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Caso El Chapo: a tênue divisória entre jornalismo e propaganda
A imprensa deveria ou não publicar a entrevista e o vídeo de Joaquin Guzmán Loera, o chefe do cartel do narcotráfico em Sinaloa, México? A resposta não é simples, porque se assim fosse, não valeria a pena abordá-la aqui. A complexidade da resposta é o combustível para a polêmica surgida depois que a revista Rolling Stone publicou uma reportagem escrita pelo ator Sean Penn, semanas após o narcotraficante, também conhecido como El Chapo (Anão), ter sido recapturado pela marinha mexicana, após uma fuga espetacular de uma penitenciária de segurança máxima também no México. A polêmica mostra também como está cada dia mais complicado avaliar os componentes éticos de textos publicados pela imprensa.
O ator Sean Penn, uma personalidade controvertida no mundo do cinema em Hollywood, procurou a direção da revista Rolling Stone em meados do ano passado com uma proposta de entrevista com El Chapo. Além da entrevista, o ator teria interesse em fazer um filme sobre o narcotraficante mexicano. O jornal The New York Times detalhou as negociações entre Penn e Chapo numa reportagem publicada em 10 de janeiro. Mais para o fim do ano, Sean Penn se encontrou com Guzmán em Sinaloa, numa conversa assistida também pela badalada atriz Kate del Castillo, intérprete de novelas na TV mexicana.
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Foto Rolling Stone
Ainda não se sabe por que, mas o acordo para o filme terminou não acontecendo. No entanto, o conteúdo da conversa entre o ator e o narcotraficante acabou gerando uma reportagem de 10 mil palavras, publicada na versão impressa e no site da Rolling Stone, no dia 11 de janeiro, em meio a um intenso bate boca globalizado.
Argumentos pró e contra
Os argumentos se dividem em pró e contra a publicação do material. Comecemos pela condenação ao protagonismo de Sean Penn e pela ousadia da RollingStone. A argumentação é de que a reportagem e o vídeo contribuem para glorificar a figura de Guzmán e com isto debilitar o combate aos cartéis do narcotráfico. O empenho em exorcizar a imagem de El Chapo levou o jornal espanhol El País a publicar o texto com o seguinte título : “Maldito sejas, Sean Penn”. Em geral a imprensa mundial seguiu a linha da crítica à Rolling Stone e à atitude de Sean Penn, considerada oportunista.
Já os defensores da publicação da reportagem e do vídeo alegam que Joaquin Guzmán se tornou uma figura pública graças justamente à imprensa e aos governos por conta da ampla cobertura dada à repressão ao cartel de Sinaloa. Como figura pública ele inevitavelmente atraiu também a curiosidade pública criando as condições para que a imprensa passasse a vasculhar sua vida privada. O decano da escola de jornalismo da Universidade de Columbia, Steve Coll, disse que “obter uma entrevista exclusiva, mesmo com um criminoso procurado pela polícia, é um ato legítimo de jornalismo, não importa quem seja o repórter”.
Outro argumento levantado pelos que defendem a publicação da matéria “El Chapo habla”, é o de que Guzmán não é o primeiro chefe de um cartel do narcotráfico ou líder de organização terrorista a atrair a curiosidade da imprensa. O também narcotraficante Pablo Escobar, colombiano, morto em dezembro de 1993, até hoje serve de personagem central para reportagens, seriados na TV e documentários explorando sua imagem pública e vida privada. Tudo isto sem grandes questionamentos éticos porque se trata de empreendimentos para ganhar dinheiro. Sean Penn evidentemente também estava interessado em ganhar dinheiro às custas de Guzmán e a Rolling Stone conseguiu aumentar sua tiragem em quase 50%.
O caso El Chapo é mais um a engrossar a lista de problemas que a imprensa vem enfrentando para delimitar o espaço jornalístico numa arena informativa onde fica cada vez mais difícil distinguir notícia pura do marketing político e das estratégias de promoção pessoal ou institucional, conhecidas pela expressão inglesa advocacy.
Chris Eliot, colunista do jornal britânico The Guardian, admitiu num texto que cada vez que o Estado Islâmico divulga um vídeo na internet, “os jornalistas são dramaticamente relembrados do fato de que estão sendo convidados para uma dança macabra”. O artigo mostra as enormes dificuldades dos editores em separar os fatos da mera propaganda nos vídeos divulgados pelo grupo terrorista. O The Guardian, pressionado por leitores, resolveu levar a discussão para todos os membros de sua redação na tentativa de criar normas editoriais capazes de facilitar a tomada de decisões em situações onde é difícil diferenciar notícia e marketing político.
No México, o La Jornada, publicou um editorial em que lamenta a notoriedade alcançada pela reportagem da Rolling Stone num país onde dezenas de jornalistas já foram mortos por narcotraficantes, mas afirma que “é necessário recordar que a moralização dos assuntos relacionados ao narcotrafico deveria começar pelas próprias instituições de segurança ” no México. O editorial do La Jornada diz que o carro onde estava Sean Penn passou sem problemas por várias barreiras policiais em Sinaloa, sem ser parado.
Casos como o de El Chapo, ou os vídeos do Estado Islâmico, situam-se nesta zona cinzenta entre o jornalismo e a propaganda, obrigando os profissionais a analisarem caso a caso. Isto implica análises e investigações cada vez mais complexas que levam a um segundo dilema: retardar a publicação de uma notícia até uma checagem adequada, perdendo para concorrentes menos preocupados com a ética e exatidão, ou ceder às exigências da guerra por audiência e publicar pensando apenas nos indicadores de audiência?