Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Celso Furtado e a história das mentalidades

Nenhum país com a complexidade de uma nação como o Brasil pode ser compreendido na ausência de uma história das mentalidades. E poucas vezes o que se pode chamar de substrato mental de uma elite arcaica foi tão exposto numa primeira página de jornal como a morte de Celso Furtado, retratada na edição de domingo de O Estado de S. Paulo.

Que a direção do Estadão evoque acontecimentos da Primeira Guerra Mundial na tentativa de compreender o funcionamento da máquina do mundo neste início de século 21 pode, até certo ponto, ser entendido como um fenômeno de anacronismo intelectual. Um paralelo à reação de Clavius, encarregado pelo papa Gregório XIII da reforma do calendário Juliano, quando foi informado por Galileu das irregularidades da superfície da Lua. Clavius alegou que Galileu estava iludido pelo seu perspicillum e, sem abrir mão da ortodoxia aristotélica, reafirmou que, na realidade, a superfície da Lua estava coberta por um material translúcido que fazia dela uma estrutura tão perfeitamente lisa como uma enorme bola de bilhar.

O final dessa história todo o planeta conhece, apesar de Galileu, sob ameaça de tortura, velho, doente e ironicamente ameaçado pela cegueira, ter sido obrigado a abjurar. Ele havia visto o que nenhum outro homem enxergara até então: não apenas a superfície enrugada da Lua, mas manchas na superfície do Sol, ‘estrelas’ em movimento na órbita de Júpiter e a mancha leitosa da Via Láctea repleta de estrelas, uma infinidade de outros sóis.

A chamada de pé de página para a morte do mais brilhante dos economistas brasileiros, um dos intelectuais de maior envergadura nestes pouco mais de 500 anos de história nacional e, certamente, o mais universal dos intelectuais brasileiros deste século, no entanto, é demonstração de incapacidade quase patológica de acompanhar com o mínimo de isenção ideológica a história deste país.

Fosse um dessas dezenas de economistas medíocres que serviram o poder despótico no passado recente, sem nenhum mérito quanto à possibilidade de se criar o novo e assim construir o bem-estar social e, seguramente, o mais que centenário O Estado de S. Paulo abriria espaço para apregoar seus pretensos feitos. Para uma inteligência comprometida com a sorte deste país, imune às pequenas vaidades típicas de uma sociedade provinciana o Estadão concedeu, literalmente, um pé de página.

No espaço negado à partida de Celso Furtado o jornal estampou uma manchete panfletária: ‘BNDES abandona a ideologia’. Num momento em que a lógica tende a firmar-se mais pela sumariedade de expressão que pela coerência intrínseca, ‘ideológico’ é sinônimo de todo pensamento comprometido com a razão e mínimo de bem-estar social. As indigências intelectuais, capituladas frente ao mercantilismo mais primitivo, não deixam espaço para a racionalidade e o irrelevante toma o lugar do essencial.

Numa época em que a tecnologia não havia atingido os padrões atuais, interpretações como essa não ficariam tão expostas. Os donos de jornais eram como que proprietários de feudos intelectuais, fazendo produzir e publicando as interpretações de fatos que melhor atinassem com seus interesses enquanto classes sociais. Os editorialistas dispunham de significativo poder de convencimento no ofício de interpretar os mais diferentes fenômenos de dimensão social.

Tudo isso começou a mudar e está se transformando rápido e radicalmente. A Internet é uma das expressões mais consistentes dos tempos novos e a evidência mais clara do risco de destronamento desses feudos remanescentes do primeiro legado de Gutenberg. A crise da imprensa (e o tratamento dado pelo Estado de S. Paulo à morte de Celso Furtado é apenas mais uma evidência disso) é de natureza estrutural. De alguma forma darwiniana, no sentido que as espécies que não se adaptaram às transformações do ambiente ao longo da história acabaram extintas. Foi o que aconteceu com os dinossauros, após um reinado de 140 milhões de anos. O asteróide do cretáceo foi o golpe final que pôs fim à existência dos brutamontes.

Folha: acuidade intelectual

Nem mesmo a Folha de S. Paulo, histérica e tão autoritária quanto O Estado de S. Paulo em relação à defesa de pontos de vista que toma por indiscutíveis, foi tão restritiva. Ao contrário, a Folha destacou a morte de Celso Furtado no alto da primeira página demonstrando acuidade intelectual que faltou ao Estadão.

Na edição de segunda-feira (22/11), dando-se conta de seu ato falho, o Estadão tentou reparar. Foi, como diz a fala popular, pior a emenda que o soneto. No esforço de parecer comedida, a edição cozinhou um seminário de 23 anos atrás, acompanhado de uma charge sintomática. Teratologia, a expressão que o atual diretor do jornal parece recusar na ilustração, não é outra coisa senão o estudo de monstruosidades.

