Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Censura prévia’ no IBGE: desgraça pouca é bobagem

Receita intragável (para não dizer outra coisa): bata até cansar uma medida (em sentido literal) do governo cheia de idiotices e uma medida (metafórica) também cheia de jornalismo faccioso – e sirva pelando.

A medida idiota é a portaria assinada pelo ministro interino do Planejamento, Nelson Machado, que manda o IBGE encaminhar ao governo, pelo menos 48 horas antes de tornar públicas, as suas pesquisas chamadas estruturais, como a Síntese de Indicadores Sociais, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e a Pesquisa de Orçamentos Familiares.

Segundo o ex-presidente do IBGE entre 1994 e 1998, Simon Schwartzman, citado pelo Globo, no seu tempo essas pesquisas já eram enviadas dois dias antes, ‘pratica usada em qualquer parte do mundo’.

Segundo O Estado de S.Paulo, citando o IBGE, no tempo de Fernando Henrique o governo exigia conhecimento prévio de duas horas não daquelas, mas das pesquisas chamadas conjunturais, como a Pesquisa Mensal de Emprego e o Índice de Preços ao Consumidor Amplo. Nesses casos, em 2003, o governo Lula aumentou o prazo para um dia – e acaba de aumentar para dois, nos demais.

Até aí, vá lá. Nada mais natural que o governo queira ter tempo, um dia ou um par de dias, a fim de se preparar para dar a sua versão do significado dos dados novos que dele a imprensa inevitavelmente cobrará.

Quem sabe, assim o presidente Lula não teria cometido a batatada de desqualificar as conclusões da mais recente Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), segundo a qual há mais obesos do que famélicos na população brasileira. Deixando claro que não sabia o que dizia, Lula se saiu com a teoria da subnotificação (o termo é deste leitor, naturalmente): como as pessoas têm vergonha de confessar que passam fome, as estatísticas não retratam a verdade verdadeira. Ocorre que a POF não pergunta: vê e pesa, na casa dos pesquisados, o que eles comem – e não num dia só.

Controlar, centralizar, enquadrar

Seria, repita-se, o caso de deixar para lá. Mas, com a sua mão pesada de costume, a obsessão de controlar, a fome de centralizar e a sede de enquadrar que permitem aos seus adversários, na política e na mídia, dizer que quase tudo o que faz é ‘stalinista’ – menos, é claro, a política econômica –, o governo do PT achou que não podia passar sem ‘disciplinar os procedimentos’ do IBGE no Diário Oficial.

E ali está que, no dia certo (a contar das tais 48 horas), a divulgação dos resultados das pesquisas para a imprensa e ‘disponibilização’ pela internet terá de ser ‘às 10 horas’. A esse rigor de bedel de internato – Freud diria que se trata de um retentivo anal –, a portaria acrescenta uma ameaça insultuosa e uma limitação imbecil.

A ameaça se dirige aos funcionários do IBGE. ‘Os servidores que tenham conhecimento prévio dos resultados’, se lê na peça vexaminosa, ‘deverão manter rigoroso sigilo, sob pena de responsabilidade’ na lei tal de data qual. ‘É uma afronta aos servidores do IBGE’, reagiu outro ex-presidente da fundação, Sérgio Besserman (1998-2002). ‘Na história do instituto nunca houve um vazamento de dados.’

A limitação atinge a imprensa – e, por extensão, a sociedade. Pois os novos procedimentos acabam com a praxe de passar o material para a mídia, com embargo de um punhado de dias para publicação, a fim de que os jornalistas tenham oportunidade de digerir a numeralha, ouvir o pessoal do IBGE, além de acadêmicos, especialistas e tutti quanti, e ainda apurar histórias da vida real, as tais matérias humanas que servem para cortar a insipidez das reportagens montadas em estatísticas.

Para citar apenas um de uma infinidade de exemplos dessa prática que no exterior é quase tão velha como Gutenberg, o Pnud (sigla em inglês para Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) faz exatamente isso, com o mesmíssimo propósito, a cada edição do Índice de Desenvolvimento Humano, decerto a pesquisa mais destacada na imprensa mundial desde que começou a ser feita.

Gato por lebre

E olha que, ainda assim, dada a escassa afinidade da grande maioria dos jornalistas com números – o que, por sinal, é um defeito que os profissionais brasileiros compartilham com coleguinhas dos quatro cantos da Terra –, as reportagens sobre os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) muitas vezes acabam vendendo gato por lebre. Ou por não apanharem o que trazem de realmente essencial e/ou por não ligarem os nomes às p’ssoas (as conexões que permitiriam ao leitor leigo entender em perspectiva a massa indigesta de índices e variações percentuais).

De agora em diante, no que bater 10 horas, começará a corrida contra o relógio para a dar, nas edições online, nos noticiosos de rádio e TV e nos jornais do dia seguinte, a mais recente pesquisa estrutural do IBGE com um mínimo de clareza, consistência e atratividade.

