçaram o desmonte apressado da operação clandestina.

PERGUNTA – Em algum momento o Brasil se arrependeu de sua cumplicidade no seqüestro?

CUNHA – Pelo contrário. Trabalhou até o fim para abafar a verdade. Era o final do Governo Geisel, que se preparava para passar o mando ao general do rodízio, Figueiredo, que três anos antes tinha ajudado a fundar a Operação Condor. A denúncia do seqüestro na imprensa virou um escândalo internacional, que constrangia o general que saía e o que entrava. Tanto que Figueiredo chegou a mandar seu braço-direito e futuro sucessor no SNI, general Octávio Medeiros, duas vezes a Porto Alegre, em companhia do diretor da Polícia Federal, cel. Moacyr Coelho, para reuniões secretas no Estado-Maior do QG do III Exército, na rua da Praia. Tentaram montar uma farsa para justificar uma saída voluntária dos uruguaios, supostamente a bordo de um ônibus em Bagé. A imprensa, atenta, descobriu que o cobrador que sustentava a fantasia respondia a inquérito na Federal e era vulnerável à chantagem. A farsa desmoronou.

PERGUNTA – Mas, publicamente, o que diziam as autoridades brasileiras?

CUNHA – Só bobagens, que a imprensa não engolia. Geisel tinha, também, a mania do Lula de marcar hora e data para resolver a crise. Em janeiro de 1979, um mês e meio após o seqüestro, o general bradava: ‘Quero que o caso seja resolvido agora’. O notório Armando Falcão, ministro da Justiça, uma semana após o crime, despistava: ‘Mandei a PF apurar tudo a respeito’. O chanceler Azeredo da Silveira, que comandava os barbudinhos de esquerda do Itamaraty, também derrapou: ‘Não podemos partir do princípio de que houve conivência brasileira’. O deputado gaúcho Jarbas Lima, da Arena, partido que sustentava a ditadura, escreveu candidamente no relatório final da CPI que investigou o seqüestro na Assembléia Legislativa: ‘Não houve prova de delito; logo, não há autoria’. O general Samuel Alves Correa, comandante do III Exército, exibia a mesma candura: ‘Sequestro? Que seqüestro?’

PERGUNTA – O governador na época do seqüestro era Synval Guazzelli, da Arena. Como ele se comportou?

CUNHA – Guazzelli tinha tudo para se sair bem. Ele, ao lado do paulista Paulo Egydio e do mineiro Aureliano Chaves, formava o trio de governadores mais poderosos na sustentação da política de abertura que a dupla Geisel-Golbery mantinha contra as manobras da linha-dura militar. Sua primeira frase foi boa: ‘A solução deste caso é uma questão de honra’, disse, duas semanas depois do seqüestro. Mas ele acabou afinando no final de dezembro, depois de uma inesperada visita do general Samuel, o incrédulo, ao Palácio Piratini, horas depois de Didi Pedalada ser reconhecido por mim e Scalco como um dos seqüestradores. ‘Governador, o sr. não percebeu que a Revolução de 64 não deve contas a ninguém?’, perguntou na lata o general, na conversa que deixou Guazzelli pálido. A partir daí, Guazzelli perdeu a embocadura, no momento decisivo em que poderia confrontar a repressão com o apoio da opinião pública e da imprensa. Foi uma pena, porque Guazzeli jogava na luz, não na treva, como era o caso de seu sucessor como governador indireto, o arenista Amaral de Souza, um direitista com forte ligação na área militar. Mas existem governadores e governadores. Pedro Simon, por exemplo, entrou na história como o governador do MDB velho de guerra que reconheceu o seqüestro da ditadura e assumiu a responsabilidade do Estado, indenizando os uruguaios pela violência cometida em solo gaúcho. Um ano depois, o próprio governo do Uruguai, já então uma democracia, também indenizou Lílian e Universindo.

PERGUNTA – O Brasil deveria, então, ter aprendido algo com este episódio de Porto Alegre?

CUNHA – O Lula pode dizer, como sempre, que não sabia de nada. Mas tinha obrigação de saber. Nesta época, 1978, ele era um ativo e consciente líder sindical no ABC, santuário do operariado mais engajado e militante do país, que confrontava o regime militar e lançava as bases de um inédito partido operário de nítida coloração ideológica, o PT, fundado dois anos depois do seqüestro. Lula, já naquela época, não devia gostar de jornais, pois o seqüestro foi manchete e tema recorrente da grande imprensa no período 1978-80. Agora, de forma misteriosa, deixou o caso dos cubanos a cargo de agentes e delegados de polícia de segundo escalão, em vez de usar os devidos canais diplomáticos para resolver a questão. Dois campeões desertam, antes dos jogos, assinam no consulado alemão um contrato de três anos para lutar profissionalmente na Europa – e subitamente desistem. Mostram-se arrependidos e saudosos de casa. As autoridades do governo, em vez de se preocuparem com a opinião pública brasileira e com a demorada, mas prudente, burocracia diplomática que contempla os cuidados humanitários e os preceitos de direitos humanos, resolveu fazer tudo misteriosamente rápido, ligeiro, apressado. Como gostam os cubanos, resolveram tudo com a polícia, quando poderiam ter resolvido com os diplomatas, como mereciam os brasileiros. O Governo de Lula exibiu uma inesperada face de subserviência que não se espera de uma democracia como a do Brasil e de um presidente com a biografia de Lula. O governo e o Congresso brasileiro têm a obrigação de exigir explicações de Havana e apurar com rigor a suspeita de que os pugilistas aceitaram tudo, sem lutar, pelas supostas ameaças feitas pelo regime cubano a seus familiares na ilha. Depois do apagão aéreo, Lula padece de um apagão moral. Mais um.’

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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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Veja

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