Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Como levantar a bola para o presidente

Com o ano do Brasil, a imprensa francesa vem dando pautas que fogem dos bordões com os quais normalmente abordam o país dos trópicos [veja remissão abaixo para matéria ‘Brasil na França – Um gigante dentro da telinha’].

O fascínio dos franceses pelo Brasil, entretanto, não impede escorregões que as distâncias cultural e geográfica não justificam. Caso exemplar é a entrevista exclusiva que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concedeu no Palácio do Planalto à Radio France Internationale, ao canal TV5 e à revista semanal Paris Match, na quarta-feira (4/5), cinco dias depois de sua primeira entrevista coletiva formal à imprensa brasileira.

Tomando emprestado a manchete da edição deste Observatório que comentou a coletiva presidencial [remissão abaixo], Lula também ‘deitou e rolou’ durante o encontro que teve com Pierre Ganz, da RFI, Slimane Zeghidour, da TV5, e Olivier Royant, da Paris Match. Em pouco mais de 45 minutos [veja abaixo links para o áudio da entrevista], o presidente respondeu a 14 perguntas como um aluno obediente e bem preparado para a prova. Em grandes linhas, falou das realizações do PT nos dois anos e quatro meses de governo, das relações do Brasil com diferentes países do mundo e de sua trajetória pessoal.

Até aí, tudo bem. A entrevista parece englobar tudo o que um leitor estrangeiro, que não tem familiaridade com as nuances de um país como o Brasil, precisa saber. Poder-se-ia argumentar, também, que a concentração das perguntas sobre as relações internacionais do país – foram 7 – se justifica porque tem como objetivo situar o papel atual do Brasil no cenário internacional. Para saber quem é o homem que detém o poder no país hoje, nada mais natural que evocar a história singular do presidente brasileiro.

Missão cumprida, então? Nem tanto. A exclusividade da pauta e a conseqüente perspectiva de uma boa projeção ‘em casa’ atenderam aos objetivos editoriais (e comerciais) da entrevista. O Brasil, principalmente por ocasião do ano cultural que ocorre na França até dezembro, é assunto em moda entre os franceses. Mas a excelente oportunidade murchou com a falta de perguntas críticas ou intervenções eventuais que tivessem como objetivo o questionamento das afirmações do presidente. Como já foi dito neste Observatório a respeito da coletiva brasileira, o caráter exclusivo da primeira entrevista de Lula a três veículos do mesmo país adquiriu mais importância que o conteúdo.

‘Chave de ouro’

Os entrevistadores adotaram um tom respeitoso, cordial, até mesmo de deferência. O problema é que essa reverência com monsieur le président denuncia o caráter simples e sem-graça da pauta cumprida.

Um dos jornalistas perguntou ao presidente qual era a influência da sua história de sindicalista nas discussões que tem com outros governantes – fazendo referência às fotos penduradas na entrada do gabinete presidencial. Lula respondeu que o seu governo era responsável por conquistas que não haviam sido conseguidas durante os muitos anos que antecederam a sua chegada ao poder. Que o país passaria por enormes dificuldades se quisesse responder às exigências que haviam sido as dele quando era sindicalista. Que o seu programa de educação, criando universidades no interior do país, era fundamental para que o Brasil chegasse ao patamar dos países desenvolvidos. E que 11 milhões de famílias – ou todos os pobres, segundo números do governo – estariam incluídas no programa Bolsa Família em 2006.

Este dado não é novo e que já figurou num artigo perspicaz do diário de esquerda Libération, que mostrou, no início de 2004, que o governo ainda estava longe de atingir as metas do então Fome Zero.

Em nenhum momento da entrevista, porém, foram evocadas as dificuldades de implantação do Bolsa Família. Também não houve perguntas sobre as críticas de setores do PT ao governo e como o presidente responderia a elas. Questões que poderiam ter sido feitas mesmo que o tempo da entrevista fosse restrito – ou que permitisse apenas um número limitado de perguntas sem direito a réplica, a exemplo do que aconteceu com a coletiva brasileira.

A pergunta seguinte, possível resultado da insatisfação com a resposta desviada de Lula, foi quase igual: ‘O senhor parece apaixonado pela diplomacia e pelas negociações mundiais. Sua experiência de líder operário o ajuda no cenário internacional?’

Na mesma seara, seguiu-se: ‘O senhor, que, ao longo de toda a sua existência, viveu um destino coletivo, como se adaptou à solidão do poder?’. E também: ‘Em que o passado continua a guiar seus passos? O senhor diz que, quando toma uma decisão importante, chega a pensar em sua mãe e no que ela diria se tivesse o mesmo problema’.

