Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ciência em tom jornalístico

O jornalismo dito científico é um ramo tardio da frondosa árvore de que se ocupa este Observatório da Imprensa. O “dito científico” não vai aí para provocar os profissionais que a ele se dedicam, muitos dos quais altamente competentes. É que, a rigor, a especialidade deveria se chamar jornalismo “de ciência”, ou “sobre ciência”. Caráter científico é a última coisa que se pode pretender de qualquer modalidade de jornalismo.

Tempos atrás, o desafio era obter alguma informação sobre assunto científico em linguagem leiga. Desde os anos 1980, pouco mais ou menos, tornaram-se correntes em todas as mídias jornalísticas as reportagens sobre ciência e tecnologia. A bem da verdade, é preciso reconhecer que eram, e são até hoje, reportagens predominantemente ancoradas em aspectos sensacionais. Jogam para uma arquibancada aparentemente mais sensível à emoção do que à razão.

Hoje, como disse em entrevista a professora Sonia Vasconcelos, o público está mais atento (ver“Comunicação científica para um público mais atento”). Reage quando há exagero, incoerência, fundamentação débil. Mas uma nova fronteira do pensamento crítico, nessa modalidade de jornalismo, está à vista: o escrutínio das fontes acadêmicas, até não muito tempo atrás consideradas praticamente sacrossantas.

Invenção e bazófia

A professora Sonia gentilmente indicou ao Observatório um artigo publicado no Jama (The Journal of the American Medical Association), “Spin and Boasting in Research Articles” (invenção e bazófia em artigos de pesquisa, numa tradução livre), assinado por Peter Cummings e Frederick P. Rivara, que abre os olhos dos leitores para truques praticados correntemente por uma minoria (na estatística dos autores) de pesquisadores.

O texto diz que “alguns autores exageram a importância de suas pesquisas e depreciam de modo desleal outros estudos”. Cummings e Rivara confessam cometer eles mesmos alguns desses pecados redacionais. E sentenciam, muito apropriadamente, que “melhorar a redação é trabalho para a vida inteira”.

O primeiro tópico do texto diz respeito a exagerar na introdução sua importância. Eles exemplificam: “(X) atingiu uma proporção alarmante”, “um número que apavora” e “drástico aumento”. E comentam:

“Essas palavras tonitruantes não têm significado científico. Na verdade, supervalorizam um tempo e um lugar particulares: contagem de eventos, taxas de incidência ou estimativas de prevalência. Que tal descrever como essas quantidades variaram ao longo do tempo? Deixe o leitor decidir se algo é alarmante, apavorante ou drástico. Escrever ‘prioridade decisiva’, mesmo se em alguma medida for verdade, é apenas uma opinião que provavelmente não será convincente. Referir-se a uma ‘epidemia de obesidade’ é um clichê. Frases banais não fazem o autor parecer sério. São chatas e ocupam espaço. Imagine se o leitor precisa saber mais uma vez que a obesidade é uma doença generalizada, o diabetes tem incidência crescente e o custo do tratamento é um problema.”

Menos adjetivos

Cummings e Rivara sugerem que pesquisadores usem o mínimo de adjetivos. Criticam também os que, para promover seus próprios trabalhos, afirmam haver uma “crise de credibilidade” e uma “grande carência de pesquisas”. Apontam especificamente expressões como “resultados inconsistentes” ou “confusos”. Essas palavras vagas não explicam nada, afirmam. “Fazemos estudos com amostras finitas, portanto algumas diferenças são quase inevitáveis.”

Um dos trechos do artigo é dedicado ao “uso de palavras para convencer, não para esclarecer”. Novamente, os autores nos ajudam com exemplos: “Nossos resultados mostram claramente”, “estas análises fornecem respostas claras”, “(X) foi claramente afetado”, “acreditamos que nosso estudo deixa claro”. Outras expressões sugerem força: “Nossa análise… oferece forte evidência”, “este estudo mostra que (X) é muito efetivo”, a “firme associação”.

Em outro trecho, o ponto é a fanfarronada. São comuns os artigos que se vangloriam de ser pioneiros.

