Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como convém aos grandes arranjos

Embora não sejam os olhos de Capitu, os jornais brasileiros costumam produzir textos oblíquos e dissimulados. Na edição quinta-feira (25/8), O Globo se esmerou na produção da sinuosidade tão apreciada pelo ‘leitor Bentinho’ de todo dia. Aquele que tem ressaca cívica na retina e não percebe que a calma dos mercados, para o qual dobram os sinos de todas as editorias, é o cemitério da ética.

Voltemos ao diário da família Marinho. Um artiguete despretensioso afirmava que Lula, no início da turbulência política, teria adotado o discurso chavista de dividir o país entre ‘elites’ e ‘pobres’. A mais recente pesquisa do Ibope, no entanto, mostra que, mesmo entre os eleitores de baixa extração social, Serra lidera a intenção de votos. Logo, concluiu o jornal, ‘o Brasil comprova que não é mesmo a Venezuela’. Simples, não? Nem tanto.

Ao misturar realidades políticas distintas e fazer ilações simplórias, o jornalismo transita com desenvoltura entre a discussão bizantina e a motivação capciosa. Há que se esboçar alguns cenários e indagar se a diferença apontada no editorial é tão evidente assim. Como se comportaria nossa mídia em outras condições de pressão e temperatura? Como estaria sendo pautado o momento político?

Um outro cenário

Que fique claro, desde já, que não vejo a derrocada do governo petista como produto de uma conspiração midiática. O que desmoronou foi um projeto de poder que, corroído pelo transformismo, renegou bandeiras erguidas em duas décadas e meia de lutas. A ilusão de transformar a sociedade a partir do Estado, justificando alianças partidárias sem balizamento programático e o aparelhamento da máquina administrativa, é a matriz da corrupção e do caixa 2. A adoção da agenda liberal-conservadora requeria duas atitudes que, ao final, se mostraram fatais: o abandono das lutas sociais e a autonomização da oligarquia partidária.

A nomenklatura, para deleite dos setores conservadores, ignorou a interdependência dialética entre fins e meios. Interditado o debate interno, silenciadas as tendências de esquerda, vieram os aplausos do setor financeiro e da grande imprensa. O bolchevismo de mercado era visto como aggiornamento, demonstração inequívoca de maturidade política. Ao canto das sereias, Ulisses abandonou Penélope e programou um mergulho impensável a quem o concebeu como timoneiro de uma nova rota.

Enquanto assestava suas baterias contra os movimentos organizados que deram origem ao PT e maldizia os setores reformistas do governo, os cadernos de política e economia incensavam a equipe econômica. Os indicadores, quando apresentavam retração de crescimento, eram interpretados de acordo com os interesses dominantes e as conveniências da agenda neoliberal.

Quinze anos após a derrota para Collor, Lula refazia sua agenda ante uma esquerda perplexa e uma direita encantada. Se tudo desse certo, o mercado poderia se dar ao luxo de dispensar o tucanato. O neoconservadorismo petista demonstrava mais empenho e competência na gestão da velha ordem. O perigo era uma crise moral, provocada pela reprodução dos velhos métodos da pequena política, contaminar o ambiente. Nesse caso, blindar a ordem econômica se tornaria o principal objetivo do grande capital. A mídia teria um duplo papel nessa crise: demarcar até onde a corda poderia ser esticada sem risco e apresentar, tal qual lembrou Verissimo, ‘a ruína do PT como ruína definitiva da esquerda’. Tudo com certa discrição, como convém aos grandes arranjos.

Vislumbremos um outro cenário: Lula assume o governo, administra uma política de transição necessária e, paulatinamente, prioriza o mundo do trabalho e o capital produtivo. Seria possível uma política de alianças de natureza distinta, contando com o imenso capital político acumulado e o apoio orgânico de forças sociais à esquerda? Provavelmente. Mas o tiroteio editorial não se faria esperar. Ao acirramento da crítica não restaria outra alternativa: aprofundar a agenda inicial.

Imagens e trucagens

Nesse quadro cabe indagar ao editorialista do Globo: o Brasil, no campo jornalístico, não seria mesmo a Venezuela? Em um país onde a imprensa sempre endossou retrocessos políticos, o que esperar dos barões da mídia em caso de mudanças efetivas? Abriria mão do projeto autoritário de ser a única instância de intermediação entre Estado e sociedade? Aboliria a semântica que define como populista quem não se submete aos ditames do mercado? Deixaria de condenar qualquer tentativa de comunicação direta com as massas? Ao fazê-lo, removeria a confusão deliberada entre manifestação carismática e demagogia de algibeira? Ora, não sejamos tolos: a mídia, tal como estruturada hoje, é incompatível com uma institucionalidade que não seja moldada aos seus interesses político-empresariais. A lógica que maximiza seus ganhos não sobrevive sem déficit democrático. O espetáculo abomina a práxis.