É pule de 10 prever o que acontecerá por causa desse disparate de dar acesso das pesquisas à imprensa ‘no mesmo momento que o restante da sociedade’, como decretou algum gênio do Ministério do Planejamento. Muitos irão divulgar, sem nenhuma lapidação, o press release que o instituto servir juntamente com o tabelame impresso ou em PDF e as aspas do seu presidente. Tanto pior para o país.

A propósito. Segundo o Estado, o interino do Planejamento explicou assim a iniciativa de ‘disciplinar os procedimentos’ na divulgação dos levantamentos estruturais: ‘Antes, o IBGE fazia quase só pesquisas ligadas à conjuntura. Agora, com a demanda por pesquisas estruturais, decidimos fazer a portaria que cria regras para essa área também’.

‘Antes’ quando, cara-pálida? A POF, que deixou o presidente tão estomagado, começou a ser realizada em 1987. A PNAD vem sendo feita ano após ano desde 1971. O Censo, então, nem falar.

Isso o Estadão deixou barato, talvez porque nem o autor da matéria nem quem a fechou conhece suficientemente o assunto. Mas – e agora se entra na parte que cabe à imprensa da receita intragável apresentada na abertura deste texto –, sem compromisso algum com os fatos, o jornalão anunciou, no título e no texto da chamada de primeira página, no título e no textão internos, que ‘Dados do IBGE vão passar por censura prévia’.

Parem as máquinas, é o caso de dizer. Censura prévia consiste em submeter produções jornalísticas, artísticas, de cultura de massa, ou o que seja, a exame de agentes estatais, que poderão vetar no todo ou em parte o material que lhes foi compulsoriamente entregue e que, sem esse escrutínio, só terá chance de ver a luz do dia se os seus autores ousarem afrontar os responsáveis pela imposição da censura.

Intenção e consumação

Se é disso que se trata no caso da portaria do Planejamento, precisa provar – com perdão pela obviedade – seja a intenção, seja a consumação. E qual a prova que oferece ao proverbial leitor incauto a matéria assinada pelo repórter João Domingos, da sucursal de Brasília, na página A 4, do Estado de 29/1?

É esta:

‘Portanto, dois dias antes de vir a público, o ministro terá em mãos o material para dar uma espiada [sic]. Se não gostar do que leu, poderá determinar uma revisão’ (grifo deste leitor).

Revisão, por sua vez e salvo melhor juízo, deve significar o seguinte: a POF deu que tem mais gordos do que esfaimados? Engavetem-se os resultados e se refaça a pesquisa (ou a tabulação dos dados).

Agride o bom senso, primeiro, que o ministro que não gostou do que leu tenha a temeridade de ordenar a tal da revisão; segundo, que o presidente do IBGE, ainda que guarde em casa a mesma carteirinha partidária de Sua Excelência, ouse cumprir a ordem; e terceiro, que qualquer dessas coisas não vaze em algum momento.

OK, mas deixe-se o bom senso de lado. Repórter não tem que especular sobre intenções e suas implicações, sensatas ou insensatas. Tem é que oferecer – mais uma vez com perdão pela obviedade – fatos que sustentem o escrito. Na infeliz portaria, com todos os seus absurdos, os fatos não estão. Na boca de alguém na matéria do Estado, tampouco. Precedentes, não se informa.

A menos que eles sejam o que, meia dúzia de parágrafos adiante, a reportagem descreve como mais um caso de ‘dirigismo estatal da informação no governo petista’ – sendo os outros citados, naturalmente, o projeto de lei do Conselho Federal de Jornalismo e a pretendida criação da Agência Nacional do Cinema e Audiovisual (Ancinave). Haja objetividade.

Dirigismo jornalístico

O Estadão não ficou inteiramente só nessa manifestação de dirigismo jornalístico que transpõe as fronteiras entre fato e opinião, notícia e editorial. Ao chamar a matéria, no alto da primeira página da edição do mesmo dia, O Globo tascou: ‘Governo decide pôr mordaça no IBGE’.

Menos mal que, tanto no texto que se lhe segue, como no título e texto de dentro, o jornal fez as pazes com o que as suas repórteres apuraram e a isenção jornalística na edição do apurado, informando que o governo ‘limita acesso prévio a dados do IBGE’ – que é tudo o que os fatos conhecidos permitem afirmar.

O certo fez a Folha de S.Paulo. Tanto no título de primeira – ‘IBGE terá que dar dados de pesquisa antes a ministério’ – quanto no texto que o acompanha (no pé do qual se lê que ‘o PFL considerou a norma censura. Mas o IBGE disse que isso já ocorre informalmente’), como também na manchete interna ‘Governo restringe acesso à pesquisa do IBGE’ (embora a crase esteja sobrando porque não se trata de uma pesquisa específica, mas de uma modalidade de pesquisas).

É isso aí, em suma. Não bastasse a forma troglodita com que o Planejamento resolveu ‘disciplinar procedimentos’ de uma das mais sérias instituições nacionais, que nunca fez contas de chegar para agradar aos poderosos de turno – nem sob a ditadura militar –, dois dos três principais diários do país se permitiram falar, um em censura prévia, outro em mordaça, nenhum com base em coisa alguma.

Razão tem o povo: desgraça pouca é bobagem.

[Texto fechado às 17h35 de 29/1]