“Alguns são involuntariamente cômicos devido à abundância de qualificativos, algo equivalente a ufanar-se de ter sido o primeiro canhoto a andar de costas no Washington Monument. Se o estudo é pioneiro, a ausência de comparação com trabalhos anteriores, na seção de comentários, deixará isso evidente. Se a pretensão de originalidade estiver errada, o que não é raro em nossa experiência, os que tiverem sido de fato pioneiros não serão amistosos e você revelará desconhecimento de trabalhos anteriores.”

Outras bazófias incluem, segundo Cummings e Rivara, frases como: “os achados… abrem uma nova fronteira”, “este estudo configura a primeira demonstração inequívoca”, “a maior amostra”, “novas fortes evidências”, “um dos mais detalhados estudos sobre…”, “este estudo apresenta nova compreensão”, “nossa avaliação abrangente”.

Vejamos como esses fenômenos se manifestaram recentemente nas duas revistas mais influentes do país, Veja e Época. É fácil, como diria Adoniran Barbosa.

Atributos musculares

A Época número 757 (de 19/11) traz duas reportagens singulares. A primeira (“A política à base de músculos”) refere-se a um (1, hum) estudo segundo o qual “quanto mais músculos tem um cidadão, menos atenção ele dá aos menos favorecidos” (passe a repetição da palavra). Dá a impressão de que a matéria entrou na revista antes de uma comemoração intempestiva do fim do ano. Todo mundo querendo sair, vamos fechar logo.

Os indivíduos comparados são Paul Ryan, um dos corifeus da ultradireita republicana, companheiro de chapa de mitt Romney, e o Mahatma Gandhi. Legendas das fotos, para não perdermos tempo comentando o texto:

>> “Paul Ryan. Altura: 1,88m. Peso: 74 kg. Candidato à vice-presidência dos EUA etc. Ryan disse que queria ‘gerar riqueza, não redistribuição’.”

>> “Mahatma Gandhi. Altura: 1,64m. Peso: 46 kg. Liderou a Índia na luta pela independência do Império Britânico sem violência. Fez greves de fome para atrair atenção para sua causa.”

Não é uma gracinha? E o pior é que na matéria se afirma que os musculosos são mais firmes na defesa de suas causas, sejam eles as dos ricos ou as dos pobres…

Pensando bem, a matéria parece ter sido fechada imediatamente depois de uma confraternização regada a álcool.

E tome adjetivo, advérbio…

Outra da mesma safra faz pensar no artigo dos médicos americanos mencionado acima. Chama-se “Os avanços da ciência da alma. Uma pesquisa inédita usa equipamentos de última geração para investigar o cérebro dos médiuns durante o transe. As conclusões surpreendem: ele funciona de modo diferente.”

Impliquemos com uma palavra do subtítulo: “última geração”. Essa expressão é puro marketing. Por definição, não existe uma “última” geração de equipamentos, como não houve o “fim da História” de Francis Fukuyama. Existe uma geração mais recente de equipamentos, que em alguma próxima esquina do desenvolvimento tecnológico se tornará superada.

A matéria tem como referência acadêmica a publicação Neuroimaging during Trance State: A Contribution to the Study of Dissociation, de Julio Fernando Peres, Alexander Moreira-Almeida, Leonardo Caixeta, Frederico Leão e Andrew Newberg. A Época traduz como “Neuroimagem durante o estado de transe: uma contribuição ao estudo da dissociação”.

Lê-se logo no início do resumo que (em tradução livre) “poucos pesquisadores enfocaram experiências espirituais envolvendo estados dissociativos relacionados com mediunidade” etc. No segundo parágrafo da introdução, “Este estudo aborda importantes teorias…”

Estão lá os adjetivos e advérbios.

Médiuns e best-sellers

No resumo da biografia de Chico Xavier, convocado para atestar a relevância do assunto, informam os autores que ele “produziu mais de 400 livros de escrita automática abarcando amplo leque de estilos e assuntos, que venderam milhões de cópias”.

Se vender milhões de exemplares é argumento, cabe propor que mentes semelhantes às de Barbara Cartland, Enid Blyton, Dr. Seuss, Gilbert Patten, Jackie Collins, Horatio Alger Jr., R.L. Stine, Corin Tellado, Louis L’Amour e Dean Koontz sejam objeto de atenção científica. Quem são essas figuras? Todos venderam centenas de milhões de exemplares de livros.