A manutenção do sistema de alianças que assegura a ordem vigente é a principal tarefa do sistema comunicacional. Em caso de crise aguda, a ‘nossa Venezuela’ aflora rapidamente. Ou alguém acha que a ação da mídia venezuelana na tentativa de deposição de Hugo Chávez, em abril de 2002, é algo restrito à fragilidade institucional daquele país? Quem assistir ao documentário A revolução não será televisionada, filmado e dirigido pelos irlandeses Kim Bartley e Bonnacha O’Brien, verá que há mais similitudes entre Caracas e Brasília do que imagina o editorialista do Globo. As cruzadas das emissoras Venevisión, Globovisión e RCTV são assustadoramente familiares.

As imagens, usadas como justificativa para o golpe, de um grupo de militantes chavistas supostamente atirando em manifestantes numa ponte, são emblemáticas. A edição ampliada mostra o oposto: os apoiadores do presidente respondem ao fogo de franco-atiradores que disparavam contra a multidão. Mantidas as proporções, não há como não lembrar das trucagens empregadas pela TV Globo, após o atentado ao Riocentro, em 1981. No Jornal Nacional, uma das bombas mostradas no carro dos militares no telejornal da tarde sumiu. E, até hoje, ninguém sabe, ninguém viu.

Curiosos critérios

Quando as multidões foram às ruas exigir o retorno de Chávez ao poder, as empresas golpistas ignoraram as manifestações. Quem viveu a ditadura militar sabe da capacidade da emissora monopolista de promover extermínios imagéticos de grande escala. Claro que, ao contrário de vários articulistas, não confundo formações sociais distintas. Brasil e Venezuela têm conjuntos históricos intransferíveis, relações de poder matizadas por clivagens completamente diferentes, mas em três coisas se assemelham: no grau de exclusão, na truculência de suas classes dominantes e na capacidade de prestidigitação de seus aparelhos ideológicos.

Nossa mídia, ao longo dos dois anos de governo Lula, mentiu, sofismou e falseou como nunca. Isso, apesar da anuência à política econômica. Acusou o governo de tentar cercear uma imprensa livre através dos projetos de criação do Conselho Federal de Jornalismo e da Ancinav. De acordo com a jornalista Míriam Leitão, em sua coluna de 24 de julho, ‘a tentativa de encurralar a imprensa não funcionou. Estava e estou convencida de que, se aquele plano desse certo, a democracia teria corrido um risco imenso’

São curiosos os critérios que levam um jornalista a julgar o que é projeto de tolhimento de liberdade. Há sete anos, em sua edição de 7/10/1998, Veja, a maior revista semanal de informação do país, dedicava matéria de capa à reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Como destacamos em artigo publicado neste Observatório [‘Veja, uma lição de política‘]:

A grande contribuição da matéria viria no desnudamento dos bastidores de campanha. Mostraria um Fernando Henrique Cardoso irritadiço e passando de presidente a pauteiro com a mais absoluta naturalidade. Revelaria o noticiário como construção política de conveniência. Ação orquestrada de grandes empresas que se sentem ameaçadas ante a possibilidade de renúncia de seu candidato. O trecho a seguir comenta a descontração de um presidente até poucos dias se sentindo ameaçado com a ação jornalística: ‘Fernando Henrique nem parecia mais o candidato-presidente que, em maio passado, encenou um gesto extremo e dramático de ameaçar renunciar à candidatura. Nas pesquisas da época feitas pelo comando da campanha, Fernando Henrique estava com 33%, contra 28% de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele caía. Lula subia.

Queixou-se em especial das televisões, que, no seu entender, vinham maltratando o governo com ênfase exagerada em notícias ruins, que acabavam azedando a avaliação popular do próprio presidente. Procurou os donos da Rede Globo, reclamou que o Jornal Nacional tinha ampliado a cobertura de temas como a seca no Nordeste, os saques, o incêndio em Roraima e o arrocho do salário mínimo.

Transmitida ao vivo

Veja, talvez embriagada pela vitória eleitoral recente, tirou a máscara e contou a verdade. FHC foi gerente do grande capital, sucateador do parque produtivo e pauteiro. As idéias econômicas do seu governo são saudadas pela mesma colunista como ‘avanços civilizatórios que não pertenciam a um específico governo, como acaba de ser demonstrado pelo atual’. Natural que se cale sobre assuntos menores.

Em poucas palavras, a jornalista traça um quadro do momento trágico pelo qual passamos. Destruído o Partido dos Trabalhadores, o governo permanece blindado por ter feito ‘o dever de casa’. Entrou no Palácio do Planalto com os votos de 52 milhões de eleitores que nele depositaram a crença de uma repactuação social. Nele permanece com o apoio da direita que não deseja os desdobramentos imprevisíveis de um impeachment. Quando deixar suas instalações, descerá a rampa com escolta segura. Capital financeiro, latifúndio e mídia lhe garantem uma saída constitucional. E sem a menor possibilidade de retorno.

Se na Venezuela a ‘revolução não foi televisionada’, aqui, a euforia da direita está sendo transmitida ao vivo. Entram doleiros, corruptos e cafetinas. E a audiência não pára de subir.

É triste. Desolador mesmo.

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Professor-titular de Sociologia da Facha, Rio de Janeiro