A intenção dessas perguntas é traçar o perfil de um personagem cuja trajetória pessoal e política abriu um precedente histórico. Não há demérito nisso, uma vez que a figura do presidente brasileiro é uma das mais notórias da atualidade. É natural tratar do assunto ‘Lula’ no contexto da emergência do assunto ‘Brasil’, na França. Contudo, o assunto é velho. As perguntas poderiam ter sido feitas quando a figura emblemática do PT assumiu a presidência. O exemplo mais contumaz do desgaste da pauta surgiu quando os jornalistas perguntaram se Lula esperava obter sucesso durante o mandato.

Faltou originalidade. E evidenciou-se a paixão dos franceses pela história do sindicalista que chegou ao poder concretizando uma utopia à la Germinal. Prova disso é o ‘olho’ usado na edição da matéria do Paris Match:

‘Educado na miséria, o líder operário que se tornou chefe de Estado luta pelo seu país e por todos os desfavorecidos do planeta’.

Ou, ainda, a pergunta ‘chave de ouro’ que encerrou o encontro: ‘O que o senhor gostaria que os livros de história dissessem sobre a sua passagem pelo poder? Como quer que a memória brasileira se lembre do senhor?’

Crítica cordial

Houve apenas uma pergunta crítica ao presidente: ‘O senhor tem consciência de que essa ambição [de pleitear um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas] pode irritar alguns dos seus vizinhos [alusão clara à Argentina]?’

Foi só. As duas outras perguntas relacionadas a esse tema foram feitas no contexto do assunto-vedete da entrevista: as relações internacionais do Brasil.

‘É por causa da busca da eqüidade internacional que o senhor quer que o Brasil tenha um lugar permanete no Conselho das Nações Unidas?’

Após a resposta de Lula de que a América do Sul era mais importante do que as diferenças entre os países, veio esta:

‘Isso quer dizer que o senhor apoiará a candidatura do uruguaio Carlos Pérez del Castillo à diretoria-geral da OMC?’

Aparente prova de condescendência, uma outra questão acabou por reforçar a idolatria dos entrevistadores. Referiu-se à presença do presidente na reunião do G-8 na Escócia, em julho:

‘Como o senhor se sentiu ao sentar-se à mesa dos grandes em Evian, em 2003? O senhor se sentiu diferente de Blair, Schröder, Bush?’

Imperativo da comunicação

Não é apenas o jornalismo verde-amarelo que peca por excesso de zelo. As vozes críticas do comportamento dos repórteres na coletiva brasileira levantaram o problema da perda de credibilidade que resulta dessa ‘dança’ com o poder.

Em francês, a expressão avoir mauvaise presse traduz perfeitamente esse risco. A frase significa ‘ter má reputação’, mas poderia fazer dobradinha, nesse caso específico, com a tradução literal: ‘má imprensa’.

Mauvaise presse também é o título de uma das obras de referência sobre a relação entre as esferas jornalística e política, usando a França como exemplo. O sociólogo Cyril Lemieux investiga o trabalho jornalístico tomando por base as críticas feitas ao quarto poder para explicar por que os jornalistas erram.

Para Lemieux, existe uma ‘gramática’ que regula as ações sociais, definida como um ‘conjunto de regras a seguir para agir de forma suficientemente correta aos olhos dos parceiros da ação’. Os indivíduos só tomam consciência dessa ‘gramática’ – ou noção do que se pode ou não fazer – quando ocorre um deslize.

Na história do jornalismo, a separação entre a opinião e a informação instaurou princípios críticos que, segundo o sociólogo, ‘liberaram energias sociais e abriram novas possibilidades de investimento e de lucro, mas não permitiram o estabelecimento de um controle efetivo da qualidade moral e intelectual dos produtos assim despejados no mercado’. Muitas vezes, a imprensa age em nome do que ele chama de ‘imperativo da comunicação’. Cobre um determinado assunto porque precisa cobrir.

Apesar de todas as dificuldades que enfrenta em seu cotidiano, a imprensa precisa perder o medo de bater. Que use seu trunfo maior: o olhar crítico. Que use sua ‘gramática’ de instância autônoma e independente. Nem que seja, em última instância, para evitar a mauvaise presse.

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Para ouvir a entrevista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva à mídia francesa, clique aqui (Real Player) ou aqui (Media Player)

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Jornalista