A reportagem trata de um assunto relevante, mas a única conclusão a que se pode chegar é que quanto mais sabemos, mais sabemos que pouco sabemos.

Passemos ao próximo exemplar.

“Cura” da depressão

A edição nº 2.297 de Veja, datada de 28/11, traz na capa a seguinte maluquice: “Depressão. A promessa da cura. A cetamina é a primeira esperança de tratamento totalmente eficaz da doença que afeta 40 milhões de brasileiros”. Agora que você está versado nas malandragens da divulgação de pesquisas, salta aos olhos a antinomia entre “promessa” e “primeira esperança”, de um lado, e “totalmente eficaz”, de outro. Acrescente-se que é no mínimo arriscado falar em alguma coisa “totalmente eficaz” nesse terreno.

No subtítulo da reportagem, está lá o adjetivo que dá ideia de força: “um potente antidepressivo”… No correr do texto, outros truques para “anabolizar” a cetamina. Um psiquiatra diz, a respeito do efeito da droga: “Foi uma transformação impressionante, num curtíssimo espaço de tempo”. Tirado da revista Science, tida como séria nos meios científicos: “indiscutivelmente a descoberta mais decisiva para o tratamento da depressão em meio século”.

Mais à frente, ficamos sabendo que a cetamina “tem uma forma de ação inédita”. E faz o que faz “de forma muito rápida e eficiente”. Um psiquiatra brasileiro, Rodrigo Machado Vieira, afirma que as substâncias com ação em glutamato, como a cetamina, “são, sem dúvida nenhuma, a aposta da medicina para uma nova geração de antidepressivos”.

Um longo caminho…

A horas tantas, a revista adverte: “Há ainda um longo caminho a ser percorrido até que a cetamina saia dos laboratórios e possa ser comercializada como instrumento de combate à depressão”. Sabe o que isso significa, desprevenido leitor? Que os testes clínicos podem apontar a probabilidade de tantos efeitos colaterais que a substância vá fazer companhia às milhares que nunca chegaram ao mercado.

Mas não há que perder o ânimo: “A expectativa é que em dez anos esses conhecimentos possam ser usados na prática clínica”.

Sabe como é hoje? “Sob a forma de injeção, a cetamina só pode ser aplicada em ambiente hospitalar, de preferência com o acompanhamento de um anestesista. Durante os quarenta minutos de duração do procedimento, o paciente pode ter a sensação de dissociação entre o corpo e a mente, como se formas, cores e movimento se embaralhassem”. Numa dessas, a pobre vítima vai e não volta. Que saudade dos velhos sossega-leões.

É ou não é um monumento de irresponsabilidade – escarninha, como diria Drummond?

Cruzada contra hospitais

Na mesma linha de sensacionalismo (anti)científico, mas com sinal trocado, a Época dedicou a capa da edição 758 (26/11) a um esforço com aparências de meritório: “O que os hospitais não contam para você”. Infelizmente, a reportagem é sensacionalista, conduz a conclusões alarmantes e algumas passagens sugerem ao leitor comportamentos que são tiros no pé.

O dado talvez mais chocante é esquentado: “25% dos pacientes internados sofrem algum tipo de dano, revelou estudo da Universidade Harvard”. Como todos os números agregados, nesses 25% estão incluídas coisas díspares, desde o dano horrendo da amputação da perna errada, descrito na reportagem, até casos discutíveis de mortes em cirurgias e, mais importante, falhas menores, muito distantes daquilo que leva alguém a evitar um hospital.

O próprio texto dá uma pista: “Mesmo nos centros americanos de alta tecnologia, pequenas falhas ou erros gravíssimos ocorrem rotineiramente”. Com certeza. Mas a ideia de que existe algo perfeito no comportamento humano é uma presunção desmiolada que só aumenta a aflição dos viventes. Onde não há erros? Quem não os comete? Atire a primeira pedra etc.

Importante informação é a de que, por incrível que pareça, boa parte das infecções hospitalares se deve a que “muitos médicos não lavam as mãos antes e depois de atender um paciente no quarto ou na UTI”. Eis aí uma pauta importante, focada: quanta gente morre ou adquire uma nova doença devido a essa irresponsabilidade cavalar dos médicos? Os especialistas em infecções hospitalares afirmam que só uma minoria lava as mãos. E uma minoria da minoria o faz corretamente.