Ironicamente, o próprio Celso Furtado havia exposto esse comportamento anacrônico em seu clássico Formação Econômica do Brasil, publicado originalmente em 1959 e que desde então teve por volta de 30 edições. Em menos de 300 páginas estão poderosamente compactados quase cinco séculos de história com um poder de síntese e, simultaneamente, abrangência crítica que uns poucos, entre eles Sérgio Buarque de Hollanda e José Bonifácio de Andrada e Silva, foram capazes.

Em outras palavras, o Brasil resulta da mentalidade de uma elite arcaica desde os primeiros tempos. Já com o sistema açucareiro montado nas Antilhas e que, menos de uma década após a expulsão dos holandeses do Nordeste, ameaçava a posição brasileira antes monopolista. A derrota brasileira foi conseqüência de inovação tecnológica feita pelos holandeses nas Antilhas e que não chegou a prescindir da mão-de-obra escrava.

Celso Furtado, crítico sóbrio e por isso mesmo insuspeito, da administração principesca de Fernando Henrique Cardoso animou-se com as possibilidades de um não-sinhozinho, representado pelo sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. Demonstrou, no mesmo estilo elegante, sua frustração com os rumos atuais do poder central em depoimentos recentes, entre eles o apoio ao amigo e discípulo Carlos Lessa, defenestrado às vésperas de sua morte da direção do BNDES.

Em relação aos acontecimentos do presente, levando-se em conta o tempo histórico, dois de seus depoimentos parecem sintetizar suas expectativas. Em junho de 2000 Furtado expressou seu inconformismo ao dizer que ‘primeiro começaram com ‘país em desenvolvimento’. Inventaram, inventaram e inventaram e o Brasil terminou como ‘emergente’. A verdade é que, em todos esses 40 anos que se discutiu, nunca se deixou de reconhecer a diferença, a singularidade do Brasil, que é exatamente a do subdesenvolvimento, sistema econômico que nasce dependente e se desenvolve dependente. O Brasil é subdesenvolvido, o resto é eufemismo’.

Em novembro ainda de 2000, declarou que ‘muito cedo, no Nordeste, descobri como o mundo é absurdo, violento, injusto. Muita gente a meu redor falava de padre Cícero, Canudos. Fui tomado por perplexidades […] Era necessário usar o conhecimento para se preparar para a luta. Eu acreditava que está à altura do homem reconstruir o mundo’.

Como se vê, em Celso Furtado, como todo homem de dimensão, há um misto de indignação e esperança. Revolta pela condição degradante a que o homem está submetido, especialmente pela consciência de que é capaz, por seus próprios meios, fazendo uso da inteligência e criatividade estimuladas pela educação, forjar a própria sorte.

As restrições ideológicas primitivas, em uma sociedade como a brasileira, estão no que Marc Bloch e Lucien Febvre chamaram de história das mentalidades. E, pelo fato de as estruturas mentais serem as que mais lentamente evoluem, em comparação com o ritmo frenético da produção tecnológica, Fernand Braudel chamou-as de ‘prisões de longa duração’.

No Brasil, de muitas maneiras, estamos confinados a essas ‘prisões de longa duração’. De seu interior vemos cenas típicas do encarceramento de homens: violência social crescente e aparentemente incontrolável, desajustes psíquicos produzidos por sofrimentos que podem e devem ser evitados. Bandos salteadores nas praias, em empresas privadas que se socorrem do recurso público e no próprio poder público, resultado da insensibilidade secular de uma elite atrasada. Comprometimento da esperança de que um dia possamos atingir a dignidade necessária, o que nos leva de volta a uma outra fala, de Celso Furtado, de setembro de 2003: ‘Ninguém tem dúvida de que é preciso desconcentrar a renda, mas ninguém faz isso. O problema é muito mais de um imobilismo crônico de uma sociedade que não tem vontade de mudar’.

Conheci Celso Furtado pessoalmente logo após seu retorno ao Brasil, ao final de um exílio forçado pela república dos generais. Éramos, quase todos, num congresso de economistas, jovens repórteres responsáveis pela cobertura. Por influência direta dele, na leitura de obras como Formação Econômica e Análise do Modelo Brasileiro, eu estudava economia na Faculdade de Economia e Administração da USP, uma escola que, afinal, estava dominada pelos ‘Delfim’s boys’.

Recordo-me da expressão serena com que nos recebeu e da exposição clara das idéias, sem a afetação característica dos economistas da época, elevados à condição de magos pela farsa que os militares difundiram como ‘milagre econômico’.

Temi pelo dia em que, inevitavelmente, iríamos perdê-lo. Foi no sábado, 20 de novembro. No domingo lamentei não apenas sua perda, mas a maneira indigente como foi tratado pelo jornal O Estado de S. Paulo.