O jornalismo baseado apenas em declarações é recorrente na imprensa nacional, principalmente quanto observamos o jornalismo político dos grandes jornais brasileiros. Além de ser mais rápido, pois a checagem resume-se a presenciar a declaração da figura pública, esse tipo de notícia repercute facilmente. Bolsonaro parece ter entendido como funciona o jornalismo declaratório e procura utilizá-lo na manutenção de sua imagem pública, sem preocupar-se com o teor e o conteúdo das declarações noticiadas. A partir disso, pode-se problematizar: como o jornalismo se deixa utilizar para a amplificação de declarações absurdas de Bolsonaro? E o que fazer para não cair nessa armadilha?
Na semana em que os jornais noticiavam a queda de 4,1% no PIB brasileiro, o pior resultado desde 1996, e a compra da mansão de R$ 6 milhões pelo filho Flávio, investigado pelas rachadinhas, Bolsonaro investiu no uso de declarações absurdas para ganhar as manchetes. A declaração que mais repercutiu trata de uma crítica às medidas de isolamento e restrições para controlar a pandemia: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”, que virou manchete em diferentes veículos nacionais e foi ecoada pela imprensa internacional. A mesma frase também foi manchete em outros portais, como o UOL e NSC.
A imprensa já entendeu que essas declarações de Bolsonaro têm método, principalmente em uma audiência tão polarizada como a atual. Passamos a comentar sobre o absurdo que é falar em mimimi num período de tantas mortes e de tanto sofrimento e, ao mesmo tempo, paramos de falar na queda significativa do PIB e sobre a compra de uma mansão incompatível com os rendimentos declarados pelo filho Flávio. Essa estratégia é analisada e problematizada pelos mesmos veículos que transformam a fala em manchete, como pode ser observado no G1. A coluna ombudsman da Folha de S.Paulo já tinha advertido, em 2019, que essa prática pode ajudar a distrair a plateia, mas também esconde questões importantes e de interesse público, como a falta de um plano de governo. Entretanto, as declarações continuam ganhando espaço nas manchetes de grandes jornais. Mesmo sabendo da estratégia de Bolsonaro com suas declarações, os jornalistas estão caindo nas armadilhas do jornalismo declaratório.
Bolsonaro sabe que promover polêmicas infundadas é um caminho para que ele vire notícia, tanto que utilizou programas de entretenimento como CQC e SuperPop para alavancar sua candidatura à presidência. Um levantamento de pautas políticas publicadas entre 1987 e 2017 sobre Jair Bolsonaro indica a presença de notícias na Folha de S.Paulo e no Estadão sobre as declarações polêmicas do político. Durante a campanha para presidente e no primeiro ano do seu mandato, utilizou o seu perfil em redes sociais para fomentar debates sobre temas esdrúxulos. E, a partir disso, muito se falou e se pesquisou sobre golden shower e Brigitte Macron. A estratégia das redes sociais enfraqueceu e o presidente precisou buscar outros espaços para amplificar suas falas, investindo em declarações rápidas na frente do Palácio do Planalto. No início de março de 2020, para não falar sobre o aumento de 1,1% do PIB, o que foi considerado baixo em comparação aos anos anteriores, Bolsonaro levou um humorista fantasiado de presidente para dar entrevistas aos jornalistas e respondeu às perguntas com um: “O que que é PIB?”. Nesse dia, bananas foram oferecidas aos jornalistas, em uma referência ao gesto de banana feito pelo presidente aos profissionais alguns dias antes. Muitos entenderam que a notícia não estava na encenação e se retiraram do local.
Se as bananas e o humorista contribuíram para um esvaziamento da cobertura jornalística no Alvorada, outras estratégias foram criadas para manter Bolsonaro nas manchetes. Com a pandemia, o presidente (sem partido e sem política de enfrentamento para a crise sanitária) passou a trabalhar declarações que minimizam o impacto da Covid na vida das pessoas. Dentre as muitas declarações esdrúxulas, ao comentar sobre as mortes, ele falou: “Não sou coveiro, tá?”, o que virou manchete no G1 e no UOL.
Pode-se observar que nas primeiras intervenções de Bolsonaro como presidente era comum a imprensa noticiar suas decisões e falas sem contextualizar ou se posicionar, como foi observado em 2019 no objETHOS. De lá para cá, os jornalistas começaram a problematizar e a se posicionar sobre as ações e as falas do presidente. Já é possível identificar dados e análises de especialistas em textos que mostram as mentiras e os absurdos declarados pela figura política. Mas, muitas vezes, as manchetes ainda enfatizam a declaração polêmica. Em tempos de compartilhamento de notícias por aplicativos de mensagens, quando muitos leem apenas as manchetes, é necessário destacar na manchete o quanto é perigoso um presidente fazer tal declaração.
O jornalismo meramente declaratório pode ser dócil e servil, o que já foi analisado anteriormente no objETHOS. Além disso, também é um jornalismo preguiçoso e apressado. Quando o jornalista limita a notícia à declaração, consegue publicar mais rápido. Para ir além da declaração, é preciso contextualizá-la, construindo relações com outros dados e outras declarações, o que é mais trabalhoso e exige conhecimento sobre o tema e a figura pública. Afinal: qual o problema na declaração ‘chega de frescura e de mimimi’? O número crescente de mortes na pandemia, como lembrou o Estadão na manchete.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Sílvia Meirelles Leite é professora da UFPEL e pesquisadora do objETHOS.