Ou diagnósticos, ou procedimentos

A reportagem orienta: “Escolha com cuidado os médicos do hospital”. Dá o primeiro conselho: “Desconfie das superestrelas que se acham capazes de resolver tudo”. Em seguida, classifica: “Basicamente [êta palavrinha…], há três tipos de médicos: os que são bons de diagnóstico, os que são bons de procedimento; e os que não são bons em nada”.

Mas que gigantesca besteira. Quer dizer que um médico capaz de diagnosticar com exatidão é incapaz de tratar competentemente o doente? Tenham a santa paciência. A frase “não são bons em nada” é de uma arrogância ímpar. Dá vontade de dizer… Não, deixa para lá.

Adiante, um redobrar de irresponsabilidade. Após o intertítulo “Como se proteger”, vem um conselho que não favorece a avaliação do QI dos envolvidos na produção da reportagem: “Pergunte a opinião dos enfermeiros”!!! Caramba, até onde se pode chegar para enviesar um texto.

Plataforma Lattes

Pensou que a coisa tenha ficado por aí? Ledo engano, tolerante leitor. A matéria recomenda também a consulta ao currículo do médico na Plataforma Lattes, do CNPq. A Plataforma Lattes é, sim, como está no texto, “uma base de dados científicos”. Por isso mesmo consultá-la não é tarefa para o cidadão comum.

Façamos uma experiência com o currículo de um dos médicos mais consagrados de uma capital brasileira, médico que não será nomeado. A descrição tem mais de 50 mil palavras. Para que se tenha uma ideia: até aqui, o longo texto que você está lendo tem pouco mais de 1.300 palavras. O que escolher? Onde o homem trabalha? O que publicou? Seus títulos acadêmicos?

Para complicar um pouquinho mais: é um notável cirurgião, mas recentemente fez uma barbeiragem ao operar uma pessoa conhecida. O paciente escapou por pouco da morte. Isso não está no currículo. E também não anula a competência do médico. Novamente: atire a primeira pedra etc.

Síndrome de Juruna

Tem mais. E é preocupante. A reportagem ouviu uma advogada, Rosana Chiavassa, que propõe o seguinte despautério: “Aconselho os pacientes a gravar as consultas médicas, para evitar dúvidas posteriores”. Ora, ora. Isso só leva ao distanciamento entre médico e paciente, fenômeno recente no Brasil e totalizante nos Estados Unidos, onde existe uma mania nacional de levar os problemas aos tribunais.

Qual é o efeito dessa desconfiança? Os médicos começam a pedir um número exagerado de exames, para se cercar de “provas” em seus diagnósticos e recomendações. A medicina sai encarecida. A moda migra dos consultórios particulares para o serviço público. O sistema todo fica mais caro, portanto menos acessível (principalmente nos ambulatórios e hospitais públicos), e cada vez mais os médicos se veem na contingência de escolher quem vai receber o melhor tratamento e quem não vai. É cruel, é desumano, é um passo firme na direção errada.

Mas o cúmulo é este “olho”: “Peça uma segunda opinião antes de fazer um procedimento desnecessário”. Como assim? A lógica foi para o beleléu, de mala e cuia.

Outra advogada, Renata Vilhena Silva, ensina que antes de escolher um hospital deve-se observar se ele tem a estrutura e a capacidade técnica necessárias para realizar o tratamento: “Se a paciente se submeterá a uma cesárea, deve escolher um hospital com UTI adulta e UTI neonatal. E nunca aceitar se submeter a cirurgias plásticas, ortopédicas ou qualquer outra em clínicas”. Tudo indica que essas informações são precisas, mas tratam de alguns casos entre centenas, talvez milhares de modalidades de cirurgias.

Para não dizer que as oito páginas da reportagem da Época não contêm informações úteis – embora num contexto quase histericamente antimédicos e anti-hospitais –, reconheçamos que existe, sim, e muito, comércio na medicina.

O jornalismo nunca pode ser “científico”. Nenhuma pessoa sensata o negará. O diabo é quando a ciência parece ficar jornalística.