Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Clichês e maniqueísmos

Nos últimos dias, o planeta foi surpreendido por ataques terroristas realizados no Líbano, no Iraque e na França. Na quinta-feira (12/11), um duplo atentado suicida contra um reduto do Hezbollah deixou quarenta pessoas mortas e vinte feridas na periferia sul de Beirute, capital libanesa. Não bastasse esta triste notícia, no dia seguinte, sexta-feira (13/11), considerada uma data de mau agouro pelos supersticiosos, outro atentado suicida durante um funeral em Bagdá deixou pelo menos dezoito mortos e cerca de quarenta feridos. Horas depois, uma série de ataques coordenados deixou mais de uma centena de óbitos em vários pontos da cidade de Paris. “Uma situação como nunca se viu na França em tempos de paz”, noticiou a imprensa brasileira. Por trás dos dramas libanês, iraquiano e francês estão os mesmos protagonistas: os temíveis jihadistas do Estado Islâmico.

Preliminarmente, é preciso ressaltar que não há justificativas plausíveis para atentados terroristas. Promover a matança indiscriminada de cidadãos inocentes não é, em hipótese alguma, a melhor maneira de se atingir um objetivo político ou de angariar indivíduos para uma determinada causa. É impossível defender, sob o ponto de vista ético, tragédias de tamanha dimensão. No entanto, como é corriqueiro nos noticiários internacionais da imprensa brasileira, a cobertura dos atentados terroristas deixou muito a desejar. Os ataques ocorridos no Líbano e no Iraque praticamente não foram noticiados. Para o status quo midiático, mortes em países subdesenvolvidos parecem não ser motivo para gerar comoção. Por outro lado, os assassinatos de Paris tiveram grande repercussão nos principais veículos de comunicação.

De maneira geral, as matérias sobre os ataques de Paris foram marcadas por clichês, maniqueísmos, exaltação do Ocidente e islamofobia. Em vez de analisar criticamente os acontecimentos de Paris, apontando o contexto que possivelmente ensejou tais atos radicais, a mídia brasileira limitou-se a apresentar uma cobertura que mais se assemelhava a uma grande produção cinematográfica, com o presidente François Hollande e a polícia da França elevados ao status de heróis e, em contrapartida, os muçulmanos (como sempre) retratados como vilões. Substitua Hollande e a polícia francesa por Bush e os bombeiros estadunidenses e teremos assim um cenário bastante semelhante ao ocorrido no 11 de setembro em Nova York. O mesmo enredo para personagens diferentes.

Na abertura do Jornal da Globo, o âncora William Waack destacou que os atentados de Paris representam a dicotomia entre civilização e barbárie. Não obstante, palavras carregadas de forte semântica ideológica como “democracia”, ”valores ocidentais” e “terrorismo” deram a tônica da cobertura realizada pela emissora da família Marinho. Conforme assevera o linguista e ativista social Noam Chomsky, o léxico de um determinado veículo de comunicação diz muito sobre quais são os interesses políticos e econômicos que estão por trás de seu discurso. Não se trata de querer justificar ou legitimar o radicalismo islâmico, mas, ao longo da história, os “civilizados europeus” também patrocinaram ou provocaram diretamente inúmeros genocídios em todo o planeta, pilharam riquezas de outros povos, eliminaram culturas e geraram danos irreversíveis ao meio ambiente. Todavia, como a história é contada pelos vencedores, todos estes lamentáveis fatos são estrategicamente escamoteados. Em última instância, os atentados de Paris concederão ainda mais combustível para empreitada islamofóbica promovida pela extrema-direita europeia.

Fanatismo religioso e imperialismo

Evidentemente, o Estado Islâmico, cujo principal objetivo é fundar uma organização estatal teocrática fundamentada nos preceitos corânicos, não representa o pensamento da maioria dos muçulmanos. O grupo terrorista é formado por sunitas fanáticos, dissidentes da al Qaida, que iniciaram suas atividades aproveitando-se do fato de o Iraque ter se transformado em um Estado falido após a invasão estadunidense. Já outra versão aponta que o surgimento do Estado Islâmico foi incentivado pelo próprio governo de Washington, para que assim suas tropas pudessem permanecer no Oriente Médio sob o pretexto de combater os radicais religiosos.

Divergências à parte, é fato que o Estado Islâmico encontrou na vizinha Síria, desestabilizada por conflitos entre o governo de Bashar al-Assad e rebeldes apoiados pelas potências ocidentais, um terreno fértil para a sua atuação. É exatamente nesse ponto – a intervenção imperialista de países como França, Estados Unidos e Reino Unido no Oriente Médio – que devemos buscar as origens da atual onda terrorista global. Vale também lembrar que, com o objetivo de derrubar al-Assad, as potências ocidentais muitas vezes negligenciaram as ações do Estado Islâmico. Até que um dia o feitiço se vira contra o próprio feiticeiro.

Apesar de não podermos negligenciar a dimensão humana dos atentados de Paris, devemos analisá-los em seu devido contexto geopolítico, prática que a grande mídia brasileira raramente se dá ao trabalho de fazer. Paradoxalmente, o “irracionalismo muçulmano” (representado pelas ações violentas de grupos fundamentalistas) é uma resposta radical ao “racionalismo ocidental” (que, em nome dos valores civilizacionais, se julga no direito de intervir em qualquer nação subdesenvolvida).

A indignação geopolítica seletiva de nossa imprensa, que prontamente se levanta contra os atentados de grupos terroristas islâmicos, não se solidariza da mesma maneira com os palestinos vítimas do genocídio promovido pelo Estado de Israel, com as pessoas mortas pelos erros dos drones estadunidenses ou com os milhões de africanos que padecem em conflitos nos estados artificiais criados pelos colonizadores europeus.

A mídia distorce acontecimentos geopolíticos, apontando somente suas consequências, e não as suas causas. Nesse sentido, a maioria das pessoas, por não ter acesso a outras opiniões, pode acabar adotando o discurso midiático e também conceber o mundo a partir da oposição entre ocidente civilizado e oriente bárbaro. Infelizmente, as relações entre fanatismo religioso e imperialismo geram um grande número de vítimas inocentes não só na França, mas em todo o planeta.

***

Francisco Fernandes Ladeira é especialista em Ciências Humanas: Brasil, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor de Geografia em Barbacena, MG